Este texto é introdutório, voltado especialmente para meus alunos de Direito Constitucional II, eis que separação de poderes será um de nossos principais temas. Nessa linha, iniciarei com os fundamentos filosóficos em torno do assunto, apresentando os autores essenciais para a compreensão do mesmo. Meu objetivo principal é estimular o aprofundamento dos textos clássicos, os quais, desde já, devem ser consultados para que se obtenha o máximo de aproveitamento na exposição em sala de aula.
Partirei das ideias clássicas de Aristóteles, passando por John Locke, Montesquieu e James Madison. Como comentário básico a alguns dos textos, recorri a Canotilho, cujo didatismo na comparação entre os esquemas propostos por John Locke e Montesquieu facilita enormemente a compreensão das teses básicas de cada um. Repito: a ideia é fazer com que cada um ande com suas próprias pernas, aprofundando os textos e trechos sugeridos durante todo o semestre e, para os mais interessados no assunto, durante todo o curso. Ao final da exposição, proporei um exercício de fixação, buscando que se relacionem as ideias expostas com os diversos dispositivos constitucionais sobre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário constantes na Constituição de 1988.
Iniciemos, então!
É possível constatar uma ideia básica em torno da divisão do poder numa sociedade a partir da leitura da Política[1], de Aristóteles. Lá o autor propõe a seguinte organização das partes de um governo, a partir da função de cada uma: 1) deliberar sobre os negócios públicos; 2) exercer a magistratura; 3) administrar a justiça. Segundo o autor: “a parte deliberativa decide soberanamente da guerra, da paz, da aliança, da ruptura dos tratados, promulga as leis, pronuncia a sentença de morte, o exílio, o confisco, e encaminha as contas do Estado”.[2] Em relação ao corpo de magistrados, o próprio autor reconhece a dificuldade na sua conceituação. Aristóteles recorre a alguns exemplos de atividades que comporiam as funções das magistraturas, como as relativas à fiscalização e ao policiamento. Nessa linha, há nítido aspecto executivo na magistratura. Finalmente, o autor aponta os diversos tipos de tribunais:
O tribunal que julga agentes devedores; o que decide sobre os delitos públicos; aquele que decide entre os simples particulares e os magistrados em casos de contestação de penas pronunciadas; aquele que se ocupa dos processos relativos a atribuições particulares, que tenham certa importância; além disso, o tribunal para os estrangeiros e o que toma conhecimento das acusações de homicídio.[3]
A partir de autores contratualistas, como John Locke e Montesquieu, o princípio da separação de poderes ganha o status de garantidor da propriedade e liberdade no sentido em que se manifestam tais expressões na modernidade. Conhecida, por exemplo, a formulação francesa contida no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 no sentido de que “Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”.
John Locke, especialmente no Segundo tratado sobre o governo[4], vai estabelecer a seguinte divisão: 1) poder legislativo; 2) poder executivo; 3) poder federativo; 4) prerrogativa. Em linhas gerais, tem-se: a) o poder legislativo como poder supremo da comunidade, cuja função era criar as regras jurídicas; b) o poder executivo como executor e aplicador de tais leis; c) o poder federativo como o responsável pelas relações externas e de direito internacional; d) a prerrogativa como a possibilidade de tomadas de decisões urgentes, como nos casos de guerra.
O poder legislativo, divido em duas câmaras, tinha as seguintes características, segundo o próprio autor:
Primeiro: governar por meio de leis estabelecidas e promulgadas, que não poderão variar em certos casos, valendo a mesma regra para ricos e pobres, para favoritos na corte ou camponeses no arado. Segundo: tais leis devem ter o único fim do bem do povo, excluindo todos os demais. Terceiro: não devem lançar impostos sobre a propriedade do povo sem o consentimento deste, dado diretamente ou através dos deputados eleitos. E essa imposição se refere somente aos governos quando o legislativo é permanente ou quando o povo não reservou nenhuma porção de poder legislativo para deputados a serem por ele escolhidos de tempos em tempos. Quarto: o legislativo não deve nem pode transferir o poder de legislar a quem quer que seja, ou fazer dele outra coisa que não indicado pelo povo.[5]
No plano institucional proposto pelo autor, a partir da leitura de Canotilho, o poder legislativo era exercido por um Parlamento composto pela Câmara Baixa ou Câmara dos Comuns e pela Câmara Alta ou Câmara dos Lordes. A Coroa, por sua vez, exercia os poderes remanescentes (executivo, federativo e prerrogativa), a partir de instituições como o Governo, Administração e Tribunais. Desse modo, o Poder Judiciário não se apresentava com autonomia.[6]
Montesquieu, por sua vez, tinha como modelo para sua teoria a Constituição inglesa, em que pesem as diversas críticas contra tal modelo como apto a demonstrar, realmente, a separação entre os poderes. De todo modo, é conhecida sua formulação no Espírito das Leis no sentido de que quem detém o poder tende a abusá-lo, devendo-se separá-los para que se tenha a garantia da liberdade. Para o autor, em cada Estado há três tipos de poder: 1) poder legislativo; 2) o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes; 3) o poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Eis as competências de cada um:
Como o primeiro, o príncipe ou magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz e a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado.[7]
A ausência de liberdade com a conjugação dos poderes num único corpo é passagem igualmente clássica na obra do autor, nestes termos apresentada:
Quando, na mesma pessoa ou corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.
Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.[8]
Novamente, partido do comentário de Canotilho, ao se comparar ambos os esquemas institucionais, tem-se que as principais diferenças são: “1) autonomização do poder judiciário; 2) inclusão dos poderes federativo e prerrogativo no âmbito do executivo”.[9]
Finalmente, coube a James Madison, nos famosos Federalist papers, a influente teorização sobre necessidade de freios e contra pesos aos poderes, tão cara ao constitucionalismo brasileiro. Eis trecho representativo, no famoso artigo 51:
Então, a que meio devemos afinal recorrer, para manter na prática a necessária repartição de poder entre os diversos departamentos, tal como é estabelecido na Constituição? A única resposta que pode ser dada é que, como todas essas disposições exteriores se mostraram inadequadas, a insuficiência deve ser suprida imaginando a estrutura interna do governo de tal modo que as suas partes constituintes possam, através das suas relações mútuas, constituir os meios de manter–se umas às outras nos devidos lugares.[10]
No decorrer da exposição, Madison propõe, concretamente, mecanismos de freios e contra pesos, como: 1) indicação de membros de um poder por outro, com os cuidados que tal prática merece; 2) poder de veto; 3) independência orçamentária e garantias sobre os vencimentos recebidos por cada membro de poder.
Feita essa breve resenha, a qual, obviamente, merece o devido cuidado e aprofundamento, o qual será feito, em parte, em sala de aula, proponho o seguinte exercício de fixação:
Escolha um dos autores estudados e relacione de que forma as ideias apresentadas inspiraram os diversos dispositivos constitucionais em torno da organização dos Poderes. Nesse estudo, busque a competência típica e não típica de cada um dos Poderes e os respectivos mecanismos de freios e contra pesos.
[1] ARISTÓTELES. Política. Tradução de Nestor Silvera Chaves. São Paulo: Lafonte, 2012.
[2] ARISTÓTELES. Ob. cit. P, 182.
[3] ARISTÓTELES. Ob. cit. P, 189.
[4] LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução: Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2006.
[5] LOCKE, John. Ob. cit. P, 104-105.
[6] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7a ed. Coimbra: Editora Almedina, 2003. p, 580-581.
[7] MONTESQUIEU. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005. P, 167-168.
[8] MONTESQUIEU. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005. P, 167-168.
[9] CANOTILHO, J.J. Gomes. Ob. cit. P 581.
[10]MADISON, James. O federalista nº 51. Disponível em: https://perguntasaopo.files.wordpress.com/2010/06/fed51.pdf. Acessado em: 31/01/2016.