Arquivos para Teoria do Estado e Democracia

Este texto é introdutório, voltado especialmente para meus alunos de Direito Constitucional II, eis que separação de poderes será um de nossos principais temas. Nessa linha, iniciarei com os fundamentos filosóficos em torno do assunto, apresentando os autores essenciais para a compreensão do mesmo. Meu objetivo principal é estimular o aprofundamento dos textos clássicos, os quais, desde já, devem ser consultados para que se obtenha o máximo de aproveitamento na exposição em sala de aula.

Partirei das ideias clássicas de Aristóteles, passando por John Locke, Montesquieu e James Madison. Como comentário básico a alguns dos textos, recorri a Canotilho, cujo didatismo na comparação entre os esquemas propostos por John Locke e Montesquieu facilita enormemente a compreensão das teses básicas de cada um. Repito: a ideia é fazer com que cada um ande com suas próprias pernas, aprofundando os textos e trechos sugeridos durante todo o semestre e, para os mais interessados no assunto, durante todo o curso. Ao final da exposição, proporei um exercício de fixação, buscando que se relacionem as ideias expostas com os diversos dispositivos constitucionais sobre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário constantes na Constituição de 1988.

Iniciemos, então!

É possível constatar uma ideia básica em torno da divisão do poder numa sociedade a partir da leitura da Política[1], de Aristóteles. Lá o autor propõe a seguinte organização das partes de um governo, a partir da função de cada uma: 1) deliberar sobre os negócios públicos; 2) exercer a magistratura; 3) administrar a justiça. Segundo o autor: “a parte deliberativa decide soberanamente da guerra, da paz, da aliança, da ruptura dos tratados, promulga as leis, pronuncia a sentença de morte, o exílio, o confisco, e encaminha as contas do Estado”.[2] Em relação ao corpo de magistrados, o próprio autor reconhece a dificuldade na sua conceituação. Aristóteles recorre a alguns exemplos de atividades que comporiam as funções das magistraturas, como as relativas à fiscalização e ao policiamento. Nessa linha, há nítido aspecto executivo na magistratura. Finalmente, o autor aponta os diversos tipos de tribunais:

O tribunal que julga agentes devedores; o que decide sobre os delitos públicos; aquele que decide entre os simples particulares e os magistrados em casos de contestação de penas pronunciadas; aquele que se ocupa dos processos relativos a atribuições particulares, que tenham certa importância; além disso, o tribunal para os estrangeiros e o que toma conhecimento das acusações de homicídio.[3]

A partir de autores contratualistas, como John Locke e Montesquieu, o princípio da separação de poderes ganha o status de garantidor da propriedade e liberdade no sentido em que se manifestam tais expressões na modernidade. Conhecida, por exemplo, a formulação francesa contida no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 no sentido de que “Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”.

John Locke, especialmente no Segundo tratado sobre o governo[4], vai estabelecer a seguinte divisão: 1) poder legislativo; 2) poder executivo; 3) poder federativo; 4) prerrogativa. Em linhas gerais, tem-se: a) o poder legislativo como poder supremo da comunidade, cuja função era criar as regras jurídicas; b) o poder executivo como executor e aplicador de tais leis; c) o poder federativo como o responsável pelas relações externas e de direito internacional; d) a prerrogativa como a possibilidade de tomadas de decisões urgentes, como nos casos de guerra.

O poder legislativo, divido em duas câmaras, tinha as seguintes características, segundo o próprio autor:

Primeiro: governar por meio de leis estabelecidas e promulgadas, que não poderão variar em certos casos, valendo a mesma regra para ricos e pobres, para favoritos na corte ou camponeses no arado. Segundo: tais leis devem ter o único fim do bem do povo, excluindo todos os demais. Terceiro: não devem lançar impostos sobre a propriedade do povo sem o consentimento deste, dado diretamente ou através dos deputados eleitos. E essa imposição se refere somente aos governos quando o legislativo é permanente ou quando o povo não reservou nenhuma porção de poder legislativo para deputados a serem por ele escolhidos de tempos em tempos. Quarto: o legislativo não deve nem pode transferir o poder de legislar a quem quer que seja, ou fazer dele outra coisa que não indicado pelo povo.[5]

No plano institucional proposto pelo autor, a partir da leitura de Canotilho, o poder legislativo era exercido por um Parlamento composto pela Câmara Baixa ou Câmara dos Comuns e pela Câmara Alta ou Câmara dos Lordes. A Coroa, por sua vez, exercia os poderes remanescentes (executivo, federativo e prerrogativa), a partir de instituições como o Governo, Administração e Tribunais. Desse modo, o Poder Judiciário não se apresentava com autonomia.[6]

Montesquieu, por sua vez, tinha como modelo para sua teoria a Constituição inglesa, em que pesem as diversas críticas contra tal modelo como apto a demonstrar, realmente, a separação entre os poderes. De todo modo, é conhecida sua formulação no Espírito das Leis no sentido de que quem detém o poder tende a abusá-lo, devendo-se separá-los para que se tenha a garantia da liberdade. Para o autor, em cada Estado há três tipos de poder: 1) poder legislativo; 2) o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes; 3) o poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Eis as competências de cada um:

Como o primeiro, o príncipe ou magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz e a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado.[7]

A ausência de liberdade com a conjugação dos poderes num único corpo é passagem igualmente clássica na obra do autor, nestes termos apresentada:

Quando, na mesma pessoa ou corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.

Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.

Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.[8]

Novamente, partido do comentário de Canotilho, ao se comparar ambos os esquemas institucionais, tem-se que as principais diferenças são: “1) autonomização do poder judiciário; 2) inclusão dos poderes federativo e prerrogativo no âmbito do executivo”.[9]

Finalmente, coube a James Madison, nos famosos Federalist papers, a influente teorização sobre necessidade de freios e contra pesos aos poderes, tão cara ao constitucionalismo brasileiro. Eis trecho representativo, no famoso artigo 51:

Então, a que meio devemos afinal recorrer, para manter na prática a necessária repartição de poder entre os diversos departamentos, tal como é estabelecido na Constituição? A única resposta que pode ser dada é que, como todas essas disposições exteriores se mostraram inadequadas, a insuficiência deve ser suprida imaginando a estrutura interna do governo de tal modo que as suas partes constituintes possam, através das suas relações mútuas, constituir os meios de manter–se umas às outras nos devidos lugares.[10]

No decorrer da exposição, Madison propõe, concretamente, mecanismos de freios e contra pesos, como: 1) indicação de membros de um poder por outro, com os cuidados que tal prática merece; 2) poder de veto; 3) independência orçamentária e garantias sobre os vencimentos recebidos por cada membro de poder.

Feita essa breve resenha, a qual, obviamente, merece o devido cuidado e aprofundamento, o qual será feito, em parte, em sala de aula, proponho o seguinte exercício de fixação:

Escolha um dos autores estudados e relacione de que forma as ideias apresentadas inspiraram os diversos dispositivos constitucionais em torno da organização dos Poderes. Nesse estudo, busque a competência típica e não típica de cada um dos Poderes e os respectivos mecanismos de freios e contra pesos.

[1] ARISTÓTELES. Política. Tradução de Nestor Silvera Chaves. São Paulo: Lafonte, 2012.

[2] ARISTÓTELES. Ob. cit. P, 182.

[3] ARISTÓTELES. Ob. cit. P, 189.

[4] LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução: Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2006.

[5] LOCKE, John. Ob. cit. P, 104-105.

[6] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7a ed. Coimbra: Editora Almedina, 2003. p, 580-581.

[7] MONTESQUIEU. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005. P, 167-168.

[8] MONTESQUIEU. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005. P, 167-168.

[9] CANOTILHO, J.J. Gomes. Ob. cit. P 581.

[10]MADISON, James. O federalista nº 51. Disponível em: https://perguntasaopo.files.wordpress.com/2010/06/fed51.pdf. Acessado em: 31/01/2016.

Divulgando artigo aprovado para apresentação e posterior publicação no XXIV Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI): “A crise da representação política a partir do ativismo judicial, do lobby e da corrupção da democracia”. O tema insere-se no grupo de trabalho “Teorias da democracia”. Eis o resumo:

O presente artigo tem por objetivo analisar a crise da democracia representativa partindo das três características clássicas do princípio representativo: 1) separação de poderes; 2) eleições; 3) publicidade. Quando um regime democrático não consegue respeitar esses princípios, tem-se uma crise nas instituições capaz de corromper por completo a democracia. Tomam-se como ponto de partida as considerações em torno das dificuldades que a representação política apresenta entre as vontades de representantes e representados, para, em seguida, analisar-se fenômenos que tendem a impactar negativamente aquelas três características elencadas: 1) o ativismo judicial; 2) o lobby; 3) a corrupção política. O texto conclui que: 1) o ativismo é postura inaceitável, eis que pautado em decisionismo contrário ao texto da Constituição; 2) o lobby pode ser atividade aceitável, desde que regulamentado e efetivado com contraditório e transparência; 3) a corrupção política causa profundo desequilíbrio na representação, eis que proporciona mais influência àquele que recebeu vantagens indevidas.

No segundo semestre a íntegra do texto estará disponível, para quem tiver interesse.


Este texto poderia muito bem se chamar “criminalidade world wide”, “delitos.com”, “barbaridades sem fronteiras” ou coisa do tipo. É incrível como, num rápido clique em sites de notícias, alguns deles estrangeiros, somos bombardeados por manchetes nessa linha: 1) “SwissLeaks: révélations sur un système international de fraude fiscale”[1] ou “SwissLeaks: revelações sobre um sistema internacional de fraude fiscal”, em tradução livre; 2) “Leaked cables show Netanyahu´s Iran bomb claim contradicted by Mossad”[2] algo como “Informações vazadas mostram que a alegação de Netanyahu sobre a bomba iraniana foram contraditadas pelo Mossad”; 3) “Estado Islâmico sequestra dezenas de cristãos no nordeste da Síria”[3]; 4) “Lava-Jato: Denúncia contra políticos pela PGR deixa parlamentares apreensivos”[4]; 5) “PGR pede ao Supremo abertura de inquérito para investigar Agripino”[5]. Evidentemente, os exemplos poderiam ir muito mais longe.

Constata-se, através de tais leituras, práticas em tese tipificáveis como falsidades (agravadas sensivelmente em face da tentativa de justificar uma intervenção militar, repetindo-se a história de guerras baseadas em mentiras), atrocidades terroristas, corrupção, lavagem de dinheiro, desvio de recursos públicos e, no ponto que mais nos interessa no momento, delitos tributários, como demonstrado na primeira notícia transcrita.

O escândalo em torno do “SwissLeaks” ou, numa tradução literal, os “Vazamentos Suíços”, mostra, a partir de reportagem desencadeada pelo jornal francês Le Monde como a filial suíça do banco HSBC ajudou diversos clientes a cometerem delitos de sonegação fiscal e, possivelmente, lavagem de dinheiro. Os fatos já estão sob investigação na Receita Federal do Brasil e do Ministério Público Federal eis que, segundo as notícias, haveria mais de quatro mil contas abertas em tal agência no nome de brasileiros. Estima-se que mais de 180 milhões de euros transitaram por lá sem a devida incidência tributária.

Em outras palavras: enquanto boa parte do mundo precisa de dinheiro, especialmente países em desenvolvimento como o Brasil, alguns espertalhões endinheirados, ao invés de cumprirem seu dever fundamental de pagar tributos, resolveram elevar sua ganância a níveis inaceitáveis, contribuindo para que as já problemáticas promessas do Estado Social se tornassem ainda mais difíceis de serem alcançadas.

Não sejamos ingênuos: são diversos os fatores que levam ao malogro do Estado Social, desde a quantidade de finalidades a que se propõe alcançar (corretíssimas, diga-se de passagem, mas que, realmente, demandam larga burocracia estatal, nem sempre exercida de modo eficiente) até a ocorrência de desvios dos recursos públicos que deveriam ser corretamente empregados na concretização dos direitos sociais. Por outro lado, é conhecida a alegação de que o Estado Social, apesar de se afirmar como um corretivo ao Estado Liberal, eis que reconhece as desigualdades de fato existentes na sociedade e busca superá-las, limitou-se a atacar as desigualdades econômicas, deixando de lado, por exempo, diversas ofensas às minorias culturalmente discriminadas. É por isso que há autores que sustentam ser o atual Estado Democrático de Direito o modelo de organização humana capaz de transformar, efetivamente, a sociedade.[6]

Nenhum desses percalços, no entanto, pode justificar a sonegação fiscal, principalmente quando praticada por mera ganância, a saber, por pessoas que dispõem de recursos para pagar tributos. Segundo as notícias, algumas das contas de nacionais franceses existentes no HSBC suíço são de grandes empresários, jogadores de futebol ou ricos homens de negócios. Comprovada a autoria de cada um nas fraudes fiscais, todos mereciam ir para a cadeia.

Não se trata de retórica ou mera “sanha persecutória” de um integrante do Ministério Público: no meu caso específico e da ampla maioria de meus colegas, há clara noção de que a prisão é medida excepcional, seja a prisão preventiva ou mesmo a prisão após o trânsito em julgado, eis que, em delitos apenados mais brandamente, haverá a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos.

Ocorre que sonegar tributos é sim um crime grave. Tomando em conta a legislação brasileira, tem-se que delitos contra a ordem tributária praticados mediante fraude, nos termos de quaisquer dos incisos do art. 1º da Lei 8.137/90, possuem pena de 2 a 5 anos de reclusão, o que autoriza até mesmo intercepção das comunições telefônicas ou a decretação de prisão preventiva, se existentes, evidentemente, os demais requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal.

A gravidade é justificada tamanha a relevância do bem jurídico o qual se busca proteger, qual seja, a integridade do erário, essencial para o desenvolvimento das relevantes políticas públicas almejadas pela sociedade. Mesmo em sociedades como brasileira, na qual se aponta majoritariamente a alta carga tributária que pesa sobre todos, tal assertiva não pode ser aceita como justificável para a prática de delitos.

Aliás, a própria previsão legal acerca da suspensão da punibilidade e da prescrição em face de parcelamentos de créditos tributários outrora alvo de sonegação, culminando, ainda, com a extinção da punibilidade após o pagamento deles, é questionável (art. 9º da Lei 10.684/03). Ora, a consumação do delito já se efetivara, sendo relevante o posterior pagamento, quando muito, em aspectos de dosimetria da pena. Além do mais, tem-se uma discriminação inaceitável: o Estado pune penalmente somente os pobres, os quais não dispõem de recursos para pagar suas dívidas, nem através de parcelamento. Os ricos, cuja conduta foi ainda mais reprovável, eis que dispunham, provavelmente, de recursos desde a origem para cumprir o dever fundamental de pagar tributos, acabam beneficiados pela sua ganância em enriquecer às custas da arrecadação tributária. Inaceitável.

[1] http://www.lemonde.fr/economie/article/2015/02/08/swissleaks-revelations-sur-un-systeme-international-de-fraude-fiscale_4572319_3234.html. Acessado em: 24 de fevereiro de 2015.

[2] http://www.theguardian.com/world/2015/feb/23/leaked-spy-cables-netanyahu-iran-bomb-mossad. Acessado em: 24 de fevereiro de 2015.

[3] http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/02/estado-islamico-sequestra-dezenas-de-cristaos-no-nordeste-da-siria.html. Acessado em: 24 de fevereiro de 2015.

[4] http://oglobo.globo.com/brasil/lava-jato-denuncia-contra-politicos-pela-pgr-deixa-parlamentares-apreensivos-15408486. Acessado em: 24 de fevereiro de 2015.

[5] http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/02/pgr-pede-ao-supremo-abertura-de-inquerito-para-investigar-agripino.html. Acessado em: 24 de fevereiro de 2015.

[6] STRECK, Lênio; Morais, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria do estado. 8ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. Kindle edition. Posições 1590/1824.

Por “lobby”[1] compreende-se a atividade de pessoas físicas ou jurídicas voltadas para os Poderes Públicos com a finalidade de que estes pratiquem certo ato afeto a suas atribuições no interesse daquelas. No âmbito legislativo, assim, o lobby atua quando pretende a aprovação de certo projeto de lei tido como importante para o grupo de pressão correspondente, o qual, por sua vez, pode compreender associações de classe, sindicatos, confederações, etc. A análise do lobby insere-se no contexto da crise do sistema representativo.

Numa democracia como a brasileira, a qual consagra, como não poderia deixar de ser, a liberdade de associação como direito fundamental, além de diversos direitos que buscam conferir cada vez mais participação política do cidadão, como o direito de petição, tem-se como justificável a atuação de tais grupos.[2] Nessa linha, partindo-se da constatação de que a representação política não pode ser considerada acabada simplesmente após a eleição, deve-se garantir que quaisquer grupos interessados possam conversar e informar os parlamentares quando em debate projeto de lei de seus interesses. O problema é saber como se dá esse tipo de contato.

No Brasil, não há lei regendo a atividade dos grupos de pressão. O projeto de lei nº 1.202/2007[3], da relatoria do Deputado Carlos Zarattini, busca profissionalizar tal função, prevendo, por exemplo: 1) o cadastramento prévio de todos os grupos de pressão que atuam perante o Congresso Nacional, buscando-se transparência na atuação deles;[4] 2) a necessária oitiva de grupo com interesses contrapostos àquele que iniciou o lobby, como forma de se preservar um mínino de contraditório.[5]

A atuação dos grupos de pressão, exercida de fato hoje no Brasil, ocorre preferencialmente no âmbito das comissões permanentes do Congresso Nacional e de cada uma de suas Casas. Como se sabe, as comissões são previstas no art. 58 da Constituição Federal de 1988, o qual aponta que as mesmas serão “constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.” Enio Zampieri descreve como ocorre tal atuação: 1) primeiramente, o grupo de pressão tenta influenciar o Presidente da comissão, para que este indique relator para a matéria de interesse do grupo com perfil mais favorável ao grupo representado; 2) em seguida, a atuação do lobby volta-se para difundir informações ao Relator escolhido, tentando influenciar seu parecer; 3) finalmente, quando do momento da votação do projeto, os lobistas podem adotar duas posturas, difundindo informações contrárias à tese esboçada no ato do relator ou em apoio a ele, dependendo do conteúdo do parecer proferido.[6]

A efetividade e o poder de influência dos lobistas não são uniformes em cada uma dessas fases. O mencionado autor parte da análise de modelos sociológicos de tomada de decisões políticas no âmbito do Poder Legislativo para associá-los a cada uma das fases antes referidas. Tais modelos são: 1) distributivista; 2) informacional; 3) partidário. Através do primeiro, a decisão política é tomada levando em conta, primordialmente, algum ganho efetivo para o parlamentar e seu reduto político, sendo este o móvel primordial do Presidente da comissão ao nomear um relator. O segundo momento é aquele que informa o parecer do relator, tendo as informações a ele trazidas peso essencial para a confecção do ato. É o momento de maior influência dos grupos de pressão. Finalmente, o modelo partidário refere-se ao momento da votação do projeto na comissão e determina que, caso haja algum interesse partidário ferido com tal proposição, é a atuação do partido quem vai determinar como seus parlamentares devem votar, deixando pouquíssimo espaço para o lobby.[7]

É preciso, urgentemente, regulamentar e profissionalizar a atuação dos lobistas no Brasil. Da forma como efetivada hoje, o lobby pode sim constituir a porta de entrada para aquele reduto obscuro da democracia, como tratado em outro post, correspondente à corrupção e à degradação da política. Negociações às escuras, em total segredo, com oferecimento de vantagem indevida para confecção de pareceres no processo legislativo não é situação meramente ilustrativa: há espaço para tal prática. E aqui reside mais um drama da política e do processo penal: tal forma de corrupção, mesmo com a regulamentação do lobby, pode muito bem continuar a ocorrer, muito embora em menor grau.

Eis uma das razões pela qual a sociedade sempre terá necessidade do processo penal. É um fatalismo, mas é uma necessidade real.

[1] A expressão “lobby” significa “ante-sala” ou “salão de espera”, servindo para designar a atividade ora em análise porque esta se desenvolve justamente nos locais que antecedem o plenário das casas legislativas, eis que vistos como preferenciais para a tomada de decisões políticas.

[2] Samantha Ribeiro Meyer-Pflug fundamenta o exercício do lobby a partir de diversos dispositivos constitucionais (art. 1º, V; art. 2º; art. 5º XXXIV, LXX e LXXIII; art. 14; art. 31, §3º; art. 37, §3º; art. 61, caput e §2º; art. 74, §2º; art. 144; art. 198, III; art. 204, II) os quais consagram a participação política da sociedade sob diversos aspectos. Em seguida, sustenta que: “Verifica-se que apenas o direito de petição aos poderes públicos (Art 5º, XXXIV), já seria suficiente para demonstrar a possibilidade de lobby na busca de interesses diversos junto aos órgãos públicos. Entretanto, verificou-se que o texto constitucional possui inúmeros dispositivos que conclamam a participação popular.
O lobby é a prática lícita, uma vez que nos encontramos em uma sociedade democrática baseada na soberania popular. Qualquer cidadão tem o direito de expressar sua opinião e tentar influenciar o processo decisório, desde que pautando-se nos princípios constitucionais.
Noutro falar, o lobby pode representar uma grande contribuição ao processo legislativo, e sua regulamentação o legitimaria como parte desse processo, afastando-o definitivamente da confusão entre a atividade do tráfico de influência e da corrupção. Longe de ser condenado, o lobby deve ser visto como um aspecto inerente à política democrática e ao repertório de seus instrumentos.” MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro; SERRAZES, Alessandra de Andrade; OLIVEIRA, Vitor Eduardo Tavares. A possibilidade de regulamentação do Lobby no Brasil. In.: Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI: Brasília, 2008. p, 587-605. p, 589-591.

[3] As primeiras tentativas de regulamentação do “lobby” ocorrem com os projetos de lei de autoria do Senador Marco Marciel (projeto de lei do Senado nº 25 e, em seguida, nº 203), os quais, apesar de avançarem na tentativa de dar transparência a tais atividades, apresentavam limitações, especialmente por não atentar para o “lobby” efetivado por associações de agentes públicos ou para aquele realizado no âmbito do Poder Executivo. RODRIGUES, Ricardo. A regulamentação do lobby no Brasil: leitura crítica de um projeto de lei. In.: Revista de Administração Pública, v. 30, n.1, p. 55-63, 1996.

[4] “Art. 3º. As pessoas físicas e jurídicas que exercerem, no âmbito da Administração Pública Federal, atividades tendentes a influenciar a tomada de decisão administrativa ou legislativa deverão cadastrar-se perante os órgãos responsáveis pelo controle de sua atuação, ao qual caberá o seu credenciamento.”

[5] “Art. 6º. É defeso à autoridade responsável pela elaboração ou relatoria de proposta de ato legislativo ou ato normativo em curso de elaboração ou discussão em órgão do Poder Executivo ou Legislativo apresentar Relatório ou voto diante de grupo de trabalho, comissão ou em Plenário sem que, tendo consultado ou atendido pessoa física ou jurídica credenciada para o exercício de atividades de ‘lobby’, haja propiciado igual oportunidade à parte contrária ao interesse atendido ou prejudicado pela matéria em exame.”

[6] ZAMPIERI, Enio. Ação dos grupos de pressão no processo decisório das comissões permanentes do Congresso Nacional. In: E-Legis – Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados: Brasília, set/dez. 2013. p, 122-136. p, 128-129.

[7] Idem. p, 132-135.

No post anterior, iniciei uma série de postagens sobre a democracia representativa e o princípio da representação política. Fala-se muito em crise da democracia na sua vertente representativa, partindo-se da premissa de que nossos representantes não representam, de fato, os interesses da sociedade. O enfrentamento dessa questão demanda uma análise prévia acerca das teorias que informam a relação entre as vontades dos parlamentares, de um lado, e de seus constituintes, de outro.

Sustentar que o representante tenha independência, a saber, não tenha que prestar contas de suas escolhas políticas frente seu eleitorado, compõe a teoria da duplicidade consagrada pela revolução francesa. A referência é feita à vontade da nação: em diversas constituições após a revolução francesa, o mandato imperativo, que apregoava a vinculação completa entre as vontades do representante e representado, foi proscrito.[1] Segundo Paulo Bonavides:

A “duplicidade” foi o ponto de partida para a elaboração de todo o moderno sistema representativo, nas suas raízes constitucionais, que assinalam o advento do Estado liberal e a supremacia histórica, por largo período, da classe burguesa na sociedade do Ocidente. Com efeito, torna-se aí o representante politicamente por nova pessoa, portadora de uma vontade distinta daquela do representado, e do mesmo passo, fértil de iniciativa e reflexão e poder criador. Senhor absoluto de sua capacidade decisória, volvido de maneira permanente – na ficção dos instituidores da moderna idéia representativa – para o bem comum, faz-se ele órgão de um corpo político espiritual – a nação, cujo querer simboliza e interpreta, quando exprime sua vontade pessoal de representante.[2]

Diversos fundamentos apontavam a correição da teoria da duplicidade, muitos deles ligados à falta de preparo técnico dos representados para, isoladamente, apresentarem uma vontade séria para alcance de seus interesses. Era a posição, por exemplo, de Montesquieu, para quem o povo não tinha qualquer preparo para discutir os assuntos públicos, sendo, por outro lado, totalmente preparado para escolher seus representantes.[3]

Sendo correta a ideia de que o representante, uma vez eleito, passa a representar a todos e não somente quem o elegeu, tem-se como perigosa, por outro lado, a consagração de uma independência total, a qual possa ser utilizada a bel prazer dos representantes. A crescente desconfiança dos representados frente os representantes fez, paulatinamente, fragilizar o modelo clássico preconizado pela teoria da duplicidade, abrindo espaço para o surgimento de diversas instituições e mecanismos limitadores dessa vontade independente dos representantes, tais como: 1) partidos políticos, cuja fidelidade ideológica é exigida em face de seus membros; 2) grupos de pressão; 3) a tecnocracia; 4) o referendo; 5) plebiscito; 6) a iniciativa popular das leis; 7) limitações temporais ainda mais restritas aos mandatos, como a adoção, em alguns sistemas, do recall. Todas essas inovações, em maior ou menor medida, corroboram a atual teoria da identidade entre as vontades do representante e representado, da qual decorre a ideia de mandato imperativo.

Georges Burdeau assim caracteriza a teoria da identidade e do mandato imperativo:

O mandato imperativo seria um mandato análogo ao mandato de direito privado, o qual seria confiado pelos eleitores aos eleitos e que teria como conseqüência para estes a obrigação de se conformar com as instruções recebidas, prestando contas e sendo responsáveis em relação a seus eleitores. O mandato imperativo foi formalmente proibido na maioria das constituições francesas e implicitamente por todas. Essa proibição se explica naturalmente e decorre do fato de que o deputado não é o representante de sua circunscrição, mas, juntamente com seus colegas, o de toda a nação e de todo o povo.[4]

A vinculação proposta pelo mandato imperativo, assim, comportaria gradações, tendo seu ponto máximo na total identidade entre a vontade do representante e a do representado, como se estivessem numa relação contratual de direito privado. Por outro lado, a atual quadra do princípio representativo mostra que as constituições não adotam essa versão mais radical do mandato imperativo, mas, tampouco, adotam o princípio da duplicidade[5].

Como elencado anteriormente, basta a existência de instrumentos de democracia semi-direta, como o plebiscito ou referendo, para não se cogitar mais do respeito à total independência do representante e ao que preconizado pela teoria da duplicidade. Disposições como aquelas foram inseridas, por exemplo, na Constituição Federal de 1988, com o claro intuito de ampliar a participação política, deixando claro que a representação não esgota a democracia.

A representação política na forma de mandato imperativo encontra sérios obstáculos, tamanha a dificuldade em se representar interesses de grupos, para além, portanto, da representação dos interesses e da vontade de uma única pessoa. John Fairlie, nessa linha, assim conclui:

Concluindo, pode ser dito que raramente, quando muito, uma pessoa pode representar completamente outra pessoa individualmente considerada, a não ser que ligada por instruções definitivas. Na prática, contudo, em tais casos, tanto o escopo da autoridade como o alcance da discricionariedade variam largamente. Quando uma pessoa representa um grupo e ainda mais quando um número de pessoas representam diferentes grupos, o problema se torna ainda mais complicado. Instruções específicas ou promessas em assuntos particulares da política podem ser oferecidas, ou a decisão final pode se referir àqueles que são representados; mas se um número considerável de questões deve ser considerado, tais procedimentos, na melhor das hipóteses, envolveriam prolongados atrasos, e tornariam a decisão definitiva e a execução virtualmente impossíveis. Os membros de uma assembleia ou conselho representando um corpo maior de constituintes terão necessariamente um maior grau de discricionariedade. Ao mesmo tempo, se os membros devem ser considerados em certo sentido substantivo como representantes, eles devem respeitar o peso dos desejos e dos interesses daqueles que eles representam.[6]

A atual fase do princípio representativo, com as nuances da teoria da identidade, mostra como é difícil instrumentalizar a vontade do povo através de instituições representativas. Sem dúvidas, tais dificuldades já autorizam a busca cada vez mais crescente por instâncias participativas, as quais, no entanto, devem conviver com os órgãos representativos, no afã de melhorar estas instituições. As relações entre democracia representativa e participativa, no entanto, merecem aprofundamento posterior.

[1] BURDEAU, Georges; HAMON, Francis; TROPER, Michel. Direito constitucional. 27ª ed. Barueri: Manole, 2005. p, 171. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p, 207-210.

[2] BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros. p, 203.

[3] “A grande vantagem dos representantes é que eles são capazes de discutir os assuntos. O povo não é nem um pouco capaz disso, o que constitui um dos grandes inconvenientes da democracia. Não é necessário que os representantes, que recebera, daqueles que os escolheram uma instrução geral, recebam outra particular sobre cada assunto, como se pratica nas dietas da Alemanha. É verdade que, desta maneira, a palavra dos deputados seria a melhor expressão da voz da nação; mas isto provocaria demoras infinitas, tornaria cada deputado o senhor de todos os outros, e nas ocasiões urgentes, toda a força da nação poderia ser retida por um capricho.” MONTESQUIEU, Charles de Secondat Baron de. O espírito das leis. Tradução: Cristina Murachco. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p, 171.

[4] Idem. p, 171.

[5] Eis o atual estágio da representação política, segundo Paulo Bonavides: “a duplicidade sobrevive de maneira formal na linguagem dos textos constitucionais, em alguns países; noutros as Constituições vão enxertando no corpo híbrido os instrumentos plebiscitários que supostamente acarretariam a identidade pela fiscalização severa estendida sobre o mandato representativo, com quase todos os políticos procedendo de forma um tanto hipócrita, abraçados à ficção imperante da identidade. A identidade, todavia, já se acha ultrapassada nos fatos pela pulverização daquela suposta vontade popular, canalizada e comunicada oficialmente à sociedade através de grupos de pressão, e estes, por sua vez, se alimentando na fechadíssima minoria tecnocrática, titular em última instância de vastos poderes de representação, dos quais se investe de maneira não raro usurpatória”. Idem. p, 215.

[6] Idem. p, 466. “In conclusion, it may be said that seldom, if ever, can any person completely represent even another single person unless bound by definite instructions. In practice, however, even in such cases, both the scope of authority and the range of discretion vary widely. When one person represents a group, and still more when a number of persons represent different groups, the problem becomes  much more complicated. Specific instructions or pledges on particular matters of policy may be given, or the final decision may be referred to those who are represented; but if a considerable number of matters are to be considered, such procedure would at best involve prolonged delays, and would make definitive decision and action all but impossible. The members of an assembly or council representing a larger body of constituents will almost necessarily have large range of discretion. At the same time, if the members are to be considered in any substantial sense as representative, they should give weight to the interests of those who are represented”.

A ideia de que uma pessoa possa representar a vontade de outra, no âmbito da política, é controverso. Se no direito civil o contrato de mandato, instrumentalizado pela procuração, proporciona controle efetivo e responsabilização do representante frente o representado, a complexidade ínsita à representação da vontade política põe obstáculos à responsabilização do representante.

Tal complexidade pode ser desenvolvida sob diversos aspectos: 1) a representação da vontade política não é algo estanque, eis que a vontade ou os interesses do representado podem muito bem se alterar com o tempo, como, por exemplo, entre a eleição de seu representante e a votação de projeto de lei de seu interesse; 2) o representado nem sempre pode estar bem informado sobre o direito que supõe possuir; 3) em temas complexos e cada vez mais técnicos, como a tributação, a vontade do representante pode estar mais bem informada, eis que dispõe de corpo técnico para assessoramento.

Evidentemente, tais argumentos favoráveis à representação podem ser contrastados com os seguintes: 1) apesar de a vontade e os interesses serem cambiantes, cabe aos representantes buscar identificar os interesses de seus “mandantes”, não importando as dificuldades; 2) igualmente, cabe aos poderes públicos e, em especial, aos representantes do povo, proporcionar meios para adequada informação do povo, possibilitando a tomada de decisões mais responsáveis por estes; 3) o avanço da tecnocracia, a saber, a captura da democracia representativa por instâncias pretensamente mais aptas a decidir em face de sua formação técnica, já é um mal em si, por afastar da política o cidadão comum; assim, tal formação técnica não deve ser vista como vantagem.

Em certa medida, cada um daqueles argumentos aparentemente contrários à vontade do povo e pretensamente elitistas, podem, em realidade, consistir no oposto, dependendo de como se dará seu uso efetivo. Veja-se, por exemplo, que, para Alexander Hamilton, a eleição de homens mais preparados e conhecedores dos princípios da política econômica consistiria verdadeira garantia para o povo, já que aqueles teriam mais condições, na formulação da política econômica, de “evitar expedientes opressivos, ou que busquem sacrificar qualquer classe particular de cidadãos em busca da obtenção de receitas” [1]. Se isso realmente ocorrer na prática, tem-se que não há um mal ínsito nessa modalidade de representação.

Por outro lado, é conhecida a crítica de Rousseau não somente às teorias da duplicidade ou da identidade, mas ao sistema representativo como um todo. Partindo da premissa de que a soberania não pode ser representada ou alienada, também a vontade não poderia ser objeto de representação. Nessa linha sustenta que “os deputados do povo não são, nem podem ser seus representantes; não passam de comissários seus, nada podendo concluir definitivamente. É nula toda lei que o povo diretamente não ratificar; em absoluto, não é lei.”[2]

Georges Burdeau, por outro lado, encontra resposta à crítica contumaz que Rousseau dirige ao sistema representativo, no que tange àquela incapacidade de o representante representar a vontade do representado. Aponta que a eleição “não é um tipo de exame profissional e a escolha não se fundamenta nas competências técnicas, mas nas orientações políticas”. Assim, os representantes podem muito bem representar os interesses dos representantes, eis que estes escolhem, no contexto eleitoral, “mais uma política do que homens”.[3]

Reconhecendo-se que a democracia direta pode conviver com a democracia representativa, cabe à sociedade e ao Estado buscar o aprimoramento desta. Nessa linha, não deve ser vista como insuperável a posição radical de Rousseau. A superação da crise de representação política, necessariamente, passará pelo debate em torno das teorias da duplicidade e da identidade entre as vontades do representante e representado, assunto para outras postagens.

[1] Alexander Hamilton já professava essa ideia nos artigos federalistas, sustentando a necessidades de representantes que conhecessem a fundo os princípios da política econômica serem eleitos, ante a complexidade técnica de tais tarefas: “There is no part of the administration of government that requires extensive information and a through knowledge of the principles of political economy so much as the business of taxation. The man Who understands those principles best will be least likely to resort to oppressive expedients, or to sacrifice any particular class of citizens to the procurement of revenue”. “Não há parte da administração do governo que requeira mais informação ou completo conhecimento dos princípios da política econômica que os negócios afetos à tributação. O homem que entenda desses princípios será o melhor para evitar expedientes opressivos, ou que busque sacrificar qualquer classe particular de cidadãos em busca da obtenção de receitas”. MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. The federalist papers. Article 35. New York: Oxford World´s Classics. p, 185.

[2]  Idem. p, 186/187. Paulo Bonavides, no entanto, aponta que essa primeira formulação radical de Rousseau, exposta no Contrato Social, é posteriormente abrandada, quando o autor começa a admitir, pelo menos, a existência do mandato imperativo, como forma de evitar a corrupção do corpo representativo. Tal pensamento é expressado na obra “Considerações sobre o governo da Polônia”. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p, 214.

[3] BURDEAU, Georges; HAMON, Francis; TROPER, Michel. Direito constitucional. 27ª ed. Tradução de Carlos Souza. Barueri: Manole, 2005. p, 173-174,

A publicidade é característica fundamental das instituições representativas, eis que possibilita aos representados o controle dos agentes do poder, que devem praticar seus atos às claras. Norberto Bobbio aponta os riscos em torno dos segredos da democracia, partindo de algumas promessas que o regime democrático fez e não cumpriu:

A democracia, considerada ao menos idealmente como a melhor forma de governo, muitas vezes é acusada de não cumprir suas promessas. Não manteve a de eliminar as elites no poder; não manteve a promessa de autogoverno; não manteve a promessa de integrar a igualdade formal com a substantiva, e com escassa frequencia – curiosamente – a acusam também de não conseguir aniquilar o poder invisível.[1]

Bobbio parte de constatações da democracia italiana para apontar três ocorrências perniciosas em tal regime, envolvendo justamente o poder que se oculta e que oculta suas práticas. Ele elenca três ocorrências desses fenômenos, sendo as duas primeiras de uma semelhança assustadora com a realidade brasileira.

Primeiramente, aponta que “existe um poder invisível que se dirige contra o Estado e que se conforma com o mais absoluto segredo para combatê-lo”.[2] Bobbio refere-se às organizações criminosas, como a máfia italiana, e a grupos terroristas, os quais, apesar das diferenças quanto aos fins, possuem semelhantes formas de atuação, caracterizada na prática de: furtos, assaltos, sequestros e homicídios.[3]

Como dito, a lição poderia muito bem se aplicar ao Brasil. Organizações criminosas poderosas afrontam o poder estatal, não raro atuando de dentro do próprio sistema prisional, como ocorre, por exemplo, com o comando vermelho ou o primeiro comando da capital, organizações que se destacam com sua torpe fama. Nas favelas e outras regiões mais pobres das grandes cidades, além disso, é corriqueira a atuação das chamadas “milícias”, outra forma de organização criminosa que, a pretexto de prestar certos serviços à população, alguns deles tipicamente estatais como segurança pública, recorrem a todo tipo de expediente violento para garantir seus lucros e poder vil. Forma-se, assim, uma esfera de poder criminosa na própria sociedade, a qual se vê sequestrada e sem qualquer liberdade para, seriamente, escolher seus representantes, eis que tais corpos se interpõem de maneira totalmente ilegítima entre sociedade e Estado, buscando capturar políticos.[4]

A tendência de infiltração de tais organizações criminosas no poder político, maculando a representação legítima, leva à segunda caracterização de Bobbio, quando aponta que “o poder invisível se forma e organiza não só para combater o poder público, mas também para obter benefícios ilícitos e alcançar vantagens não consentidas caso a ação ocorresse à plena luz”.[5] O exemplo por ele trazido refere-se às associações secretas, como a maçonaria, envolvida, na Itália, com escândalos relativos ao petróleo. Novamente, a semelhança com o caso brasileiro é evidente: substitua-se a maçonaria por empreiteiras que obtiveram contratos superfaturados, após fraudes em licitação com a Petrobras e, sem seguida, dividiram propina com agentes públicos, para se ter um dos maiores escândalos de corrupção e desvio de dinheiro público em nosso País, como restou público e notório no contexto da investigação “lava-jato”.

Por último, Bobbio aponta os riscos que os serviços secretos, existentes nos mais variados países, acarretam para a democracia representativa, quando não há controle efetivo desse ramo estatal, oculto por natureza, pelos detentores do poder legitimamente constituídos. Em outras palavras: essa instituição oculta do próprio Estado só se justifica quando sua atuação seja supervisionada pelos cidadãos e se dirija unicamente para a defesa da democracia.[6]

Como dito, as duas primeiras manifestações dos poderes ocultos, na lição de Bobbio, são as que mais de perto tocam a realidade brasileira. Facilmente se constata a degeneração do princípio representativo quando se tem a atuação de organizações criminosas contra o Estado ou trabalhando em associação com este, tamanho os danos causados com: 1) a instalação do medo nos representados e a completa falta de liberdade na hora da eleição; 2) a captura de agentes políticos que passam a representar, mesmo que em campos específicos da administração púbica, os interesses de tais organizações, que se impõem pela corrupção e através do oferecimento e recebimento de vantagens indevidas.

Nesse campo, o princípio da representação política merece proteção através do direito penal. Caso os esforços preventivos mostrem-se insuficientes, somente com forte atuação repressiva por parte dos órgãos de segurança pública, bem como por parte do Ministério Público e do Poder Judiciário, ter-se-á o reestabelecimento da representação popular anteriormente roubada.

[1] Bobbio, Norberto. Democracia y secreto. Tradução para o espanhol: Ariella Aureli e José F. Fernández Santillán. México D.F.: Fondo de Cultura Económica: 2013. Kindle Edition, posição 286. “La democracia, considerada al menos idealmente como la mejor forma de gobierno, a menudo es acusada de no cumplir con sus promesas. No mantiene la de eliminar lãs elites em el poder; no mantiene la promesa de autogobierno; no mantiene la promesa de integrar la igualdad formal con la sustantiva, y com escasa frecuencia – curiosamente – se le acusa también de no lograr aniquilar al poder invisble.”

[2] Idem. Posição 300. “En primer lugar, existe un poder invisible que se dirige contra el Estado y que se conforma en el más absoluto secreto para combatirlo.”

[3] Idem. Posição 300.

[4] A realidade carioca ilustra essa forma de atuação das organizações criminosas no período eleitoral, como pode ser constatada na seguinte notícia, cuja manchete é: “Força tarefa vai combater atuação de milícias nas eleições do Rio.” O seguinte trecho já demonstra a forma de atuação de tais grupos: “Uma semana depois do início do período eleitoral, milícias e facções criminosas já articulam estratégias para se beneficiarem do domínio territorial. Só os paramilitares mantêm 184 áreas no estado, segundo levantamento da Secretaria de Segurança. Em comparação com as campanhas eleitorais anteriores, os grupos passaram a ser mais discretos na disputa por votos, mas não ficaram menos violentos ao exigir o pagamento de taxas aos interessados em panfletar em seus redutos.
Prova disso é o cartaz rasgado no Conjunto Habitacional Dom Pedro I, em Realengo, na Zona Oeste, do qual restou apenas a moldura de madeira e parte do que parece ser um número de candidatura. Episódios como esse, somados às denúncias que chegam ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) alertando para a existência de currais eleitorais em várias regiões, levaram o presidente do órgão, desembargador Luiz Zveiter, a criar uma força-tarefa para combater a atuação do crime organizado”. Disponível em:  http://www.prerj.mpf.mp.br/noticias/o-globo-forca-tarefa-vai-combater-atuacao-de-milicias-nas-eleicoes-do-rio/

[5] Idem, posição 300. “En segundo lugar, el poder invisible se forma y organiza no solo para combatir al poder público, sino también para obtener benefícios ilícitos y recabar ventajas no consentidas por una acción a plena luz.”

[6] Idem. Posições 300-314.

Parlamento inglês

É democrática a existência de representantes profissionais eleitos para o Congresso Nacional especificamente pelas associações de classe, numa espécie de eleição indireta? Através da representação profissional, tem-se um sistema no qual há deputados do povo e Deputados profissionais, como, por exemplo, dos profissionais liberais, eleitos pela respectiva entidade de classe.

A questão pode ser ainda mais aprofundada: é democrática a previsão de representação profissional constante numa certa Constituição? Problematizando ainda mais, imagine-se que tal Constituição não foi outorgada, mas sim democraticamente confeccionada. Uma Constituição nesses moldes poderia albergar dispositivos não-democráticos?

As provocações vão além, evidentemente, do âmbito do Direito Constitucional positivo, alcançando a teoria da constituição e, especialmente, a filosofia política. Sem dúvidas, somente uma concepção de democracia adequadamente fundamentada é a que poderá fornecer uma resposta à questão acerca de normas constitucionais não-democráticas numa Constituição promulgada.

Lendo ao clássico “Ciência Política”, do mestre Paulo Bonavides[1], aprendi, surpreso, que a Constituição de 1934 previa a representação profissional no sistema eleitoral por ela delineado, dessa forma:

Art. 23 – A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos mediante sistema proporcional e sufrágio universal, igual e direto, e de representantes eleitos pelas organizações profissionais na forma que a lei indicar.

1º – O número dos Deputados será fixado por lei: os do povo, proporcionalmente à população de cada Estado e do Distrito Federal, não podendo exceder de um por 150 mil habitantes até o máximo de vinte, e deste limite para cima, de um por 250 mil habitantes; os das profissões, em total equivalente a um quinto da representação popular. Os Territórios elegerão dois Deputados.

2º – O Tribunal Superior de Justiça Eleitoral determinará com a necessária antecedência e de acordo com os últimos cômputos oficiais da população, o número de Deputados do povo que devem ser eleitos em cada um dos Estados e no Distrito Federal.

3º – Os Deputados das profissões serão eleitos na forma da lei ordinária por sufrágio indireto das associações profissionais compreendidas para esse efeito, e com os grupos afins respectivos, nas quatro divisões seguintes: lavoura e pecuária; indústria; comércio e transportes; profissões liberais e funcionários públicos.

4º – O total dos Deputados das três primeiras categorias será no mínimo de seis sétimos da representação profissional, distribuídos igualmente entre elas, dividindo-se cada uma em círculos correspondentes ao número de Deputados que lhe caiba, dividido por dois, a fim de garantir a representação igual de empregados e de empregadores. O número de círculos da quarta categoria corresponderá ao dos seus Deputados.

5º – Excetuada a quarta categoria, haverá em cada círculo profissional dois grupos eleitorais distintos: um, das associações de empregadores, outro, das associações de empregados.

6º – Os grupos serão constituídos de delegados das associações, eleitos mediante sufrágio secreto, igual e indireto por graus sucessivos.

7º – Na discriminação dos círculos, a lei deverá assegurar a representação das atividades econômicas e culturais do País.

8º – Ninguém poderá exercer o direito de voto em mais de uma associação profissional.

9º – Nas eleições realizadas em tais associações não votarão os estrangeiros.

Pensava-se que, dada a complexidade técnica crescente de temas afetos à legislação, justificada estava, dentre outros fatores, a previsão de uma representação profissional.

É fácil constatar, seguindo a lição do autor citado, como tal forma de representação é manifestamente antidemocrática. Como escancaradamente demonstrado logo no caput do dispositivo acima transcrito, logo se vê verdadeira cisão entre os eleitores, totalmente injustificada sob o ponto de vista do princípio da igualdade, conduzindo a criação de duas espécies de cidadãos: o “povo” e os profissionais liberais.

Pior: levando em conta que a Constituição delegava à Lei a forma de eleição dos Deputados das profissões (§3º), não parece absurdo supor que um eleitor profissional liberal poderia votar num deputado do povo, alcançando diretamente sua representação, e, além disso, poder contar com representante eleito indiretamente por sua entidade de classe. É o fim do sistema “one man, one vote”.

Felizmente, tal forma de representação não se repetiu nas Constituições seguintes, as quais, gradativamente, com avanços e retrocessos, alcançaram o sistema de sufrágio universal hoje vigente. Para superar as dificuldades em torno do enfrentamento de temas específicos do conhecimento humano, cada vez mais crescentes numa legislação típica de sociedade de massas do Estado Social, coube ao Parlamento a criação das comissões técnicas, aptas a auxiliarem os parlamentares justamente em temas complexos como tecnologia, economia ou medicina, cedo ou tarde objeto da legislação.

Hoje em dia é recorrente criticar de modo aberto o sistema representativo, apontando suas deficiências no que tange ao distanciamento entre candidatos e eleitores. De um modo geral, o sistema eleitoral, no mundo e no Brasil, é alvo de diversas impugnações como a mencionada, quase fazendo ressurgir o ideário do mandato imperativo como forma de superação dos problemas da representação.  O mandato imperativo, a saber, aquele que preconiza a condição do eleito como verdadeiro fantoche do eleitor, cuja vontade é àquele vinculativamente imposta, pode ser alvo de diversas reservas, tais como: 1) a ofensa à independência do eleito, o qual não ascendeu ao cargo eletivo para representar somente um eleitor; 2) a existência, dentro dos eleitores de certo candidato, de forte heterogeneidade de ideias, pelo menos em pontos específicos dos temas gerais defendidos. Ora, num quadro desse tipo, deve-se mesmo privilegiar a independência do eleito, o qual cabe buscar, a seu juízo, a melhor forma de representar os interesses gerais de seus eleitores.

Isso não quer dizer, evidentemente, que não se deve buscar mais participação e mais deliberação ética na política. Mas isso é assunto para outro momento.

[1] BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p, 370.

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É muito enriquecedor estudar o desenvolvimento dos conceitos jurídicos a partir das concepções de Estado presentes na história das relações humanas. Iniciando-se pelo Estado Liberal até a evolução encontrada com o Estado Social e o contemporâneo Estado Democrático de Direito, percebe-se como a ideologia em torno de cada uma dessas formas de organização altera substancialmente o entendimento sobre os mais diversos direitos encontrados num dado ordenamento.

A doutrina faz tal evolução ao iniciar o estudo, por exemplo, dos direitos fundamentais, concebendo-os como direitos de primeira, segunda ou terceira dimensão. Mesmo certos direitos que, a princípio, surgiram sobre uma matriz liberal, sofrem visível transformação com o transcurso do tempo, como se tem com o direito de propriedade: liberal por essência, sua concepção absoluta ganha contornos sociais e relativizados sob a égide do Estado Social, ampliando-se ainda mais para uma perspectiva ambiental, de acordo com o ideário do Estado Democrático de Direito.

A teoria geral do processo não está imune a esta tipologia evolutiva, podendo-se traçar características marcantes e diferenciadas entre, por exemplo, o papel da jurisdição naqueles variados tipos de Estados. Luiz Guilherme Marinoni[1] faz esta evolução, concentrando-se especialmente nas características e limites da cognição judicial sob a égide do Estado Liberal. Seu intuito é demonstrar como a ideologia liberal não é compatível com a cognição judicial sumária, principalmente quando propicia decisões liminares sem ouvir a parte contrária.

A cognição judicial, como se sabe, pode ser sumária ou exauriente. Através da primeira, o juiz decide com base em juízo de verossimilhança, muitas vezes sem ouvir a parte contrária, a fim de evitar a concretização de um ilícito ou de remover os efeitos dele, exista ou não dano. Não há, nesta fase processual, uma ampla produção probatória, mas somente provas, na maioria das vezes documentais, pré-constituídas pelo autor. Por outro lado, a cognição exauriente é aquela típica das sentenças de mérito em que houve um amplo esgotamento da fase instrutória, com o exercício do contraditório e a produção das mais variadas provas. É evidente que a efetivação de tal cognição é mais demorada.

O Estado Liberal é aquele surgido logo após as revoluções burguesas, tendo a liberdade sob o aspecto formal como seu principal guia. Nesse sentido, a liberdade dos cidadãos frente ao Estado deveria ser protegida a todo custo, entendendo-se que era justamente tal ente que mais poderia violar os direitos fundamentais. Sendo o juiz uma manifestação do poder estatal, os juízes também poderiam ser os algozes de tais direitos.

Nesse ponto, é necessário esclarecer a origem desse receio acerca da atividade judicante. O desprezo da ideologia liberal em relação aos juízes foi mais fortemente encontrado na França, pois lá, à época do antigo regime absolutista, os juízes claramente apoiavam tais monarquias, sendo considerados aliados da nobreza e do clero. A burguesia, assim, tinha motivos para desconfiar do Poder Judiciário.

Não é também de se surpreender que o juiz, na feição liberal, fosse caracterizado como “boca da lei”, tendo a expressão o intuito de demonstrar que o juiz deve, unicamente, declarar o disposto naquele documento aprovado pelos representantes do povo. Tal formulação tinha o nítido intuito de buscar: 1) segurança jurídica, pois não se poderia admitir que os juízes expressassem opinião própria desvinculada do texto legal, no julgamento das questões postas; 2) a referida proteção do cidadão contra o arbítrio do Estado-Juiz, o qual poderia ser mais facilmente controlado se estritamente vinculado à lei.

O Estado Liberal, desse modo, proibia os juízos de verossimilhança porque acreditava que a mencionada segurança jurídica somente poderia advir após a prolação de uma única decisão no curso do processo, a qual deveria der baseada, necessariamente, na cognição exauriente. Admitia-se, assim, a prolação de uma sentença, não de uma decisão liminar. Este fundamento liga-se à defesa do cidadão contra o arbítrio do Estado Juiz: este somente pode ser controlado se for dada ao litigante a chance de se defender adequadamente, respeitando-se de modo absoluto o contraditório. Desse modo, este não poderia ser jamais diferido. A conclusão é fácil: uma modelo que não admita o diferimento do contraditório não pode mesmo chancelar juízos sumários e decisões liminares.

É certo que a simples constatação acrítica acerca da superação do paradigma do juiz como “boca da lei” não pode ser admitida, sob pena de se abrir caminhos para decisionismos. No entanto, sabe-se que o processo, na feição atual, não pode deixar de admitir a cognição sumária e os diversos mecanismos de tutela de urgência, tamanha as situações de risco vivenciadas no mundo contemporâneo, seja um ilícito ambiental ou ofensas ao direito à honra e à imagem, dentre tantas outras violações e ameaças aos direitos fundamentais.

Tais riscos são mais sentidos a partir da complexidade crescente das relações sociais existentes no mundo pós-revolução industrial e globalizado, eventos históricos sempre relacionados ao Estado Social e ao Estado Democrático de Direito. Mas isso é assunto para outro post!

 

 

 

[1] MARINONI, Luiz Guilherme. Processo Cautelar. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p, 44-62.

Na tipologia clássica das formas de governo proposta por Aristóteles na obra Política[1], tem-se a monarquia como governo de um soberano, algo que não seria ruim em si, mas que poderia se transformar numa forma corrompida, a tirania, essa sim nefasta para os homens. Na sua análise, a aristocracia (governo dos mais preparados, como os sábios) e democracia (um governo do povo, com todas as limitações históricas com termo possui) completariam os quadros atinentes às formas típicas de governo, sendo que também estas duas últimas poderiam se corromper, originando a plutocracia e a demagogia, respectivamente.

Autores como Políbio[2], na obra História, tem uma visão pessimista e, necessariamente, trágica sobre o caminho de todas essas as formas virtuosas de governo: inevitavelmente, elas tendem sim à degeneração, perfazendo um círculo vicioso entre o apogeu da monarquia, da aristocracia e da democracia e a devassidão da tirania, plutocracia e demagogia. O autor sustenta que a superação desse estado de coisas poderia ocorrer com uma Constituição mista, como a romana, a qual internalizava as três formas de governo virtuosas em suas instituições, fazendo com que se impedisse a degradação delas, quebrando-se esse círculo vicioso.

Nas concepções clássicas dos autores citados, assim, não há uma clara percepção no sentido de que a monarquia, em si mesma, já é uma forma de governo completamente aberrante. A tirania, na verdade, é o agravamento de uma já nefasta corrente de ideias, que exalta: 1) os privilégios de nascimento; 2) a consequente transmissão hereditária do poder; 3) a vitaliciedade no exercício do poder; 4) desprezo pela meritocracia.

Buscando superar esses valores, a República é normalmente associada a ideias como: 1) igualdade entre os cidadãos, não se admitindo privilégios de classe; 2) aquisição de poder, pelos agentes estatais, através de eleições ou concursos públicos; 3) alternância no poder; 4) respeito à meritocracia. O republicanismo, no entanto, vai além dessas corretas formulações, estipulando que o cidadão detém deveres em relação à sociedade, além dos direitos já consagrados nas leis e na Constituição.

Esses deveres republicanos impõem uma maior participação do cidadão na vida pública, servindo para justificar, por exemplo, porque o voto em nosso País ainda é obrigatório. Além disso, não é qualquer participação que contenta o republicanismo, mas sim uma participação não somente voltada para os interesses pessoais, mas também gerais.[3]

O Ministério Público é uma das instituições vocacionadas para a promoção e proteção daqueles valores republicanos antes citados. Não é a única, mas, tendo em vista a configuração constitucional dada a seus membros, é, sem dúvidas, a mais importante em aspectos de repressão. Nessa seara, seja através de ações de improbidade administrativa, seja através de ações penais, o Ministério Público exerce parcela de poder na tentativa de reprimir: 1) a institucionalização do “jeitinho” brasileiro; 2) a confusão entre público e privado; 3) a perpetuação de sujeitos que, em face do poder político ou econômico que eventualmente possuam, supõem serem soberanos, inimputáveis em face da força da suposta tradição de seus nomes.

Todos aqueles que, no seu cotidiano, baseiam suas condutas em valores monárquicos, sempre buscando levar qualquer tipo de vantagem nas relações sociais ou impor sua vontade particular aos espaços estatais de deliberação, que devem visar ao interesse público, são verdadeiros representantes, ainda hoje, das Monarquias. Esses procuradores da Monarquia sentem-se acima das leis e da Justiça, e agem autoritariamente sempre que demandados pelo Ministério Público. É evidente que o Ministério Público pode abusar de suas funções. Quem busca reparação judicial contra tal tipo de arbitrariedade, logicamente, não está se esquivando de seus deveres republicanos. No entanto quem: 1) ameaça membros do Ministério Público em face de sua função; 2) ameaça testemunhas; 3) busca impedir, através de habeas corpus, investigação lícita e com justa causa; 4) captura agentes públicos através da corrupção; 5) pretende se perpetuar no poder através de interpostas pessoas, como prefeitos que são meramente marionetes de seus antecessores; 6) quem financia campanha eleitoral para, com a vitória do beneficiário do investimento, cobrar a conta através de contratos administrativos normalmente precedidos de licitações fraudadas; 7) privilegia seus parentes ou partidários por simples interesse ideológico, em detrimento de escolhas técnicas; certamente sentem-se reis absolutistas.

A conduta desses usurpadores não encontra respaldo na ampla maioria da sociedade brasileira. Sendo certo que o “jeitinho brasileiro” ainda, infelizmente, subsiste, é igualmente incontroverso que parcela significativa do povo brasileiro converte-se em verdadeiros procuradores da República: eles simplesmente não admitem as práticas descritas no parágrafo anterior e querem a proscrição total das mesmas. Desde junho do ano passado o Brasil viu uma clara manifestação a favor de mais participação, com temas de interesse público em pauta, com educação, transporte e combate á corrupção. É mais um exemplo de vivência, por parte da sociedade, desses valores republicanos.

Os Procuradores da República oficiais e demais membros do Ministério Público não diferem, essencialmente, em nada dessa parte da sociedade brasileira. A diferença é formal, tendo em vista simplesmente a investidura em cargo público. Um dos grandes desafios em fazer parte do Ministério Público é saber que, quando se denuncia tais práticas monárquicas, a reação é, normalmente, explosiva: afinal, os soberanos, quando começam a ser enquadrados na Lei, não admitem perder a majestade.

Havendo justa causa, no entanto, o jogo em prol da República começa a ser virado. Após a instrução processual e a confirmação de provas que se espera produzidas pela acusação, é possível a condenação por parte do Poder Judiciário, fazendo com que a corrupção de nossa democracia, tal qual ocorria nas clássicas formas de governo, seja impedida.

É uma honra poder contribuir, nos estritos termos da Constituição, para que tais finalidades sejam alcançadas. É emocionante estar no Ministério Público Federal há um ano.

 


[1] Aristóteles. A política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. São Paulo: Lafonte, 2012.

[2] POLÍBIO. História. Brasília:Unb, 1996.

[3] SARMENTO, Daniel; NETO, Cláudio Pereira de Souza. Direito constitucional – teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2012. Pos. 7769, Kindle Edition.