Arquivos para Ministério Público e Democracia

Divulgo texto escrito por mim e pelo colega Ulisses Reis, professor efetivo da UFERSA e doutorando pela UFC, no qual abordamos criticamente os fundamentos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal para conferir status supralegal aos tratados de direitos humanos incorporados ao sistema jurídico brasileiro. O estudo concentrou-se no voto do Ministro Gilmar Mendes, por ter sido aquele que mais explorou tal tese.

O referido voto apresenta a seguinte estrutura: i) introdução doutrinária e jurisprudencial acerca dos possíveis status dos tratados de direitos humanos; ii) necessidade de mudança jurisprudencial no STF tendo em vista “a abertura cada vez maior do Estado constitucional a ordens jurídicas supranacionais”, recorrendo-se à doutrina de Peter Härbele e às diversas constituições de outros países para justificar sua tese; iii) menção aos arts. 4ª, 5º §§, 2º, 3º e 4º da Constituição Federal de 1988 como premissas para o entendimento acerca da supralegalidade e da mudança jurisprudencial; iv) análise da prisão civil do devedor fiduciante à luz do “princípio” da proporcionalidade; e v) conclusão, apontando a tese já citada e a necessária revisão da jurisprudência.

As questões a serem suscitadas, a partir dessas considerações, são: i) a doutrina, por si só, pode influenciar na alteração da jurisprudência mesmo contra a Constituição?; ii) as Constituições de outros Estados podem justificar a mudança jurisprudencial?; e iii) os dispositivos da Constituição Federal mencionados são suficientes para fundamentar a conclusão acerca da supralegalidade dos tratados de direitos humanos e da consequente “eficácia paralisante” deles? A análise detalhada de tais pontos demonstrará se a judicialização da questão foi resolvida de modo ativista ou não.

O texto vai apontar, a partir da diferenciação entre judicialização e ativismo judicial, que: i) a doutrina estrangeira, sobretudo alemã, não apresenta maiores contribuições à análise da questão, pelo simples fato de que a Constituição brasileira não apresenta uma norma semelhante ao art. 25 da Lei Fundamental alemã, a qual consagra o caráter supralegal expressamente; ii) o recurso ao direito comparado não pode ser utilizado como artifício para incorporação de teses não albergadas pelo sistema jurídico brasileiro, devendo-se recorrer somente às fontes deste; iii) os dispositivos invocados pelo relator não são suficientes para fundamentar a tese, pois são normas de cunho principiológico incapazes de derrogar regras igualmente constitucionais, as quais apontam para o caráter legal de qualquer tratado de direitos humanos, a menos que submetido ao procedimento previsto no art. 5º, §3º da Constituição.

Em anexo, eis o texto completo, com o aprofundamento das ideias acima mencionadas. Seria uma honra contar com a ajuda de vocês para melhorá-lo, ficando os autores, desde já, gratos por eventuais críticas enviadas por e-mail.

Ulisses Reis – Emanuel Melo – Hierarquia Tratados DH – Pro Homine – Ativismo Judicial

  1. Introdução

A expressão punitivismo é utilizada neste texto como sinônimo de busca pela punição a qualquer custo, o que ocorre quando os órgãos da persecução penal – polícia, Ministério Público e Poder Judiciário – afastam-se do direito positivo e das razões jurídicas para argumentar moral e politicamente, ocupando espaço institucional que a Constituição não lhes confere[1].

Um exemplo marcante acerca das consequências do punitivismo foi vivenciado por mim quando uma pessoa amiga de minha família pediu nossa ajuda tendo em vista que seu filho havia sido preso. Prontamente me dispus a auxiliar e, após ler todo o inquérito policial, parecer do Ministério Público estadual e a decisão judicial que deferiu a prisão preventiva, fiquei atônito e indignado com o que havia sido feito, ante a manifesta falta de provas para se efetivar uma medida dessas. Adiante detalhei o caso. Por hora, basta dizer que entre a prisão e a respectiva revogação pelo próprio juiz foram 10 dias de prisão indevida.

  1. Punitivismo e violação à Constituição

Direito pode ser compreendido como um conjunto de normas que buscam regular a conduta humana em sociedade. Normas podem ser compreendidas como proposições prescritivas, ou seja, conjunto de signos linguísticos que determinam um padrão de “dever-ser”. A juridicidade, então, é a marca distintiva das normas que compõem o Direito e ela é alcançada a partir da análise das fontes deste. A principal fonte do Direito, inegavelmente, é a produção legislativa que corresponde à Constituição.

Ocorre que esta vem sendo usada retoricamente para a configuração de inconstitucionalidades meramente inventadas para a superação de regras jurídicas postas pela autoridade com competência para tanto, no caso, o Poder Legislativo. O uso retórico é efetivado a partir de um apelo rápido aos princípios jurídicos, numa vertente pós-positivista idealista preconizada, por exemplo, pelo Ministro Luis Roberto Barroso. A estratégia é: se não concordo uma regra jurídica prevista no Código de Processo Penal ou na Lei de Organizações Criminosas, ou, pasmem, até mesmo na Constituição, devo apelar aos princípios jurídicos para que a solução que entendo correta seja aquela aplicada pelos tribunais. Com isso, reabre-se inconstitucionalmente deliberações já tomadas e positivadas pela autoridade legislativa com poder para tanto.

Exemplos: a) criação judicial da condução coercitiva mesmo contra as regras do CPP; b) concessão de benefícios de colaboração premiada não previstos na lei, com a homologação judicial mesmo diante da regra que garante ao juiz a análise da legalidade do acordo; c) execução provisória da pena após julgamento em segunda instância, mesmo diante da regra prevista na própria Constituição. O último caso é o mais gritante, eis que envolve “reponderação” de norma constitucional por parte de juízes[2].

Não sou especialista na mente humana. Mas posso arriscar um pouco acerca da naturalização e internalização das posturas punitivistas entre os oficiais que aplicam o direito penal e processual penal. A internalização das práticas ilegais (benefícios de colaboração premiada sem previsão legal, prisões preventivas com clara finalidade sancionatória, criação judicial de hipóteses excepcionais de segregação, como a condução coercitiva, manifesto desprezo pelas demais medidas cautelares previstas pelo direito posto) é facilitada pela: a) disseminação de tais teses pelas redes sociais e, especialmente, pelos grupos de whatsapp dos respectivos agentes; b) pelo apoio incondicional de parte da mídia acerca de tais práticas, sendo corriqueira a adesão de muitos desses oficiais às posições externalizadas por jornalistas, cuja conversão em juristas de ocasião demonstra a falta de zelo, para dizer o mínimo, na busca pela autonomia do Direito e pelas razões exclusivamente jurídicas que todos aqueles que passaram pelos bancos de uma Faculdade de Direito deveriam ter.

Esses pressupostos, dentre outros, contribuíram para a afirmação de posturas irracionais demonstradas, por exemplo, no apoio incondicional a campanhas como as “10 medidas contra a corrução”, a qual este próprio autor aderiu. O pensamento acrítico, favorecido pelo discurso fácil, repetido e midiático em torno do “combate a corrupção” levou diversas pessoas, como eu, a apoiarem medidas que, em parte diminuta, poderiam até melhorar a prestação jurisdicional, mas que, fundamentalmente, apresentavam inconstitucionalidades típicas de regimes de exceção, com a inviabilidade prática do habeas corpus, para citar o exemplo mais gritante. O apoio irrefletido às conduções coercitivas poderia ser outro exemplo.

Com a disseminação de posturas desse tipo, quem mais perde, como há muito tempo ocorre, são aquelas pessoas mais desfavorecidas e vulneráveis, como o protagonista da história descrita neste texto.

  1. Um pranto contra uma prisão arbitrária

Era início da noite quando eu e minha esposa fomos surpreendidos com a ligação da portaria do condomínio apontando que receberíamos uma visita inesperada. A cena triste vivenciada em seguida me persegue: aos prantos, uma mãe implorava por ajuda em face da prisão de seu filho.

Obviamente, minha reação foi a de exercer pronto auxílio. Mas, logicamente, não sou imprudente: antes precisava ler todo o inquérito policial, manifestações do Ministério Público e, claro, a própria decisão judicial. Para facilitar, vou denominar a pessoa presa indevidamente de Josef K[3].

Tratava-se de suspeita de participação em latrocínio, estando Josef K. no mesmo carro no qual executada a vítima, a qual era seu empregador e estava indo ao banco para depositar determinada quantia. Os agressores, aparentemente, tinham essas informações e fizerem o ataque. Logo após o fato, Josef K., buscando resguardar o dinheiro que não fora apreendido em face da fuga dos criminosos, o entregou a outro empregado da empresa, após ligar para este pedindo ajuda.

Anos depois, a autoridade policial, realizando oitiva em relação a indivíduo que teria participado daquela abordagem criminosa, obtém declaração deste apontando que as informações sobre o deslocamento da vítima tinham sido repassadas por Josef K. No termo de depoimento, constava o nome completo de K., o que prontamente me surpreendeu: como tal declarante sabia, precisamente, do nome completo do delatado? Apontar uma parte do nome ou alguma característica física é algo corriqueiro entre pessoas que se unem para cometer crimes, sendo completamente não usual o conhecimento do nome completo. Havia fundadas suspeitas, assim, de um depoimento prestado sem a voluntariedade devida, com imposição de nomes previamente pela autoridade policial.

Qual a postura correta ante tal delação? Evidentemente, promover mais diligências investigatórias a fim de obter algum outro elemento de prova. Questões como: a) como foi o acerto financeiro entre os envolvidos?; b) como se conheceram?; c) por que o dinheiro foi devolvido, já que a outra pessoa no carro seria um dos membros do grupo criminoso? Quebra de sigilo telefônico era uma medida básica a ser adotada, já que a eventual existência de ligações telefônicas entre os suspeitos revelaria algum nível de contato ente eles.

Pois bem, nada disso foi feito e a autoridade policial, de modo completamente arbitrário, fez pedido de prisão preventiva, com base, unicamente no depoimento de outro suspeito.

Qual a postura do Ministério Público e do Poder Judiciário no caso?

Inicialmente, logo após tal depoimento, o Promotor de Justiça oficiante adotou postura prudente, requisitando à autoridade policial a reinquirição de K, tendo em vista a incriminação que lhe fora feita. Somente após tal petição ministerial é que fora feito o pedido de prisão pela autoridade policial, a qual, no entanto, não deu cumprimento à requisição ministerial. Ou seja: entendeu por bem fazer o pedido de prisão mesmo diante das diligências determinadas.

Quando vi isso nos autos, supus que o membro do Ministério Público, ao receber o pedido de liberdade provisória para emitir parecer, iria opinar prontamente pela revogação da prisão. Afinal, se a prisão fosse a medida adequada, ele mesmo poderia ter solicitado isso ao invés de solicitado as diligências complementares.

Mas o punitivismo falou mais alto.

Entendendo que havia motivos para a prisão, mesmo, repita-se, sem qualquer fato novo em relação ao que já fora analisado pelo mesmo Promotor de Justiça, o membro oficiante opinou favoravelmente à manutenção da prisão. A prudente manifestação anterior cedeu à visão de que, uma vez preso, certamente haveria motivo para tanto. Conversando com o colega, este deixou escapar o real motivo do parecer: tratou-se de um crime que chocou a comunidade e precisava haver algum tipo uma resposta oficial das autoridades. E eu pensei, não crendo no que escutava: mesmo que o custo disso seja a prisão de um inocente.

Nesse dia, quando retornei para casa, eu chorei com minha esposa diante de tanta barbaridade feita em nome do Direito.

Mas a batalha não estava perdida. Aliás, cada vez mais, eu me envolvia no caso e estava decidido, se fosse necessário, a impetrar habeas corpus e despachar com o desembargador pessoalmente. Felizmente, isso não foi necessário.

Conversando com o juiz, juntamente com o advogado de K., conseguimos convencê-lo do erro em se deferir uma prisão preventiva sob fundamento de ordem pública e conveniência da instrução criminal quando se tem somente a declaração de outro suspeito e nenhuma conduta concreta acerca de possível dilapidação de provas, até porque os fatos eram antigos.

Corrigindo o erro inicial, foi revogada a prisão.

O senhor K. passou 10 dias preso indevidamente, não estando com sua família e filhinha de apenas 2 meses em pleno dia dos pais. Enquanto isso, os reais criminosos não são identificados.

Vale a pena lutar contra o crime desrespeitando a Constituição?

[1] Não sou penalista nem processualista, mas estudo e pesquiso sobre Direito, sempre partindo da questão fundamental sobre o que significa dizer que algo (uma interpretação, uma conduta ou uma norma) merece a qualificação de jurídico. Além disso, tenho experiência na atuação cotidiana no processo penal, pois sou procurador da República há quase cinco anos. Metodologicamente, portanto, penso ser correta a abordagem teórica aprofundada sobre o que é uma razão ou um argumento jurídico com a crítica a alguns exemplos da prática processual penal que se encaixam completamente no campo da argumentação não jurídica a qual, por esse mesmo motivo, não deveria ser utilizada por agentes oficiais (juízes e membros do Ministério Público, especialmente).

Meu referencial teórico principal utilizado como ponto de partida é Herbert Hart, no clássico “O conceito de Direito”. Parto, portanto, da constatação de que Direito é a união de regras primárias e secundárias, sendo as regras primárias normas de conduta (“não roubar”, por exemplo) e as regras secundárias normas mais sofisticadas que apontam acerca da criação, modificação e julgamento daquelas outras regras. Nessa linha, até admito alguma criação judicial do Direito quando se está diante de normas de textura aberta (aquelas que contém expressões abertas como “razoável”, “manifestamente”, “boa-fé”, etc). Mesmo assim, juízes não podem dizer qualquer coisa sobre qualquer norma, devendo-se afastar completamente posições céticas sobre as normas jurídicas, demonstrando-se como certas interpretações do positivismo jurídico podem sustentar que as decisões judiciais busquem fundamentações adequadas à Constituição e não aos outros códigos não jurídicos, contribuindo fortemente para a crítica ao inconstitucional ativismo judicial.

[2] É papel dos órgãos de persecução penal aplicar o Direito. Qualquer convicção pessoal em torno, por exemplo, do abolicionismo penal tipo “em busca das penas perdidas”, de Zaffaroni e seu penalismo real marginal, não pode ser utilizado por membros do ministério público ou juízes tendo em vista os limites do Direito positivo no sistema jurídico brasileiro, o qual apresenta um direito penal que tende a ser cada vez mais máximo. Se há necessidade de mudanças, elas devem ser levadas a cabo pelo Poder Legislativo.

Ora, mas a mesma lição vale para os salvadores da pátria: caso se queiram normas penais completamente distintas das que temos hoje, não é o Poder Judiciário que pode criá-las. E mais: nem toda alteração seria admitida, tendo em vista as cláusulas pétreas previstas na Constituição. São obviedades que, desgraçadamente, precisam ser relembradas.

[3] Sei que no clássico “O processo”, de Kafka, o senhor K. sequer sabe do que está sendo acusado. Nessa linha, o paralelo não é perfeito, mas se justifica em face da perseguição processual penal, comum nos dois casos.

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Na próxima quinta-feira, dia 06/04, retornarei com muita alegria à UFERSA para conversar com os alunos sobre sistema penitenciário e possibilidades de superação através do reconhecimento do denominado Estado de Coisas Inconstitucional (ECI). Abordaremos temas como: a) caracterização do ECI; b) recepção do ECI no Brasil a partir da ADPF nº 347, analisando requisitos para admissibilidade da ação; c) limites de atuação do STF, entre o positivismo e o moralismo jurídico pós-positivista, a partir de alguns dos pedidos liminares elencados; d) riscos em torno da ineficácia da decisão final do STF, no contexto das denominadas “sentenças estruturais”.

Espero reencontrar alguns dos grandes amigos que fiz naquela instituição.

Até breve!

Texto dedicado à minha pequena e linda filha Sofia, que acabou de nascer.

Hoje nasceu minha linda e pequena filha. Certamente não vou conseguir expressar em palavras precisamente o que sinto, mas é um dever que me impus escrever pequenas linhas sobre esse evento marcante e repleto de renovação. Vou contar algumas sensações sobre a paternidade, a sociedade na qual vivemos, temores e, acima de tudo, esperança na construção de uma identidade pessoal cada vez mais aprimorada.

Tenho consciência de que, mesmo antes de nascer, minha filha já despertava esses sentimentos em mim, quando nem mesmo suspeitava a amplitude do poder que detinha sobre seu pai. Sofia chega ao meu mundo quando ainda engatinho pela Grécia antiga, a partir da Ilídia e da Odisseia. A riqueza intelectual dos clássicos tem me motivado, sendo um ponto de partida para a compreensão do papel do homem na sociedade em que vivemos. Eis uma das minhas preocupações desde já: como ser um bom pai em termos de educação cidadã? Como conduzir um filho para o mundo? Sem dúvidas, a conduta de Sócrates no seu momento capital, ainda hoje, teria muito a nos dizer sobre tamanha responsabilidade para com a comunidade. Eis o dever de cada um, em prol do interesse coletivo: renunciar a uma pretensão individual claramente egoística e desagregadora.

Descobri que seria seu pai no dia 7 de abril de 2016. Um telefonema de minha esposa, quando eu estava em viajem para a casa de meus pais no Iguatu, fez descortinar todo um novo mundo para mim. A condição de pai, que alcançaria aos 32 anos da minha vida, passou a despertar curiosidade, a qual era gradativamente saciada e ampliada mês a mês quando acompanhava as consultas médias e me maravilhava com minha filha ainda mais pequenina.

A emoção que sentíamos quando aquela pequena Sofia levava suas mãozinhas à boca, ainda no ventre materno, fazia lembrar a imensidão da vida na natureza. Todas as imagens esplendorosas da aurora ou do crepúsculo não seriam suficientes para descrever sua vinda.

Faltou sabedoria ao mundo neste ano triste para a humanidade. Veremos como os livros de história retratarão esse período das instituições, mas, com os olhares de hoje, penso que vivemos a era do rancor, da raiva e do egoísmo, valores tipicamente humanos que, quando superestimados, geram ódio. Falo com a mente voltada para a ascensão de pensamentos xenófobos, intolerantes e, naquilo que mais me revolta em sendo pai de uma menina, machistas. Penso, ainda, na revanche daqueles que inventam motivos para destituir presidentes democraticamente eleitos ou supõem que o Direito Penal é instrumento para mudanças estruturais na sociedade.

O milagre da vida simboliza o exato oposto. Sabedoria representa esperança.

Esperança de que, a partir de valores cristãos como a solidariedade, nos preocupemos mais com nossos colegas, amigos e, de um modo geral, concidadãos. Isso não nos converte, jamais, em seguradores universais, mas em cidadãos responsáveis que pensam no próximo. É indubitável que o individualismo exagerado, o consumismo e a apologia ao supérfluo sempre rondam nossa vida. O egoísmo é, reiteradamente, vendido como algo normal, cada vez mais amplificado pelo isolamento ideológico imposto pelas redes sociais.

O sentimento de comunidade, de ocupação legítima da praça pública e, acima de tudo, de esperança na transformação de cada um, sempre gerará um otimismo na vida, o qual, obviamente, não deve ser tratado com ingenuidade. De modo compreensível e também por responsabilidade nossa, parcela considerável da sociedade está desiludida com a vida: desemprego, miséria, doenças e violência assolam a própria cidade na qual minha filha viverá os primeiros anos de sua vida.

Por diversas razões, eu e minha esposa poderemos proporcionar uma vida com facilidades materiais à nossa filha. Há um ônus nisso: a referida compreensão solidária com os mais necessitados. Tal compreensão da exclusão social é essencial para, após os nossos vários momentos de diversão e brincadeiras, Sofia ter noção de que nem todas as crianças da sua cidade terão infância tão feliz quanto à dela.

Sofia perceberá desde muito cedo como o estudo e a leitura estarão presentes em sua vida. Ela estará rodeada por livros e, ainda hoje, enquanto escrevo este texto, eu próprio tenho planos voltados para aprimorar minha própria qualificação. Logo perceberá como seu pai, além de ter especial apreço por sua família, futebol e rock´n´roll, é também aficionado pelo Direito.

Ela também notará, no entanto, que até nisso sua vinda colocou minhas ideias em perspectiva: tudo mais é secundário enquanto eu estiver de mãos dadas com Sofia.

Com amor,

Seu pai.

Como é de conhecimento nacional, o Estado do Rio Grande do Norte passa por grave crise de segurança pública, a partir de diversos ataques aos prédios de órgãos públicos, ônibus de transporte urbano, dentre outros. A foto acima refere-se a um dos ataques vivenciados aqui em Mossoró na noite de ontem. Pelo que se indica na mídia, tem-se organizações criminosas atuando de dentro dos presídios do Estado, ordenando os ataques desencadeados, principalmente, a partir de instalação de inibidores de celulares por parte do Poder Público.

Este texto busca explicar parte das origens dessa crise, de resto vivenciada, de modo semelhante, em diversos outros Estados, como no meu Ceará. Para tanto, será evidenciada e criticada a ideia cada vez mais difundida a qual apregoa que “bandido bom é bandido morto”. Essa ideologia, sem dúvidas, contribuiu para o surgimento de organizações criminosas no âmbito do sistema penitenciário nacional, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), hoje dominando muitos dos Estados do Nordeste. Essencial à crítica é o recurso às ideias de Carl Schmitt, o polêmico pensador que exerceu influência no partido nazista alemão. Nesse ponto, sua concepção de política como dualismo amigo/inimigo ajudará a compreender porque, convenientemente, esquecemos das pessoas humanas que superlotam os presídios, cumprindo pena que, além da liberdade, retiram-lhes a dignidade.

A seguinte passagem Agassiz de Almeida Filho me chamou atenção para o aspecto penitenciário e a relação com a vontade de destruição do outro. O autor é preciso, apontando, com uma crueldade irrespondível, como o ser humano possui facetas degradantes:

“Não sejamos hipócritas. Não venha me dizer que devemos esquecer Carl Schmitt porque ele foi ligado ao nazismo ou porque a adoção do seu pensamento conduz inevitavelmente a uma ditadura. Você mesmo às vezes se flagra com medo ou com raiva das crianças que vivem nas ruas, gostaria, em alguns casos, que as forças de segurança apertassem ao máximo possível os menores infratores ou os viciados em crack que circulam pelas cidades do Brasil. E nossos presídios? Não há dúvidas de que em geral você não se importa com aqueles que se “hospedam” neles, como não há dúvidas também de que o tratamento dado aos detentos normalmente é desumano, ilegal e incompatível com a democracia. [1]

É preciso reconhecer: a responsabilidade por essa crise toda também é nossa.

Carl Schmitt é um influente pensador da Constituição e da Política. Falando um pouco para meus alunos de Direito Constitucional, ele será um dos autores analisados quando estudarmos o conceito político de Constituição. Filiado ao partido nazista alemão após convite feito por Martin Heidegger em 22 de abril de 1933[2], Schmitt defendia que o conflito era inerente à política, qualificado por um dualismo entre amigos e inimigos. A Constituição seria a decisão política fundamental imposta pelo grupo vencedor ao vencido, num contexto de animosidade pública: seu dualismo não se refere às disputas ou inimizades privadas.

Contrapondo-se fortemente às ideias de Kelsen, seja em relação ao positivismo ou à questão do guardião da Constituição, Schmitt apresenta concepção decisionista sobre o Direito: este, de modo algum, limitaria a política. A Constituição, entendida inicialmente em sentido absoluto, comporia como um dos seus sentidos a referida decisão política fundamental, sendo entendida como o próprio Estado: este não teria uma Constituição, ele seria a Constituição. Em sentido relativo, a Constituição designaria a existência de leis constitucionais, criticada pelo autor por albergarem temas que se distanciavam daquela decisão política fundamental imposta pelo grupo vencedor. É a partir daí que se pode desenvolver conceitos como o de Constituição em sentido formal e material.

Schmitt vai às últimas consequências quando fundamenta a política como conflito entre amigos e inimigos tendente à eliminação destes. O autor chega a justificar a eliminação física de inimigos do regime nazista, como, por exemplo, no episódio da “noite das facas longas”, no qual Hitler determinou a execução de diversos opositores políticos, até mesmo dentro do partido nazista. A passagem merece transcrição:

Em verdade o ato do Führer foi o exercício de uma autêntica judicatura. Ele não está sujeito à justiça, ele mesmo foi a justiça suprema. Não se tratou da ação de um ditador republicano que em um espaço vazio de direito, enquanto a lei por um instante fecha os olhos, cria fatos, as ficções da legalidade sem lacunas possam novamente ter lugar. A judicatura do Führer brota da mesma fonte do direito da qual brota também todo e qualquer direito de qualquer povo. Na necessidade suprema o direito supremo prova o seu valor e manifesta-se o grau mais elevado da realização judicantemente vingativa desse direito.[3]

Chocante? Mas não é isso mesmo que alguns pensam, de maneira desconcertante, quando apregoam que “bandido bom é bandido morto”? Vejamos uma das possíveis leituras em torno da formação do PCC, nas palavras da antropóloga Karina Biondi e como há relação entre aquela ideologia antidemocrática e tal evento:

Não é possível afirmar com precisão a data e as circunstâncias do surgimento do PCC. No decorrer da minha pesquisa, coletei diferentes versões sobre sua fundação: que teria sido em 1989, na Casa de Detenção do Carandiru; em 1991, em Araraquara; que se originou de outros grupos prisionais chamados Serpente Negra ou Guerreiros de David; ou que sua origem se deu em uma partida de futebol.

(…)

De acordo com essa versão, o PCC nasceu em 31 de agosto de 1993 por ocasião de um jogo de futebol entre o Comando Caipira e o Primeiro Comando do Capital, no Anexo da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, considerada uma das mais rígidas instituições carcerárias do país. A briga entre as equipes resultou na morte de dois integrantes do Comando Caipira. Para se protegerem dos castigos de funcionários da instituição, geralmente na forma de espancamentos, os jogadores do PCC firmaram um pacto no qual a punição de um dos integrantes do time enfrentaria a reação de todos os demais membros do time (Barros: 2006). Logo, os oito fundadores passaram a contar com apoio de outros presos. Mizael, um dos fundadores, redigiu um estatuto, no qual expressava a intenção de se organizarem para tentar evitar os maus tratos que diziam sofrer no sistema penitenciário e, ao mesmo tempo, regular as relações entre os presos, para que os maus tratos não partissem deles próprios. A orientação era a de que tinham de se unir (pois, afinal, compartilhavam uma mesma situação) para então reivindicar o que consideravam um tratamento digno no sistema carcerário. Em seguida, mulheres de alguns desses presos se reuniam na Câmara Municipal de São Paulo para discutir as condições do cárcere.

A criação do PCC é vista por muitos presos como o fim de um tempo no qual imperava uma guerra de todos contra todos, onde a ordem vigente era “cada um por si” e “o mais forte vence”.4

Tenha ou não sido especificamente a partir dos eventos desencadeados com essa partida de futebol que o PCC se formou é certo que os laços de solidariedade entre os membros de tal organização, deixando-os “juntos e misturados”, para utilizar a nomenclatura da autora citada, exerceram forte influencia no mundo do cárcere a partir do episódio, com a crescente adesão, por diversos motivos, por parte de outros presos. Será que o aniquilamento, a morte e o conflito sangrento em tal partida de futebol não era minimamente previsível por parte o Diretor do estabelecimento? A resposta parece certa e apta a demonstrar, mais uma vez, como cultivamos inimigos nos mesmos moldes apregoados por Schmitt.

É evidente que criminosos, após o devido processo penal, devem ser punidos e cumprir a pena devida. O problema é quando a sociedade e o Estado, simplesmente, esquecem da existência do sistema penitenciário e admitem o cumprimento da pena de modo cruel. A conveniente omissão propiciou a formação de verdadeiros ordenamentos do crime, como o citado acima. Mas as consequências são sentidas por todos, demonstrando como o tempo e a história são implacáveis diante de nossas condutas equivocadas.

Carl Scmitt é um autor fascinante. Ao caracterizar a política como conflito entre inimigos, compreendeu o pior da natureza humana a partir de sentimentos de ódio que estão dentro de cada um. Certamente, não é um autor liberal ou democrático. Mas nos ensina com um realismo cruel como deveríamos nos prevenir, a partir de uma leitura de certo modo às avessas de suas obras, para que a face mais degradante da humanidade não aflore.

Para prevenir isso, num Estado democrático como o nosso, bastaria cumprir a Constituição e a Lei de Execução Penal.

Mas para certas pessoas (inimigos) não existe esse negócio de “direitos humanos”, correto?

[1] FILHO, Agassiz de Almeida. 10 lições sobre Carl Schmitt. Petrópolis: Vozes, 2014. p, 10-11.

[2] ALVES, Adamo Dias; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni. Carl Schmitt: um teórico da exceção sob o estado de exceção. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, nº 105. P, 255.

[3] Como não tive acesso à obra original, retirei o trecho do mencionado artigo de Adamo Dias Alves e Marcelo Cattoni, os quais, por sua vez, utilizaram a obra de Ronaldo Porto Macedo Júnior, Carl Schmitt e a fundamentação do Direito. São Paulo: Max Lionad, 2001. P, 221.

Mais um semestre se inicia na Universidade Potiguar (UnP) e retomamos os estudos em Direito Constitucional. A abordagem de temas relacionados à teoria da Constituição e do controle de constitucionalidade é instigante, de modo que escrevo este pequeno texto como uma forma de introduzir aos alunos os problemas acerca da inconstitucionalidade que enfrentaremos no decorrer do semestre.

Nossa obra fundamental será o “Curso de Processo Constitucional”, de Dimitri Dimoulis e Soraya Lunardi, cuja finalidade é bem interessante: promover um estudo participativo a partir da leitura de textos e entendimento dos temas sem recurso à “decoreba” ou mera memorização de dispositivos da Constituição (essencial como recurso didático, especialmente para o professor, mas que, jamais, deve se converter em fim único ou último do processo de ensino).

Nessa linha, o autor vai propor, logo no início, a leitura de textos tais como: a) o voto do Juiz Marshall no famoso Marbury x Madison (1803), precedente que inaugura a declaração judicial de inconstitucionalidade de lei federal em face da Constituição; b) o artigo número LXXVIII de Alexander Hamilton, nos Feralist Papers, mostrando que a ideologia em torno do controle judicial de constitucionalidade não fora desenvolvida por aquele juiz, mas já se encontrava na teorização norte-americana.

Ao final do capítulo, o autor propõe um interessante exercício, perquirindo ao aluno como ele fundamentaria o controle judicial de constitucionalidade a partir da Constituição de 1988 se ela não contivesse as disposições típicas em torno do tema! Uma clara provocação ao raciocínio partindo do mencionado estudo de caso norte-americano, eis que lá o controle judicial fora desenvolvido sem qualquer norma constitucional expressa garantindo o poder de invalidar a lei por parte dos juízes.

Vamos investigar esse precedente com muita atenção, tecendo críticas à postura de Marshall, juiz claramente suspeito para atuar no caso.

As preocupações em torno da legitimidade democrática do controle de constitucionalidade e o confronto entre o poder dos Juízes e dos Parlamentos serão constantes. A declaração de contrariedade entre lei e Constituição é sensível e merece muita atenção, justificando, por exemplo, a competência de diversos atores para o exercício do controle de constitucionalidade, tais como Presidente da República, Parlamento e Juízes. Para demonstrar os inconvenientes em se deferir a uma única autoridade a guarda da Constituição, recorrerei a Carl Schmitt, criticando seu decisionismo, muito embora reconheça a importância em estudar a teoria do polêmico autor, especialmente para prevenir que muitas de suas ideias voltem a ser colocadas em prática. O debate daquele autor com Hans Kelsen será, igualmente, fundamental.

Nesse ponto, o controle político de constitucionalidade será levado a sério. Adotaremos a tese de que não há, necessariamente, qualidade institucional maior no controle judicial em detrimento do controle político. Para tanto, recorrerei a Jeremy Waldron e ao seu positivismo normativo. Para fazer o contraponto, este autor dialogará com seu mestre, Ronald Dworkin, forte defensor do controle judicial. Tais autores, dentre outros, também contribuirão para o estudo do controle de constitucionalidade numa perspectiva comparada entre Canadá, França, Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos.

Os clássicos autores nacionais também serão lembrados, é claro: desde Lúcio Bittencourt, Themistocles Cavalcanti e Alfredo Buzaid, com livros sobre controle de constitucionalidade já esgotados, mas que, felizmente, pude encontrar nos sebos virtuais.

O estudo da inconstitucionalidade e da sua tipologia encontrará em Marcelo Neves seu ponto de partida. Em obra rara, igualmente encontra nos sebos, o autor vai apontar sua compreensão sobre inconstitucionalidade formal, material, parcial, total, etc, como parte de sua dissertação.

A prática do controle de constitucionalidade no Brasil será estudada em seguida, seja a partir do controle difuso (exercido por qualquer juiz) até o controle concentrado (exercido pelo STF). Diversos problemas serão abordados: a) papel do Senado no controle difuso; b) limites para a superação de inconstitucionalidades por omissão; c) as dificuldades em torno da teoria dos motivos determinantes; d) os amici curiae como “amigos” da Corte ou de alguma das partes; e) as intervenções judiciais prematuras no âmbito do processo legislativo; f) o desvirtuamento da causa de pedir aberta, com claro intuito de colocar o STF num local indevido.

Preocupação igualmente constante será com os aspectos históricos, também no âmbito nacional. Estudaremos, por exemplo, em que medida a criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade atendeu, inicialmente, a meros reclamos de governo.

Finalmente, as técnicas de decisão serão abordadas no contexto da criação judicial do direito. A “legislação judicial”, na linguagem de Hart, será estudada no âmbito da discricionariedade judicial, bem como a justificativa que o autor confere a tal prática.

Muitos temas e uma grande responsabilidade: unir teoria e prática de modo claro. É plenamente possível e enriquecedor, sobre isso não tenho dúvidas. Mas os alunos precisam ler as indicações bibliográficas, sob pena de a aula não ser satisfatoriamente apreendida. Este sim é o maior desafio, cuja superação, no entanto, não depende do professor.

 

 

 

 

 

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Prezados, divulgo palestra sobre ativismo judicial, a ser realizada na UnP. Falarei sobre ativismo judicial e judicialização da política, a partir de textos de Luís Roberto Barroso, Lenio Streck e Daniel Sarmento. Como ponto de partida, no entanto, enfrentaremos o tema da discricionariedade judicial, a partir da teoria da interpretação de Hans Kelsen na Teoria Pura do Direito, bem como do debate entre Ronald Dworkin (texto “Modelo de Regras I”, na obra “Levando os direitos a serio”) e Herbert Hart (especialmente o pós escrito na obra “O conceito de direito”) acerca do papel do juiz e do próprio conceito de direito, entre regras e princípios. Diversos temas relacionados a certos precedentes do STF serão estudados, tais como: a) o papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade incidental exercido pelo STF; b) a atribuição de efeitos erga omnes ao mandado de injunção; c) a teoria dos motivos determinantes; d) a fixação de prazo pelo STF para o Poder Legislativo legislar em casos de omissões, dentre outros.

  1. Introdução

Hoje o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar o Mandado de Segurança nº 22.972 (Rel. Ministro Teori Zavascki) em que se busca o controle de constitucionalidade acerca de tramitação de emenda constitucional que fixa o sistema parlamentarista. O STF deve manter sua jurisprudência admitindo tal controle preventivo, em face de possível violação às cláusulas pétreas. Neste texto, que constitui parte do que apresentarei hoje à noite na UFERSA, sustendo o fim do controle de constitucionalidade judicial preventivo. São ideias que vão de encontro à jurisprudência que vem se formando há mais de trinta anos pelo STF. O que me despertou para o assunto foi esta palestra do professor Martônio Mont´Alverne Barreto Lima: https://www.youtube.com/watch?v=SDdrckxTrnk. É muito importante para mim que os interessados no tema leiam e comentem, especialmente para termos algum debate mais informado hoje à noite.

Sobre o mérito do mencionado Mandando de Segurança, o qual não será objeto detalhado deste texto, penso que, mantida a jurisprudência do STF, o pedido deveria ser julgado procedente, não se admitindo qualquer emenda Parlamentarista: o Presidencialismo hoje é cláusula pétrea no ordenamento constitucional. O art. 2º do ADCT já se exauriu e o Parlamentarismo abole o voto direto (cláusula pétrea, de acordo com o art. 60, §4º, II da Constituição) logo para a eleição do Chefe de Governo. Sendo assim, vamos pensar em outras formas de corrigir o Brasil.     

O presente texto analisará o modelo de controle de constitucionalidade judicial preventivo desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal, criticando essa forma de controle e sustentando sua extinção, seja quanto à análise de inconstitucionalidades materiais ou formais em projetos de lei ou de emendas à Constituição. Para tanto, serão explorados três fundamentos: 1) necessidade de se conferir maior responsabilidade política ao controle de constitucionalidade exercido pelos parlamentares e pelo Presidente da República, sem o recurso fácil e paternalista ao STF pela via preventiva, possibilitando posterior diálogo institucional entre Parlamento e Corte; 2) respeito aos próprios fundamentos lançados pelo STF ao vedar o controle de constitucionalidade judicial preventivo sob o viés material no Mandado de Segurança (MS) 33.033/13;[1] 3) inexistência de qualquer risco à Constituição em tal postura, já que haverá controle político e, além disso, controle judicial repressivo.

Antes, para fins didáticos, apresentar-se-á tal forma de controle.

  1. O controle de constitucionalidade judicial preventivo

Como se sabe, o controle de constitucionalidade no Brasil é uma atividade exercida pelo Presidente da República, pelos Parlamentares e pelos Juízes através da qual se faz um juízo de compatibilidade entre uma lei ou ato normativo, o procedimento de criação deles ou eventuais omissões em relação à Constituição. Surgem conceitos de relação, como diria Jorge Miranda: constitucionalidade e inconstitucionalidade. Cada um daqueles atores atua no âmbito de suas competências políticas e jurídicas, sendo um erro cada vez mais comum no Brasil supor que o controle judicial é, necessariamente, superior aos demais. Tal visão, criticada adiante, baseia-se numa forte desconfiança com a política, a qual, no entanto, não autoriza de modo algum a automática transferência de poderes aos juízes, no bojo especificadamente do controle de constitucionalidade.

Em relação ao tempo do controle, ou seja, ao momento em que o mesmo pode ser efetivado, há modelos predominantemente preventivos, como o francês e predominantemente repressivos, como o brasileiro. Assim, a regra, em nosso ordenamento, é que o STF somente exerça controle de constitucionalidade após, pelo menos, a promulgação do ano normativo, não se concebendo como atividade normal a interferência judicial sobre o projeto de lei ou de emenda à Constituição.

Finalmente, deve-se dominar a tipologia em torno das inconstitucionalidades formais e materiais para se compreender a extensão do controle judicial preventivo. A inconstitucionalidade formal diz respeito às regras do processo legislativo, a saber, do conjunto de atos voltados para a edição do ato normativo. Sendo assim, as regras constitucionais de iniciativa, debates, votação, sanção, veto, promulgação e publicação servirão de base para análise da conduta concreta dos parlamentares durante o processo. Por outro lado, a inconstitucionalidade material diz respeito ao conteúdo do ato, a saber, se a matéria nele veiculada ofende ou não algum preceito constitucional. Como será visto adiante, a jurisprudência do STF não era clara acerca dos limites do controle preventivo, no sentido de se albergar ou não o controle material além do formal.

Até 1980, o STF não exercia qualquer forma de controle de constitucionalidade preventivo. Entendia que a separação de poderes vedava qualquer análise sobre a tramitação dos projetos. No julgamento do MS 20.257/80[2] discutia-se a possibilidade de emenda constitucional prorrogar mandatos eletivos de dois para quatro anos, antevendo-se possível ofensa ao princípio da temporalidade dos mandatos, essencial à República, cláusula pétrea.

No voto vencedor, que inaugurou a divergência, o Ministro Moreira Alves apontou que não poderia admitir um controle de constitucionalidade preventivo que levasse em conta possível ofensa a determinado princípio constitucional. Assentou que o controle preventivo ocorre unicamente em face da própria tramitação do projeto de emenda constitucional, eis que a Constituição vedava qualquer deliberação tendente a abolir cláusulas pétreas. Sendo assim, teria o parlamentar direito liquido e certo a não se submeter a um processo legislativo que a própria Constituição, desde o início, já vedava. Ao final, mesmo tendo declarado que tal forma de controle não poderia utilizar como parâmetro um princípio constitucional, acabou tecendo considerações sobre o mérito em si da proposição, entendendo que a mera prorrogação dos mandatos eletivos não ofenderia o princípio republicano. Abria-se a porta, então, para o controle preventivo material.

Por outro lado, no julgamento do MS 24.667/03, o STF restringe o controle de constitucionalidade preventivo somente às possíveis ofensas às regras do processo legislativo. Curiosamente, é citado como leading case o MS 20.257/DF o qual, na melhor das hipóteses, não foi claro acerca dos limites do controle preventivo.[3] 

Finalmente, em 2013 o STF, de maneira clara e categórica, veda o controle de constitucionalidade judicial preventivo material sobre projeto de lei ao julgar o MS 32.033/13. De acordo com o voto do Ministro Teori Zavascki, relator para o acórdão por ter iniciado a divergência em relação ao voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, o controle judicial preventivo somente pode ser admitido em duas hipóteses: 1) tramitação de projeto de emenda constitucional que ofenda cláusulas pétreas; 2) tramitação de projeto de lei que desrespeite as regras o processo legislativo. As justificativas para tal distinção são: a) literalidade do art. 60, §4º da Constituição, o qual veda a deliberação de projetos de emendas constitucionais (não de projetos de lei) potencialmente violadores de cláusulas pétreas; b) a possibilidade de o Presidente da República vetar projeto de lei, hipótese inexistente no caso de projeto de emenda constitucional.[4]

A partir dessa distinção firmada pelo Ministro Teori Zavascki é que se deve compreender o texto da ementa do julgado que, de forma categórica, veda o controle material preventivo. Em relação aos projetos de lei, tal vedação é absoluta. Em relação aos projetos de emenda constitucional, não: para se analisar o vício formal na deliberação, é necessário adentrar o conteúdo da cláusula pétrea.

Em tal mandado de segurança, o STF firmou a necessidade de se aguardar o término da tramitação legislativa para analisar eventuais incompatibilidades materiais, as quais poderiam muito bem ser superadas no curso do processo legislativo. Nessa linha, expressamente consignou:

Quanto mais evidente e grotesca possa ser a inconstitucionalidade material de projetos de leis, menos ainda se deverá duvidar do exercício responsável do papel do Legislativo, de negar-lhe aprovação, e do Executivo, de apor-lhe veto, se for o caso. Partir da suposição contrária significaria menosprezar a seriedade e o senso de responsabilidade desses dois Poderes do Estado.[5] (sem destaques no original)

Eis, então, este precedente recente do STF sobre o tema, vedando, assim, o controle preventivo material em projetos de lei. Em seguida, sustentarei, como dito no primeiro parágrafo, que mesmo o controle preventivo formal é injustificável, seja em projetos de lei, seja em projetos de emendas constitucionais.  

  1. Contra o controle de constitucionalidade judicial preventivo

3.1 O controle de constitucionalidade fraco e o diálogo entre os poderes

A ideia de que a melhor palavra sobre o controle de constitucionalidade esteja sempre com o Poder Judiciário ou com quaisquer dos Poderes isoladamente considerados é falsa. Historicamente, há diversos exemplos de abusos cometidos por Chefes do Poder Executivo, Parlamentares e Juízes no exercício do controle de constitucionalidade. O Brasil não adota um modelo institucional que privilegie o controle de constitucionalidade fraco, como o faz, por exemplo, o Reino Unido ou o Canadá. Mas nem por isso a busca por diálogo institucional deve ser abandonada pelos juízes do STF.

E é justamente um fechamento prematuro que se tem no debate constitucional quando não se admite, sequer, a tramitação de projeto de lei ou emenda. É certo que a redação do art. 60, §4º da Constituição de 1988 sequer admite a deliberação de proposta de emenda constitucional que tenda a abolir cláusula pétrea. No entanto, não se deve esquecer que os parlamentares exercem controle de constitucionalidade não somente quando da análise do projeto nas Comissões de Constituição e Justiça: a qualquer momento pode ser apresentada emenda que corrija algum dispositivo ou, ao final, pode mesmo haver a rejeição da proposta.

Sem dúvida alguma, a tese firmada no MS 32.033/13 representa grande avanço na delimitação entre o Direito e a Política, entre a atuação da Corte e do Parlamento. A intromissão prematura do STF quando da análise material de projeto de lei retiraria, até mesmo, a possibilidade de intervenção do Presidente da República no seu exercício constitucional de efetivar controle de constitucionalidade através do veto, como também salientou o voto que inaugurou a divergência. No entanto, é possível argumentar: a intervenção prematura do STF, mesmo para se coibir vício formal em projeto de lei, também não retira essa prerrogativa do Presidente da República? Evidente que sim.

Os parlamentares devem ser instigados a serem mais responsáveis no controle de constitucionalidade, cabendo-lhes, também, o combate às inconstitucionalidades formais. Certamente, o STF não fomenta esse senso de responsabilidade quando, prematuramente, coloca-se numa posição de tutor do Poder Legislativo: os parlamentares logo buscarão a Corte ao invés de se empenharem verdadeiramente no exercício do controle de constitucionalidade político.

3.2 Há inconstitucionalidades formais “evidentes” e “grotescas” – se o Poder Legislativo pode, segundo o STF, identificar inconstitucionalidades matérias com essas características, também tem total condição de fazê-lo em relação às inconstitucionalidades formais

Nesse ponto, utilizarei, como dito anteriormente, parte da própria fundamentação do STF no último MS em análise para vedar por completo o controle de constitucionalidade judicial preventivo. O STF, no último precedente citado, apontou claramente que projetos de lei com conteúdos como: a) imposição indiscriminada da pena de morte; b) previsão de censura prévia; c) descriminalização da pedofilia, teriam inconstitucionalidades materiais “evidentes” e “grotescas” e, mesmo assim, deveria ser aguardar o término do processo legislativo para se ter a intervenção da Corte.

Ora, há inconstitucionalidades formais igualmente “grotescas” e “evidentes”: a) parlamentar que propõe a Lei Orgânica da Magistratura Nacional; b) projeto de lei complementar aprovada por maioria simples; c) projeto de emenda constitucional proposta por ¼ dos parlamentares; d) projeto de lei ordinária aprovada sem o quórum de instalação da sessão; e) projeto de emenda constitucional encaminhado pela minoria das assembleias legislativas dos Estados, etc.

Se os parlamentes, como corretamente decidiu o STF, são capazes de identificar e superar inconstitucionalidades materiais “evidentes” e “grotescas”, também o são em relação às inconstitucionalidades formais. Além disso, repita-se: em relação aos projetos de lei, o Presidente da República também pode exercer controle de constitucionalidade para coibir vícios formais.

3.2 Ausência de risco para a Constituição e para a proteção dos direitos

Finalmente, caso a política falhe e o controle parlamentar seja incapaz de debelar a inconstitucionalidade, por mais evidente e grotesca que ela seja, certamente o STF será provocado para exercer o controle repressivo, tendo em vista a ampla legitimidade para propositura das ações do controle concentrado.

Pelo apresentado, tem-se como inegável o avanço promovido pelo STF no julgamento do MS 32.033/13. No entanto, é plenamente possível sustentar o fim do controle de constitucionalidade judicial preventivo, como forma de aprimorar o diálogo entre os poderes e fortalecer o papel do Parlamento e do Presidente da República no controle de constitucionalidade político, sem retirar qualquer poder do STF no controle repressivo.

Há muitas vantagens para a democracia brasileira com tal postura: a) atribui-se maior responsabilidade aos órgãos políticos; b) garante-se o afastamento do STF em torno de questões eminentemente políticas consubstanciadas no debate parlamentar; c) propicia-se um controle repressivo por parte do STF muito mais informado e dialogal, após a participação completa dos Parlamentares (no caso de aprovação de projetos de emenda) e dos Parlamentares e Presidente da República (no caso de aprovação de projetos de lei).   

[1] Rel. Ministro Gilmar Mendes. Rel. para acórdão Ministro Teori Zavascki. (20/06/2013)

[2] EMENTA – Mandado de segurança contra ato da Mesa do Congresso que admitiu a deliberação de proposta de emenda constitucional que a impetração alega ser tendente a abolição da república.

 – Cabimento do mandado de segurança em hipóteses em que a vedação constitucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a sua apresentação (como é o caso previsto no parágrafo único do artigo 57) ou sua deliberação (como na espécie). Nesses casos, a inconstitucionalidade diz respeito ao próprio andamento do processo legislativo, e isso a Constituição não quer – em face das gravidades dessas deliberações, se consumadas – que sequer se chegue à deliberação, proibindo-a taxativamente. A inconstitucionalidade, se ocorrente, já existe antes de o projeto ou de a proposta se transformar em lei ou em emenda constitucional, porque o próprio processamento já desrespeita, frontalmente, a Constituição.

– Inexistência, no caso, da pretendida inconstitucionalidade, uma vez que a prorrogação de mandato de dois para quatro anos, tendo em vista a conveniência da coincidência de mandatos nos vários níveis da Federação, não implica introdução do princípio de que os mandatos não mais são temporários, nem envolve, indiretamente, sua adoção de fato.

Mandado de segurança indeferido. (Rel. Ministro Moreira Alves. 08/10/80)

[3] EMENTA: CONSTITUCIONAL. PODER LEGISLATIVO: ATOS: CONTROLE JUDICIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. PARLAMENTARES.

  1. – O Supremo Tribunal Federal admite a legitimidade do parlamentar – e somente do parlamentar – para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo.
  2. – Precedentes do STF: MS 20.257/DF, Ministro Moreira Alves (leading case) (RTJ 99/1031); MS 20.452/DF, Ministro Aldir Passarinho (RTJ 116/47); MS 21.642/DF, Ministro Celso de Mello (RDA 191/200); MS 24.645/DF, Ministro Celso de Mello, “D.J.” de 15.9.2003; MS 24.593/DF, Ministro Maurício Corrêa, “D.J.” de 08.8.2003; MS 24.576/DF, Ministra Ellen Gracie, “D.J.” de 12.9.2003; MS 24.356/DF, Ministro Carlos Velloso, “D.J.” de 12.9.2003.
  3. – Agravo não provido.
    (MS 24667 AgR, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2003, DJ 23-04-2004 PP-00008 EMENT VOL-02148-04 PP-00714)

[4] “Somente em duas situações a jurisprudência do STF abre exceção a essa regra: a primeira, quando se trata de Proposta de Emenda à Constituição – PEC que seja manifestamente ofensiva a cláusula pétrea; e a segunda, em relação a projeto de lei ou de PEC em cuja tramitação for verificada manifesta ofensa a alguma das cláusulas constitucionais que disciplinam o correspondente processo legislativo. Nos dois casos, as justificativas para excepcionar a regra estão claramente definidas na jurisprudência do Tribunal: em ambos, o vício de inconstitucionalidade está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da atuação legislativa. Assim, a impetração de segurança é admissível, segundo essa jurisprudência, porque visa a corrigir vício já efetivamente concretizado no próprio curso do processo de formação da norma, antes mesmo e independentemente de sua final aprovação ou não.” Voto do Ministro Teori Zavascki, p, 4 (página 140 do acórdão).

[5] EMENTA: CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTROLE PREVENTIVO DE CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DE PROJETO DE LEI. INVIABILIDADE.

  1. Não se admite, no sistema brasileiro, o controle jurisdicional de constitucionalidade material de projetos de lei (controle preventivo de normas em curso de formação). O que a jurisprudência do STF tem admitido, como exceção, é “a legitimidade do parlamentar – e somente do parlamentar – para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo” (MS 24.667, Pleno, Min. Carlos Velloso, DJ de 23.04.04). Nessas excepcionais situações, em que o vício de inconstitucionalidade está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da atuação legislativa, a impetração de segurança é admissível, segundo a jurisprudência do STF, porque visa a corrigir vício já efetivamente concretizado no próprio curso do processo de formação da norma, antes mesmo e independentemente de sua final aprovação ou não.
  2. Sendo inadmissível o controle preventivo da constitucionalidade material das normas em curso de formação, não cabe atribuir a parlamentar, a quem a Constituição nega habilitação para provocar o controle abstrato repressivo, a prerrogativa, sob todos os aspectos mais abrangente e mais eficiente, de provocar esse mesmo controle antecipadamente, por via de mandado de segurança.
  3. A prematura intervenção do Judiciário em domínio jurídico e político de formação dos atos normativos em curso no Parlamento, além de universalizar um sistema de controle preventivo não admitido pela Constituição, subtrairia dos outros Poderes da República, sem justificação plausível, a prerrogativa constitucional que detém de debater e aperfeiçoar os projetos, inclusive para sanar seus eventuais vícios de inconstitucionalidade. Quanto mais evidente e grotesca possa ser a inconstitucionalidade material de projetos de leis, menos ainda se deverá duvidar do exercício responsável do papel do Legislativo, de negar-lhe aprovação, e do Executivo, de apor-lhe veto, se for o caso. Partir da suposição contrária significaria menosprezar a seriedade e o senso de responsabilidade desses dois Poderes do Estado. E se, eventualmente, um projeto assim se transformar em lei, sempre haverá a possibilidade de provocar o controle repressivo pelo Judiciário, para negar-lhe validade, retirando-a do ordenamento jurídico.
  4. Mandado de segurança indeferido.

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Divulgo tema de palestra que terei a honra de ministrar na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) mês que vem sobre a legitimidade democrática do controle de constitucionalidade, atendendo a convite do meu amigo e coordenador Prof. José Albenes Jr.

Falarei sobre controle de constitucionalidade fraco e forte, a partir do debate entre autores como Dworkin e Jeremy Waldron. A polêmica entre Carl Schmitt e Kelsen sobre o guardião da Constituição servirá como ponto de partida, utilizando como pano de fundo algumas decisões do Supremo Tribunal Federal e de seus Ministros sobre o controle judicial de constitucionalidade preventivo. Nesse ponto, a doutrina brasileira entrará em cena, com as ideias de Gilmar Mendes e, no extremo oposto, Martônio Mont´Alverne.

Até lá postarei mais detalhes, mas fica, desde já, o convite para todos os interessados, especialmente aos alunos da UFERSA e da UnP. O evento contará como atividade complementar.

A constitucionalização do Direito, especialmente do Direito Civil, é tema amplamente discutido no Brasil, especialmente após a Constituição de 1988, tendo autores como Gustavo Tepedino e Luis Edson Fachin, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal, ocupado papel de destaque nesse debate. O presente texto servirá como introdução às aulas de Direito das Coisas, partindo do texto Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil, de Gustavo Tepedino.[1] Após apresentação geral das ideias do autor, com foco no trecho em que estipula o novo papel da lei no contexto do Estado Social de Direito, serão problematizadas, mesmo que sinteticamente, as questões interpretativas em torno das chamadas cláusulas gerais.

Quando se pensa em Direito Civil, uma das primeiras manifestações do gênio humano que vem à mente é a criação do Código Civil Napoleônico e a crença quase religiosa que se tinha na completude e coerência de tal codificação. O fetichismo legal em torno da interpretação de tais disposições fez a Escola de Exegese professar verdadeiro culto à figura do legislador, criando-se a partir daí a crença no Código Civil como verdadeira “Constituição da vida privada”.

As influências de tal movimento no Código Civil de 1916, aqui no Brasil, mostravam-se a partir do caráter individualista e patrimonial de suas regras. O momento histórico, ainda com olhos na realidade francesa revolucionária, mostrava que a burguesia vitoriosa buscava, através da lei, tudo aquilo que lhe era negado no modo de produção feudal: mais mercados e segurança nas relações comerciais. Tal estabilidade seria a finalidade principal de tais codificações.

As consequências da revolução industrial, especialmente no âmbito das relações de trabalho, começam a colocar em sérias dúvidas o projeto liberal clássico, a ponto de, num segundo momento evolutivo, começarem as edições de leis especiais, paralelas ao Código Civil e que, progressivamente, vão regulamentar temas antes tipicamente previstos nas codificações. Estas, desse modo, já não conseguem mais responder às questões tipicamente sociais paulatinamente agravadas.

Numa terceira fase, as tais lei especiais ganham ainda mais proeminência: ao invés de se regulamentar direitos substantivos, criam-se verdadeiros sistemas ao lado do Código Civil, havendo em tais leis dispositivos processuais e mesmo penais. Veja-se, por exemplo, leis como o Estatuto da Criança e Adolescente, Código de Defesa do Consumidor ou mesmo o Estatuto da Terra. A constitucionalização do Direito Civil, a qual tem como uma de suas acepções a introdução em nível constitucional de diversos temas antes regulados unicamente por aquele ramo do Direito, como família, responsabilidade, propriedade ou mesmo contratos, demandará novas técnicas legislativas, exploradas, por exemplo, nas leis antes citadas.

Gustavo Tepedino aponta cinco características dessa nova legislação:

I) mudança radical na técnica legislativa, com a criação, por exemplo, de metas a serem alcançadas a partir dos dispositivos legais. Para tanto, tem-se a recorrente utilização de cláusulas gerais:

O legislador vale-se de cláusulas gerais, abdicando da técnica regulamentar que, na égide da codificação, define os tipos jurídicos e os efeitos deles decorrentes. Cabe aos intérpretes depreender das cláusulas gerais os comandos incidentes sobre inúmeras situações futuras, algumas delas sequer alvitradas pelo legislador, mas que se sujeitam ao tratamento legislativo pretendido por se inserirem em certas situações-padrão: a tipificação taxativa dá lugar às cláusulas gerais, abrangentes e abertas.[2]

II) alteração igualmente profunda na linguagem das leis, as quais contém cada vez mais termos técnicos, especializados a partir de certa área do conhecimento, como a engenharia genética;

III) a previsão cada vez mais crescente de sanções premiais, a saber, para além da técnica clássica de sanção como punição, a referência, por exemplo, a incentivos fiscais para certas pessoas que cumpram as disposições legais;

IV) a preocupação do legislador com a superação da regulamentação sobre aspectos unicamente patrimoniais as relações jurídicas, ganhando cada vez mais relevo aspectos existenciais. Eis uma das marcas mais fortes da constitucionalização do Direito Civil: despatrimonializar suas regras, decorrência direta da leitura adequada de uma Constituição como a de 1988. Nessa linha, uma Constituição que coloca como fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana ou que aponta como objetivos da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, dentre tantos outros objetivos de cunho marcadamente sociais e mesmo fraternais, certamente provocará profundas alterações numa concepção meramente individualista, patrimonial e egoísta de legislação.

V) finalmente, o autor aponta como alteração marcante a forma como tais leis são aprovadas no parlamento, buscando o legislador, cada vez mais, contato com grupos de pressão organizados, como sindicatos ou demais associações, buscando adotar postura de verdadeiro negociador entre as partes. Cria-se, assim, um caráter contratual em tais estatutos.

As alterações são desafiadoras para o jurista e para alunos que começam a estudar tais questões. Pode-se traçar rico debate em torno de cada uma das transformações apontadas, ora nos concentrando, no entanto, no tema das clausulas gerais apontadas no item I. Vejam as seguintes expressões: boa-fé; má-fé; urgente; imprevisto; imprevisível; justa causa; razoável; excessiva onerosidade; manifesta desproporção; iminente perigo e fundado temor. Foi apresentada a razão para o legislador recorrer a tais expressões. No entanto, deve-se indagar: 1) sob o âmbito jurídico-dogmático, qual o limite constitucional do legislador na adoção de tal técnica?; 2) sob o âmbito da filosofia política, qual a responsabilidade institucional do Poder Legislativo nesse campo? Tais indagações são igualmente endereçadas ao Poder Judiciário: 1) qual o limite da interpretação judicial de tais cláusulas? 2) qual a responsabilidade dos juízes numa democracia, no contexto da separação de Poderes?

Temas candentes e complexos, que serão enfrentados em nossas aulas, no decorrer do semestre.  

[1] TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. In: Temas de Direito Civil. 4ª Ed. Rio de Janeiro, São Paulo, Recife: Renovar, 2008. P 1-23.

[2] Idem. p, 09.