Negar o caráter absoluto dos direitos fundamentais pode ser feito de diversas formas. Em primeiro lugar, a relatividade de tais direitos é uma decorrência do próprio homem em sociedade, o qual, convivendo com outros, faz com que seja necessária também uma co-existência entre direitos. Em segundo lugar, os direitos fundamentais são restringíveis a partir da própria historicidade deles, bastando ver, por exemplo, as transformações em torno do direito de propriedade o qual, inicialmente um direito classicamente absoluto, passou a sofrer influxos sociais e ambientais. Finalmente, sob a ótica dogmático-constitucional, é possível constatar a relatividade de tais direitos, eis que o próprio texto constitucional prevê restrições diretamente constitucionais ou decorrentes da lei, com reserva qualificada ou não.[1]
As restrições aos direitos fundamentais podem afetar o status jurídico geral de qualquer indivíduo ou incidir especificamente em relação a certas situações especiais. As relações especiais de sujeição são essas situações nas quais um indivíduo, por estar mais intimamente ligado à Administração Pública, tenha sobre si uma maior restrição aos direitos fundamentais, como ocorre, por exemplo, com o servidor público, um aluno em escola pública ou um preso. Tal restrição não corresponde a uma negação absoluta de seus direitos[2], mas é justificável sob pena de inviabilizar a própria razão de ser da relação especial no qual incluída. Aprofunde-se algumas dessas ideias, iniciando pelo conceito doutrinário das relações especiais de sujeição, partindo-se, em seguida, para fundamentação acerca da proscrição de qualquer ideia que pretenda excluir por completo a proteção de direitos fundamentais dos indivíduos sujeitos a tais regimes.
Konrad Hesse, tal qual Canotilho[3], preferem a expressão “relações especiais de poder”. Para o primeiro:
Esse conceito, ainda hoje quase sem exceção empregado, indica sintética (e niveladoramente) aquelas relações que fundamentam uma relação mais estreita do particular com o Estado e deixam nascer deveres especiais, que ultrapassam os direitos e deveres gerais do cidadão, em parte, também direitos especiais, portanto, por exemplo, as relações do funcionário, do soldado, do aluno de uma escola pública – mas também aquela do preso. Relações especiais desta índole podem ser fundamentadas, ou por adesão voluntária (por exemplo, a relação de funcionário), ou por requerimento com base em uma lei (por exemplo, a relação do aluno de escola primária sobre a base de sua obrigação escolar).[4]
Além dessas formas de se iniciar a relação de sujeição, é possível, a contrário sensu da lição de Hesse, apontar a submissão compulsória, decorrente de decisão judicial, seja numa ordem de prisão preventiva ou no caso de prisão decorrente de sentença penal transitada em julgado.
É ponto pacífico na doutrina que o ingresso do indivíduo nas relações especiais de sujeição não gera uma renúncia completa dos seus direitos fundamentais[5]. Nessa linha, Konard Hesse aponta que se deve buscar a concordância prática entre os direitos contrapostos, na medida das possibilidades:
As relações de status especiais e as ordens, nas quais elas ganham configuração jurídica, muitas vezes, não poderiam cumprir suas tarefas na vida coletivamente, se o status geral, jurídico-constitucional, fundamentado pelos direitos fundamentais, do particular, também permanecesse conservado completamente no status especial.
(…)
Onde a Constituição, por isso, inclui relações de status especiais em sua ordem, trata-se, para ela, não só das condições de vida garantidas jurídico-fundamentalmente, mas também das condições de vida daquelas ordens especiais, porque o todo de sua ordem assenta sobre a existência e a vida de ambas. Ela põe, com isso, do mesmo modo como nas limitações dos direitos fundamentais no status cívico geral, a tarefa da concordância prática: nem devem os direitos fundamentais ser sacrificados às relações de status especiais, nem devem as garantias jurídico-fundamentais tornar impossível a função daquelas relações.
(…)
A consideração aos direitos fundamentais é exigida sempre no quadro do possível – mesmo que isso traga consigo para as autoridades administrativas dificuldades ou incomodidades.[6]
É certo, logicamente, que o estatuto especial de sujeição varia conforme a categoria do indivíduo, a saber, há restrições bem mais graves em relação a um preso do que em relação a um funcionário público. Mesmo assim, não há qualquer justificativa para a renúncia total a direitos fundamentais. Pode parecer uma repetição desnecessária, toda essa insistência com a tese de que não há renúncia total a direitos fundamentais no caso de presos, mesmo em se tratando do SPF. O precedente adiante analisado mostrará, infelizmente, como a concepção clássica acerca da incompatibilidade total entre certos direitos fundamentais e as relações especiais de sujeição ainda persistem.
Dito isso, vamos ao entendimento do STJ.
Como se sabe, a LEP aponta requisitos objetivos e subjetivos para a progressão de regime de cumprimento da pena[7]. Também leis especiais, como a Lei nº 8.072/90[8], prevê requisitos mais rigorosos para a obtenção do benefício, tendo em vista a hediondez dos crimes lá tratados. Os requisitos objetivos dizem respeito ao cumprimento mínimo da pena imposta, enquanto os requisitos subjetivos referem-se ao bom comportamento carcerário do preso, nos termos dos dispositivos legais citados. Percebe-se, desde já, que os dispositivos elencados não fazem qualquer menção especial ao fato de o preso ter sido transferido ao SPF como obstáculo à obtenção do benefício. É possível, no entanto, a partir do regramento do SPF previsto na Lei 11.761/2008 e no Decreto 6.877/2009, vedar-se, por completo, a progressão de regime, pelo simples fato de tal benefício ser incompatível com aquele sistema federal? Tal postura não violaria a individualização da execução da pena, desconsiderando situações concretas de cada preso? Para responder a essas provocações, veja-se qual o entendimento do STJ sobre o tema:
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM CONFLITO DE COMPETÊNCIA. EXECUÇÃO PENAL. CUMPRIMENTO DE PENA NO SISTEMA PENITENCIÁRIO FEDERAL. PROGRESSÃO DE REGIME. DECISÃO DO MAGISTRADO FEDERAL CONCEDENDO O BENEFÍCIO E DETERMINANDO O RETORNO DO APENADO AO ESTADO DE ORIGEM. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES DA TERCEIRA SEÇÃO. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DAS REGRAS LEGAIS QUE DISCIPLINAM A MATÉRIA. ACÓRDÃO RECENTE QUE DECIDIU PELA MANUTENÇÃO DOS MOTIVOS QUE ENSEJARAM A TRANSFERÊNCIA. BENEFÍCIO, POR ORA, AFASTADO.
Nos termos da jurisprudência desta Corte, a concessão do benefício da progressão de regime ao apenado em presídio federal de segurança máxima fica condicionada à ausência dos motivos que justificaram a transferência originária para esse sistema ou, ainda, à superação de eventual conflito de competência suscitado. 2. Tal entendimento jurisprudencial deriva da interpretação sistemática dos dispositivos legais que norteiam o ingresso no Sistema Penitenciário Federal, os quais demonstram a absoluta incompatibilidade entre os motivos que autorizam a inclusão do preso e os benefícios liberatórios da execução (CC n. 125.871/RJ, Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Seção, DJe 7/6/2013). 3. Se, em julgamento recente, a Terceira Seção decidiu pela manutenção do apenado na Penitenciária Federal de Mossoró/RN, sob o fundamento de que remanesciam os motivos que ensejaram a transferência, não há outra solução, senão afastar, por ora, o benefício concedido. 4. Agravo regimental improvido.[9] (destacamos)
Como se percebe, para o STJ há incompatibilidade abstrata entre as características do SPF e qualquer consideração acerca da progressão de regime. Para tal Corte, não pode ostentar bom comportamento quem ainda preenche os requisitos para inclusão no sistema federal, por isso a condicionante em torno de não mais existirem os motivos que justificaram a transferência originária para esse sistema a fim de que se possa cogitar do benefício.
Em momento algum, portanto, o STJ fez referência às situações concretas que ensejaram a transferência do preso ao SPF. De fato, o perfil de muitos daqueles presos fará com que não seja adimplido o requisito subjetivo, sob pena de contradição: caso haja o cumprimento do mencionado requisito, não seria mais o caso de o preso estar submetido ao SPF. Nem sempre, no entanto, deve ser assim.
A própria LEP prevê como um dos motivos para inclusão a proteção do próprio preso, quando em risco no presídio de origem. Nessa linha, também o Decreto 6.877/2009, no art. 3º, V prevê como motivo de inclusão “ser réu colaborador ou delator premiado, desde que essa condição represente risco à sua integridade física no ambiente prisional de origem.” Ora, como negar o benefício da progressão de regime a um preso submetido ao SPF sob esse motivo? Perceba-se que tal preso, mesmo na unidade de origem, pode ter ostentado bom comportamento carcerário, não necessariamente tendo praticado crimes violentos. Nessa hipótese, repita-se, a transferência se dá também no interesse do próprio preso, a fim de que sua integridade física seja preservada.
O entendimento do STJ ignora essa particularidade e outras que podem surgir, visualizáveis mais cuidadosamente pelo Juiz Federal Corregedor, autoridade que deve ser competente para a execução penal e para analisar o pedido de progressão dos presos submetidos ao SPF. Ao vedar, abstrata e completamente, a progressão de regime de preso sob o simples argumento de que as regras do SPF são incompatíveis com o benefício, tal Corte violou o princípio da individualização da pena na vertente da individualização da execução[10].
O equívoco apresentado em tal entendimento decorre de um erro teórico, a saber, a má compreensão do regime das relações especiais de sujeição. Como visto, um preso não renuncia por completo aos seus diretos quando incluído num presídio, mesmo federal. A retórica acerca da incompatibilidade abstrata entre progressão de regime e os motivos da inclusão no SPF acarretam, na prática, a negação total da individualização da pena sem a consideração concreta dos requisitos subjetivos de cada preso.
[1] Steinmetz, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. 1ª ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001. p, 17-20.
[2] Paulo Gustavo Gonet Branco lembra que, de fato: “Houve momento na história em que se excluíam, por completo, as pessoas nessas condições do âmbito da aplicação dos direitos fundamentais. Essas pessoas simplesmente não poderiam invocar direitos e garantias em face do Estado, já que estariam inseridas num sistema em que o dever de obediência seria com isso incompatível. Desse modo, recusava-se a liberdade de expressão aos servidores civis e militares, bem assim o direito de greve, que comprometeria a disciplina e o bom andamento da Administração”. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo G. Gonet. Curso de direito constitucional. 8ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p, 231-232.
[3] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7a ed. Coimbra: Editora Almedina, 2003. p, 466.
[4] HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998. p, 259.
[5] “Ao contrário do defendido pela doutrina clássica das relações especiais de poder, os cidadãos regidos por estatutos especiais não renunciam a direitos fundamentais (irrenunciabilidade dos direitos fundamentais) nem se vinculam voluntariamente a qualquer estatuto de sujeição, produtor de uma capitis deminutio”. (destaques no original). CANOTILHO, J.J. ob. cit. p, 466-467.
[6] HESSE, Konrad. Ob. cit. p, 261-262. No mesmo sentido, Paulo Gustavo Gonet Branco. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo G. Gonet. Ob. cit. p, 232.
[7] Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.
[8] Art. 2º, §2º: § 2o : A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.
[9] AgRg no CC 131.887/RJ, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/03/2014, DJe 03/04/2014.
[10] Art. 5º, XLVI da Constituição: a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: (…)