Arquivos para Federalismo e democracia

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Fonte: 

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/01/1850276-presos-ainda-controlam-ala-de-presidio-no-rn-apesar-da-presenca-da-policia.shtml

  1. Introdução

Um dos problemas concretos enfrentados nas aulas de Direito Constitucional diz respeito a uma das crises mais sérias pela qual passa a federação brasileira: o descaso com o sistema penitenciário. É uma questão que atinge a federação sob diversos ângulos: a) a crise ocorre em todos os Estados membros, tendo atingindo um nível de brutalidade cada vez mais surpreendente a partir das rebeliões ocorridas no início deste ano, inclusive no Estado do Rio Grande do Norte; b) é um tema de responsabilidade de todos os Poderes, sejam em âmbito federal ou estadual; c) em tese, é possível cogitar a intervenção federal como forma para superar tal estado de coisas atentatório aos direitos da pessoa humana.

O presente texto tem por objeto demonstrar a ineficácia da intervenção federal como forma de superar o sistemático desrespeito aos direitos dos presos perante o sistema penitenciário estadual. A questão se coloca porque, além de haver pedido de intervenção federal já protocolado pelo Procurador Geral da República (PGR) desde 2008[1] no qual se sustenta a necessidade de intervenção no Estado de Rondônia justamente para se preservar os direitos da pessoa humana no Presídio Urso Branco, novas medidas desse tipo são cogitadas na PGR[2].

Inicialmente, serão lançadas, de modo introdutório, considerações gerais sobre a intervenção federal e seu procedimento. Em seguida, a hipótese de intervenção concernente na garantia aos direitos da pessoa humana no contexto dos denominados “princípios sensíveis” e da Intervenção Federal (IF) nº 114, será analisada como justificativa para o pedido de intervenção em face da crise penitenciária. Finalmente, será demonstrada a ineficácia da intervenção federal para solucionar tal questão a partir, por exemplo, da constatação de que: a) o Supremo Tribunal Federal (STF) não julga rapidamente tais casos; b) a intervenção federal atuaria de modo pontual e não sistemático; c) condutas de todos os entes da federação, não somente de um em particular, e de todos os Poderes contribuem para tal estado de coisas inconstitucional, sendo impensável que a intervenção possa atacar problema com tamanha amplitude.

  1. Aspectos gerais da intervenção federal

A intervenção federal é um processo constitucionalmente previsto para garantia da integridade da federação. Muito brevemente, a Constituição (art. 34) elenca que a União somente poderá intervir nos Estados quando estiver em jogo: a) a integridade nacional; b) a necessidade de repelir invasão estrangeira ou de um Estado sobre outro; c) a garantia à ordem pública; d) a reorganização das finanças do Estado, que não esteja pagando sua dívida fundada ou não esteja realizando as transferências tributárias constitucionalmente determinadas aos Municípios; e) o livre exercício de qualquer dos Poderes estaduais. Além disso, a Constituição cogita da intervenção diante da inexecução de lei federal ou descumprimento de ordem judicial ou do descumprimento de diversos princípios nomeados como “sensíveis” pela doutrina, tais como: a) a forma republicana, regime democrático e sistema representativo; b) os direitos da pessoa humana; c) a prestação de contas da administração pública direta e indireta; d) autonomia municipal; e) a aplicação de recursos públicos mínimos, por parte dos Estados, resultado da arrecadação de seus impostos, na manutenção e desenvolvimento de ações voltadas para a educação e saúde.

Não é o objeto deste texto aprofundar cada uma das hipóteses. É importante compreender, para os objetivos desta explanação, que, enquanto nas quatro primeiras hipóteses, o Presidente da República pode agir de ofício, há necessidade de se efetivar um procedimento judicial específico para a intervenção no caso de descumprimento à lei federal e aos designados princípios sensíveis. Este procedimento é levado a cabo pelo PGR, a partir da denominada representação interventiva.

Através da representação, é exercido um controle de constitucionalidade por parte do STF com características bem peculiares. Inicialmente, percebe-se o PGR como um representante da União, a qual tem interesse na manutenção da higidez da federação, fazendo surgir um verdadeiro litígio com o Estado membro, especialmente se este se opõe à intervenção.

A lei nº 12.562, de 23 de dezembro de 2011, regulamenta o processo da representação interventiva, cabível, repita-se, tanto em face do descumprimento de princípios sensíveis como em face da não execução de lei federal. Em linhas gerais, a lei regulamenta os requisitos da petição inicial, possibilidade de deferimento de medida liminar, poderes instrutórios do relator, requisitos para julgamento e forma de execução da decisão que defere o pedido. Nessa linha, tem-se que a petição inicial deve conter, nos termos do art. 3º e incisos: I) o dispositivo constitucional ou a lei federal que se entende violados; II) indicação do ato normativo, ato administrativo, ato concreto ou da omissão questionados; III) prova da violação; IV) pedido com suas especificações.

Questão importante é analisar, preliminarmente, a constitucionalidade do art. 3º, II da mencionada lei, especificamente quando prevê a possibilidade de controle judicial sobre atos concretos. Nessa linha, é essencial uma breve resenha sobre o que decidiu o STF na IF nº 114, julgada em 1991, 20 anos antes, portanto, da edição da lei em análise.

  1. A IF nº 114 e a possibilidade de controle sobre atos concretos no bojo da representação interventiva

Em 1990, no Município de Matupá, no Estado do Mato Grosso, três indivíduos fizeram uma família como refém após tentativa frustrada de roubo na residência dela. Após negociação com a polícia, eles se entregaram e libertaram aqueles que estavam indevidamente em seu poder. Parte da população do Município arrebatou os suspeitos da custódia policial, linchando-os. Quando eles já se encontravam inertes e jogados ao chão, foi atirada gasolina e ateado fogo em seus corpos.

Ante tais atos de barbárie, o então PGR ajuizou representação interventiva, buscando que a União interviesse no Estado do Mato Grosso em face da violação, por parte deste Estado, do princípio sensível consistente na garantia aos direitos da pessoa humana. Destaque-se que o Estado tinha os presos em seu poder e não conseguiu velar pela integridade física deles.

A primeira questão a se analisar após tal narração fática diz respeito ao cabimento da representação. Ressalte-se que ainda não havia sido editada a Lei 12.562 e, mesmo que esta estivesse em vigor, o ponto de partida, obviamente, deveria ser a Constituição. Para alguns Ministros, como Celso de Mello, a representação não poderia sequer ser conhecida, eis que somente poderia controlar atos de cunho normativo, não atos concretos praticados por particulares, mesmo que configurassem omissão do Estado. A posição do Ministro se aproxima da visão clássica acerca do controle de constitucionalidade como instrumento para controle somente de atos normativos.

Visão diferente apresentava, por exemplo, o Ministro Sepúlveda Pertence. Fazendo uma leitura estritamente constitucional, entendeu plenamente possível o ajuizamento da ação no caso, já que a Constituição não limita o objeto de controle a atos normativo. Tal interpretação é possível a partir da leitura da parte final do art. 36 § 3º, o qual aponta: “ Nos casos do art. 34, VI e VII, ou do art. 35, IV, dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional ou pela Assembléia Legislativa, o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade”. Inicialmente, poder-se-ia argumentar: ora, se o texto constitucional prevê a possibilidade de suspensão do ato impugnado como mecanismo para superação do conflito, há necessidade, logicamente, da existência de algum ato formal. No entanto, o dispositivo seguinte esclarece que a suspensão somente será efetivada se isso bastar ao restabelecimento da normalidade, abrindo a possibilidade de controle sobre atos que não sejam formalizados ou mesmo que não apresentem cunho normativo.

Em outras palavras: o perfil da ação deve ser definido a partir do direito positivo, constitucionalmente previsto, mesmo que, diante disso, haja um afastamento dos cânones clássicos do controle de constitucionalidade.[3]

No final das contas, o STF admitiu a intervenção, reconhecendo que a ação poderia controlar a ofensa aos princípios sensíveis perpetrada por atos de cunho concreto ou omissões estatais, mas julgou o pedido improcedente, reconhecendo que: a) a intervenção é medida excepcional; b) o Estado do Mato Grosso estaria atuando para responsabilizar os autores dos assassinatos.

  1. A crise penitenciária estadual e a possibilidade de intervenção federal

Tais considerações abrem espaço para o uso da intervenção federal, através da representação interventiva, em face da grave crise penitenciária pela qual passa os Estados da federação. Ora, se há omissão estatal na falta de cuidado a presos que foram linchados por particulares, haverá, ainda mais gravemente, omissão em face de assassinatos cruéis praticados pelos próprios presos. Neste ponto, analisar-se-á a eficácia de intervenção federal como forma de solucionar tal crise.

Uma primeira consideração aponta que, dependendo da amplitude da crise penitenciária, é possível cogitar de intervenção determinada de ofício pelo Presidente da República, como forma de garantia da ordem pública (art. 34, III, da Constituição). Como a Constituição elenca, a ofensa deve ser grave, não sendo qualquer perturbação à tranqüilidade pública que justifique a intervenção. Outra possibilidade é aquela já analisada neste texto, levada a cabo pelo PGR a partir da representação interventiva em face de ofensa aos direitos da pessoa humana (art. 34, VII, “b” da Constituição).

Nenhuma das medidas, no entanto, apresenta eficácia apta a solucionar a crise sistemática no sistema penitenciário estadual. Diversos argumentos podem ser elencados para sustentar tal afirmação, tais como: a) falta de interesse do próprio STF em julgar rapidamente tais causas; b) o aspecto pontual da intervenção federal; c) a consideração de que a crise penitenciária é causada não só por um determinado Estado membro, mas sim por todos os entes e, mais ainda, por todos os Poderes da República e pelo próprio Ministério Público. Aprofundemos um pouco cada ponto.

  1. Como dito no início deste texto, desde 2008 o PGR ajuizara representação interventiva a fim de que houvesse intervenção federal no Estado de Rondônia justamente para se preservar os direitos da pessoa humana no Presídio Urso Branco. Perceba-se que esta é uma hipótese que vai além do precedente elencado na IF nº 114, eis que refere-se especificamente à crise penitenciária. Por que o STF ainda não julgou a ação até hoje? As questões em torno do poder de pauta do STF merecem pesquisa específica, sendo, realmente, instigante perquirir o porquê de certas causas serem julgadas mais rapidamente de que outras, contenham ou não medidas de urgência. Talvez o STF, especialmente o ministro relator, esteja apostando na alteração do quadro fático a partir do transcurso do tempo, o que faria com que o STF não precisasse determinar a execução de uma medida tão drástica como a intervenção. Não há garantia alguma de que novos pedidos tramitem com mais velocidade.
  2. A intervenção seria restrita a um Estado específico, sendo difícil imaginar o fato de a União intervir, ao mesmo tempo, em todos os Estados da Federação. Como o problema é generalizado, a intervenção teria pouca utilidade.
  3. A crise penitenciária que vivenciamos hoje é fruto de um conjunto de omissões perpetradas pela União, Estados, Distrito Federal, Poderes Legislativo, Executivo, Judiciário, Ministério Público e, em certa medida, pela própria sociedade. A União, por exemplo, contingenciava recursos financeiros do Fundo Penitenciário Nacional, que deveriam ser destinados para a melhoria dos presídios. Os Estados, por sua vez, não conseguem utilizar os recursos federais para construção de novas unidades às vezes por não apresentarem sequer de projeto para a obra. O Poder Legislativo edita lei com nítido caráter simbólico, a Lei de Execução Penal, passando a imagem de que está atuando seriamente para garantir os direitos dos presos. O Poder Judiciário não controla adequadamente o punitivismo de parte dos membros do Ministério Público, não fundamentando adequadamente a não imposição de medidas cautelares diferentes da prisão quando esta é indevidamente pleiteada pelo Parquet. Finalmente, a própria sociedade não reconhece sua responsabilidade para superação desse estado de coisas: aposta na retórica do “bandido bom é bandido morto”, atiçada por parcela do Poder Legislativo, e se recusa, por exemplo, a receber a construção de determinado presídio nos limites do Município em que residem. Se essa postura for correta, novos presídios não poderiam ser construídos em nenhum local.

O que fazer com os presos, então?

Percebe-se, portanto, como a intervenção federal para garantir os direitos da pessoa humana nos presídios é ineficaz para solucionar a crise. Uma resposta possível para tal situação esta sendo buscada na ADPF nº 347, na qual se busca caracterizar a crise penitenciária como estado de coisas inconstitucional, propondo ousadas técnicas decisórias para a superação dele. Os riscos em torno da ineficácia também dessa

[1] IF nº 5129.

[2] http://oglobo.globo.com/brasil/pgr-estuda-pedir-ao-stf-intervencao-no-sistema-penitenciario-de-quatro-estados-20734206. Acessado em: 04/03/2017.

[3] Esta constatação fica ainda mais clara quando do estudo do estado de coisas inconstitucional, o qual será feito a partir de outro texto.

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Retomando as aulas, iniciamos nesta quinta feira nosso Curso de Direito Constitucional II, cujo conteúdo vai de Federalismo à Separação de Poderes. Neste semestre, vamos buscar aprofundar as técnicas de participação em sala de aula (o que não é fácil numa turma com quase 90 alunos…), tentando fazer com que os encontros não fiquem marcados, unicamente, pela atuação ativa do professor. Nessa linha, a leitura de diversos textos continua sendo essencial.

Vamos iniciar pela obra “Dilemas do Estado Federal Brasileiro”, de Gilberto Bercovici, especialmente seu capítulo primeiro. Neste texto, o autor, antes de abordar sua tese central no sentido de que há disfunção no federalismo brasileiro a partir, por exemplo, da constatação de que tanto a Câmara dos Deputados como o Senado Federal representam os Estados-Membros (papel que, nominalmente, a partir da Constituição, caberia unicamente ao Senado), apresenta resenha histórica sobre a formação do Estado Federal, desde suas origens norte-americanas.

Dominar o contexto histórico acerca do surgimento do federalismo, suas características clássicas e, posteriormente, as transformações em torno de tal forma de organização do Estado, é um dos objetivos de nossas aulas. Como estudaremos, federalismo é uma forma de organização do Estado, a qual contempla uma divisão espacial do poder entre diversos entes, como a União e os Estados Membros. Não há uma fórmula abstrata e geral em torno de tal organização estatal: aspectos históricos, como referidos na experiência norte-americana, conduzem ao entendimento do tema, da mesma forma que exploraremos a formação do federalismo brasileiro.

Novamente, o capítulo primeiro da obra de Bercovici é leitura obrigatória, pois o autor faz, justamente, a análise histórica de nosso federalismo, desde a formação do estado unitário brasileiro à época da monarquia. Vamos constatar, por exemplo, como, gradualmente, nosso federalismo passou de uma concepção clássica ou dualista, na qual as competências da União e dos Estados praticamente eram estanques, não se admitindo maiores interações entre tais pessoas, para uma concepção baseada em maior cooperação, visando, por exemplo, à diminuição das desigualdades regionais. Como essa evolução ocorreu, de modo detido, será assunto para aprofundamento em sala de aula.

Diversos temas atuais serão abordados durante todo o estudo da federação brasileira. Atenção especial será conferida ao principal problema de segurança pública vivenciado por todos os entes da federação, o qual demanda solução concertada: a crise no sistema penitenciário brasileiro, vivenciada neste início de ano pelo próprio Estado do Rio Grande do Norte. Vamos investigar, por exemplo, os limites da intervenção federal como instrumento para solucionar tal crise, levando em conta que o Supremo Tribunal Federal, desde 2008, conta com pedido de intervenção ajuizado pelo Procurador Geral da República em face das graves ofensas aos direitos da pessoa humana praticadas na penitenciária Urso Branco, em Rondônia. Tal estudo atrairá, necessariamente, a análise do Estado de Coisas Inconstitucional, nos moldes liminarmente elencados pelo STF quando do julgamento da argüição de descumprimento fundamental (ADPF) nº 347.

Mas isso é tema para outro texto.

Dentre as atribuições do Ministério Público, em especial do Ministério Público Federal, está a fiscalização das unidades prisionais, a fim de perquirir, por exemplo, se o cumprimento da pena está se desenvolvendo de maneira adequada. Não é preciso dizer que o sistema prisional brasileiro, de um modo geral, está falido, principalmente quando se pensa na ampla maioria dos presídios existentes no Brasil, cuja responsabilidade administrativa cabe aos Estados.

O federalismo brasileiro tem se mostrado altamente centralizador em diversos assuntos, como tributação ou qualidade dos serviços públicos. É certo que não é tudo no âmbito federal que funciona a contento, mas é clamorosa a melhor qualidade administrativa em temas como: 1) pagamento de precatórios; 2) prestação de atividade jurisdicional mais célere; 3) pessoal administrativo em número razoável para o alcance das finalidades estatais federais (nos últimos anos a União aumentou consideravelmente seu número de Advogados da União, além do que tem havido significativa interiorização da Justiça Federal e, mais recentemente, do próprio Ministério Público Federal); 4) finalmente, o sistema prisional federal, sendo os quatro presídios federais verdadeiros locais de excelência para uma execução penal digna, muito embora tais estabelecimentos não se destinem especificamente para o cumprimento integral da pena, eis que pensado para abrigar temporariamente indivíduos com alto grau de periculosidade.

As disparidades entre o sistema federal e estadual se devem, em grande parte, à falta de atenção fundamental dos gestores, principalmente estaduais, no gasto eficiente dos recursos federais destinados à construção de presídios. Segundo notícia veiculada no sítio eletrônico G1, “Estados deixam de construir prisões e devolvem R$ 187 milhões à União”. Sendo assim, mesmo que os recursos fossem originariamente estaduais, o gasto com o sistema prisional talvez não ocorresse.

Todas as vezes em que promovi inspeção no presídio federal em Mossoró, fiquei impressionado com a qualidade de tal estabelecimento: limpo e bem arejado, conta com agentes penitenciários em número adequado, mesmo diante de eventuais afastamentos legais. Lá os direitos dos presos são, felizmente, respeitados como manda a lei, havendo atendimento médico e odontológico satisfatórios. A alimentação é adequada, eis que servidas cinco refeições diárias por preso, subdivididas em: I – Desjejum; II – Almoço; III – Lanche; IV – Jantar; V – Ceia; VI – Refeição Especial (esta última somente em datas comemorativas). Os próprios presos reconhecem esse estado de coisas: nas entrevistas com eles, é comum a reclamação sobre a alimentação somente no que tange às diferenças culturais, pois muitos não estão acostumados com o cardápio nordestino. Em relação à quantidade, por outro lado, até eles acham a mesma excessiva.

Eis o problema: somente no almoço e jantar, é servido 1kg em cada refeição. Consequencia: cerca de 5,4 toneladas de alimentos são jogadas no lixo por ano, somente na unidade prisional federal em Mossoró. Chegou-se a esse número através de informação da própria diretoria do presídio, apontando que cerca de 17% da alimentação diária, cerca de 15 kg, vai, simplesmente, “para o lixo”. O prejuízo varia entre 170 a 350 mil reais por ano, somente na unidade prisional federal em Mossoró.

Buscando enfrentar esse desperdício, que afeta a qualidade do gasto público, o direito fundamental à alimentação adequada, a ofensa moral que é desperdiçar alimentos e o possível dano ao meio ambiente com o não reaproveitamento adequado de tais resíduos, expedi recomendação ao Departamento Penitenciário Nacional para que envidasse esforços no sentido de corrigir tais excessos.

A notícia com o detalhamento de tal ato, bem como com o texto integral da recomendação, podem ser lidos aqui.

A evolução das tipologias de Estado coloca em comparação a forma unitária e federal, sendo esta, como se sabe, a forma adotada pelo Estado brasileiro desde 15 de novembro de 1889 através do Decreto nº 1, posteriormente confirmado na primeira Constituição republicana, datada de 1891. Na forma federal, especialmente destinada para amparar Estados com grandes territórios e certas diferenças culturais entre seus povos, busca-se proteger os direitos fundamentais destes através de complexos sistemas de distribuição de competência entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

O federalismo clássico, na forma como concebida pelos federalistas norte-americanos, estabelecia uma estanque e dualista distribuição de funções entre a União e os Estados, não prevendo maiores regras cooperativas entre eles. O modelo brasileiro, por sua vez, consagra o federalismo cooperativo, compreendido como aquele que, a partir do reconhecimento de competências comuns e concorrentes, persegue-se uma atuação conjunta e coordenada entre aqueles entes, seja a partir de uma legislação suplementar dos Estados e Municípios em face de legislação geral da União ou a partir da atuação administrativa comum desses entres em prol, por exemplo, da proteção do meio ambiente.

O terreno, portanto, é fértil para sobreposições, havendo mesmo a necessidade de leis complementares disciplinarem a atuação de cada unidade da federação tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. Mesmo com elas, no entanto, é forte a possibilidade de conflito federativo, seja na seara administrativa ou mesmo legislativa.

No sistema de divisão de competências legislativas concorrentes, cabe à União a edição de leis gerais, podendo os demais entes suplementá-las ou, ante a inexistência daquelas normas gerais, legislar plenamente. Havendo lei geral, no entanto, a suplementação deve se ater somente a questões específicas, de acordo com os interesses regionais e locais de Estados e Municípios, respectivamente.

Nesse sentido, indaga-se: é admissível que uma lei estadual ou municipal vá contra uma lei geral federal, caso aquelas protejam mais efetivamente os direitos fundamentais? Eis uma questão interessante envolvendo ponderação e federalismo, analisada pelo Supremo Tribunal Federal, por exemplo, nos casos envolvendo a utilização de amianto.

De acordo com a definição constante no sítio eletrônico do Instituto Nacional do Câncer (INCA), tem-se que:

“Amianto (latim) ou asbesto (grego) são nomes genéricos de uma família de minérios encontrados profusamente na natureza e muito utilizados pelo setor industrial no último século.

 As rochas de amianto se dividem em dois grupos: as serpentinas e os anfibólios. As serpentinas têm como principal variedade a crisotila ou “amianto branco”, que apresenta fibras curvas e maleáveis. Os anfibólios, que representam menos de 5% de todo o amianto explorado e consumido no mundo, estão banidos da maior parte do planeta”.[1] (destaques no original)

Apesar do grande número de estudos apontando que quaisquer modalidades de amianto são nocivos à saúde humana, a lei federal nº 9.055/95 admite a utilização do amianto na modalidade crisotila. Leis estaduais, como, por exemplo, a Lei nº 11.643/2001 do Estado do Rio Grande do Sul, proíbe totalmente a utilização de tal substância, inclusive na variante crisotila. O Estado do Rio Grande do Sul agiu de modo inconstitucional, editando uma norma geral, de competência, portanto, da União?

De acordo com a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal nas ADI´s 2396 e 2656, sim. O raciocínio era formal e simples: no âmbito da proteção à saúde e ao meio ambiente, temas caros à exploração do amianto, especialmente no tocante aos trabalhadores envolvidos em tais empresas, o pacto federativo brasileiro determinava que normas gerais seriam editadas pela União, cabendo aos Estados, como visto, somente suplementá-las de acordo com suas peculiaridades. Ao proibir totalmente a utilização do amianto, leis estaduais iriam completamente de encontro à norma geral federal, sendo aquelas, portanto, formalmente inconstitucionais. Não se analisava, portanto, se os dispositivos estaduais estavam em mais sintonia com os direitos fundamentais consagrados na Constituição.

Essa postura é classicamente adotada pela Corte quando da análise da iniciativa de leis com o regime de repartição de competências fixado na Constituição. Trata-se de uma análise estritamente formal, independentemente do conteúdo de tais dispositivos. Tal modo de agir não deixa de causar certos constrangimentos, como confessado pelo Ministro Carlos Ayres Britto quando da declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 1.314/2004 do Estado de Rondônia, a qual impunha às empresa de construção civil, com obras no Estado, a obrigação de fornecer leite, café e pão com manteiga aos trabalhadores que comparecessem com antecedência mínima de quinze minutos ao seu primeiro turno de trabalho (ADI 3251). O fundamento foi formal: violação à competência privativa da União de legislar sobre direito do trabalho (art. 22, I da Constituição). Nem sequer se discutiu se a norma estadual visaria à melhoria da condição social do trabalhador, nos termos do art. 7º da Constituição.

Tal jurisprudência pode sofrer alteração dramática com o término do julgamento da ADI nº 3.357, proposta contra a referida Lei nº Lei nº 11.643/2001 do Estado do Rio Grande do Sul. Nesse caso, há voto do Ministro Ayres Britto apontando a prevalência da lei estadual em face da federal, pois aquela, no seu entendimento, protegeria muito mais o direito à saúde e ao meio ambiente equilibrado do que a mencionada Lei federal nº 9.055/95.

É certo que um dos fundamentos marcantes para tal tese é o status supralegal da Convenção 162 da Organização Internacional do Trabalho, a qual concita os Estados partes a, progressivamente, excluírem de suas legislações qualquer uso do amianto, em face de seus comprovados malefícios para a vida humana. Tendo tal qualidade supralegal, como se sabe, a Lei Federal estaria em confronto com a Convenção, fazendo com que, após o controle de convencionalidade, a Lei Federal restasse inaplicável. É igualmente incontroverso, no entanto, que este não foi o único fundamento utilizado no voto ora em comento, servindo, na verdade, como reforço para a tese central lá defendida: a de que, em confrontos de leis federais e estaduais envolvendo direitos fundamentais, deve-se dar prevalência àquela que mais os promovam.[2]

É evidente que tal ponderação envolve todos os riscos de subjetivismos tão conhecidos e propagados pelos seus críticos, os quais podem ser superados pela argumentação jurídica rigorosa através do princípio da proporcionalidade. A federação brasileira sairia fortalecida se a tese do Ministro Britto restasse vencedora (hoje o caso se encontra empatado com voto divergente, como de costume, do Ministro Marco Aurélio[3]), pois não se vedaria, através de mera análise formal, a criatividade das demais entidades da federação no desenvolvimento dos direitos fundamentais.

No dia em que as instituições federais reconhecerem que uma lei estadual é mais avançada que uma lei federal em matéria de proteção de direitos fundamentais e efetivar a alteração desta, quem sai ganhando é a federação. Cabe ao STF, portanto, propiciar essa autocrítica, não vedando, pura, simples e formalmente, o papel criador dos Estados e Municípios.


[1] Disponível em: http://www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?id=15. Acessado em: 14/07/2013.

[2] O seguinte trecho do Voto é elucidativo: “Mas cogitando-se dos bens jurídicos aqui especificamente versados, parece-nos claro que eventual colisão normativa há de ser compreendida em termos de proteção e defesa; isto é, o exame das duas tipologias de leis passa pela aferição do maior ou menor teor de favorecimento de tais bens ou pela verificação de algo também passível de ocorrer: as normas suplementares de matriz federativamente periférica a veicular as sobreditas proteção e defesa, enquanto a norma geral de fonte legislativa federal, traindo sua destinação constitucional, deixa de fazê-lo. Ou, se não deixa totalmente de fazê-lo, labora em nítida insuficiência protetiva e de defesa”. (destaques no original). O voto pode ser acessado aqui.

[3] O qual também pode ser lido aqui.