Arquivos para Direitos Fundamentais e Democracia

Negar o caráter absoluto dos direitos fundamentais pode ser feito de diversas formas. Em primeiro lugar, a relatividade de tais direitos é uma decorrência do próprio homem em sociedade, o qual, convivendo com outros, faz com que seja necessária também uma co-existência entre direitos. Em segundo lugar, os direitos fundamentais são restringíveis a partir da própria historicidade deles, bastando ver, por exemplo, as transformações em torno do direito de propriedade o qual, inicialmente um direito classicamente absoluto, passou a sofrer influxos sociais e ambientais. Finalmente, sob a ótica dogmático-constitucional, é possível constatar a relatividade de tais direitos, eis que o próprio texto constitucional prevê restrições diretamente constitucionais ou decorrentes da lei, com reserva qualificada ou não.[1]

As restrições aos direitos fundamentais podem afetar o status jurídico geral de qualquer indivíduo ou incidir especificamente em relação a certas situações especiais. As relações especiais de sujeição são essas situações nas quais um indivíduo, por estar mais intimamente ligado à Administração Pública, tenha sobre si uma maior restrição aos direitos fundamentais, como ocorre, por exemplo, com o servidor público, um aluno em escola pública ou um preso. Tal restrição não corresponde a uma negação absoluta de seus direitos[2], mas é justificável sob pena de inviabilizar a própria razão de ser da relação especial no qual incluída. Aprofunde-se algumas dessas ideias, iniciando pelo conceito doutrinário das relações especiais de sujeição, partindo-se, em seguida, para fundamentação acerca da proscrição de qualquer ideia que pretenda excluir por completo a proteção de direitos fundamentais dos indivíduos sujeitos a tais regimes.

Konrad Hesse, tal qual Canotilho[3], preferem a expressão “relações especiais de poder”. Para o primeiro:

Esse conceito, ainda hoje quase sem exceção empregado, indica sintética (e niveladoramente) aquelas relações que fundamentam uma relação mais estreita do particular com o Estado e deixam nascer deveres especiais, que ultrapassam os direitos e deveres gerais do cidadão, em parte, também direitos especiais, portanto, por exemplo, as relações do funcionário, do soldado, do aluno de uma escola pública – mas também aquela do preso. Relações especiais desta índole podem ser fundamentadas, ou por adesão voluntária (por exemplo, a relação de funcionário), ou por requerimento com base em uma lei (por exemplo, a relação do aluno de escola primária sobre a base de sua obrigação escolar).[4]

Além dessas formas de se iniciar a relação de sujeição, é possível, a contrário sensu da lição de Hesse, apontar a submissão compulsória, decorrente de decisão judicial, seja numa ordem de prisão preventiva ou no caso de prisão decorrente de sentença penal transitada em julgado.

É ponto pacífico na doutrina que o ingresso do indivíduo nas relações especiais de sujeição não gera uma renúncia completa dos seus direitos fundamentais[5]. Nessa linha, Konard Hesse aponta que se deve buscar a concordância prática entre os direitos contrapostos, na medida das possibilidades:

As relações de status especiais e as ordens, nas quais elas ganham configuração jurídica, muitas vezes, não poderiam cumprir suas tarefas na vida coletivamente, se o status geral, jurídico-constitucional, fundamentado pelos direitos fundamentais, do particular, também permanecesse conservado completamente no status especial.

(…)

Onde a Constituição, por isso, inclui relações de status especiais em sua ordem, trata-se, para ela, não só das condições de vida garantidas jurídico-fundamentalmente, mas também das condições de vida daquelas ordens especiais, porque o todo de sua ordem assenta sobre a existência e a vida de ambas. Ela põe, com isso, do mesmo modo como nas limitações dos direitos fundamentais no status cívico geral, a tarefa da concordância prática: nem devem os direitos fundamentais ser sacrificados às relações de status especiais, nem devem as garantias jurídico-fundamentais tornar impossível a função daquelas relações.

(…)

A consideração aos direitos fundamentais é exigida sempre no quadro do possível – mesmo que isso traga consigo para as autoridades administrativas dificuldades ou incomodidades.[6]

É certo, logicamente, que o estatuto especial de sujeição varia conforme a categoria do indivíduo, a saber, há restrições bem mais graves em relação a um preso do que em relação a um funcionário público. Mesmo assim, não há qualquer justificativa para a renúncia total a direitos fundamentais. Pode parecer uma repetição desnecessária, toda essa insistência com a tese de que não há renúncia total a direitos fundamentais no caso de presos, mesmo em se tratando do SPF. O precedente adiante analisado mostrará, infelizmente, como a concepção clássica acerca da incompatibilidade total entre certos direitos fundamentais e as relações especiais de sujeição ainda persistem.

Dito isso, vamos ao entendimento do STJ.

Como se sabe, a LEP aponta requisitos objetivos e subjetivos para a progressão de regime de cumprimento da pena[7]. Também leis especiais, como a Lei nº 8.072/90[8], prevê requisitos mais rigorosos para a obtenção do benefício, tendo em vista a hediondez dos crimes lá tratados. Os requisitos objetivos dizem respeito ao cumprimento mínimo da pena imposta, enquanto os requisitos subjetivos referem-se ao bom comportamento carcerário do preso, nos termos dos dispositivos legais citados. Percebe-se, desde já, que os dispositivos elencados não fazem qualquer menção especial ao fato de o preso ter sido transferido ao SPF como obstáculo à obtenção do benefício. É possível, no entanto, a partir do regramento do SPF previsto na Lei 11.761/2008 e no Decreto 6.877/2009, vedar-se, por completo, a progressão de regime, pelo simples fato de tal benefício ser incompatível com aquele sistema federal? Tal postura não violaria a individualização da execução da pena, desconsiderando situações concretas de cada preso? Para responder a essas provocações, veja-se qual o entendimento do STJ sobre o tema:

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM CONFLITO DE COMPETÊNCIA. EXECUÇÃO PENAL. CUMPRIMENTO DE PENA NO SISTEMA PENITENCIÁRIO FEDERAL. PROGRESSÃO DE REGIME. DECISÃO DO MAGISTRADO FEDERAL CONCEDENDO O BENEFÍCIO E DETERMINANDO O RETORNO DO APENADO AO ESTADO DE ORIGEM. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES DA TERCEIRA SEÇÃO. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DAS REGRAS LEGAIS QUE DISCIPLINAM A MATÉRIA. ACÓRDÃO RECENTE QUE DECIDIU PELA MANUTENÇÃO DOS MOTIVOS QUE ENSEJARAM A TRANSFERÊNCIA. BENEFÍCIO, POR ORA, AFASTADO.

Nos termos da jurisprudência desta Corte, a concessão do benefício da progressão de regime ao apenado em presídio federal de segurança máxima fica condicionada à ausência dos motivos que justificaram a transferência originária para esse sistema ou, ainda, à superação de eventual conflito de competência suscitado. 2. Tal entendimento jurisprudencial deriva da interpretação sistemática dos dispositivos legais que norteiam o ingresso no Sistema Penitenciário Federal, os quais demonstram a absoluta incompatibilidade entre os motivos que autorizam a inclusão do preso e os benefícios liberatórios da execução (CC n. 125.871/RJ, Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Seção, DJe 7/6/2013). 3. Se, em julgamento recente, a Terceira Seção decidiu pela manutenção do apenado na Penitenciária Federal de Mossoró/RN,  sob o fundamento de que remanesciam os motivos que ensejaram a transferência, não há outra solução, senão afastar, por ora, o benefício concedido. 4. Agravo regimental improvido.[9] (destacamos)

Como se percebe, para o STJ há incompatibilidade abstrata entre as características do SPF e qualquer consideração acerca da progressão de regime. Para tal Corte, não pode ostentar bom comportamento quem ainda preenche os requisitos para inclusão no sistema federal, por isso a condicionante em torno de não mais existirem os motivos que justificaram a transferência originária para esse sistema a fim de que se possa cogitar do benefício.

Em momento algum, portanto, o STJ fez referência às situações concretas que ensejaram a transferência do preso ao SPF. De fato, o perfil de muitos daqueles presos fará com que não seja adimplido o requisito subjetivo, sob pena de contradição: caso haja o cumprimento do mencionado requisito, não seria mais o caso de o preso estar submetido ao SPF. Nem sempre, no entanto, deve ser assim.

A própria LEP prevê como um dos motivos para inclusão a proteção do próprio preso, quando em risco no presídio de origem. Nessa linha, também o Decreto 6.877/2009, no art. 3º, V prevê como motivo de inclusão “ser réu colaborador ou delator premiado, desde que essa condição represente risco à sua integridade física no ambiente prisional de origem.” Ora, como negar o benefício da progressão de regime a um preso submetido ao SPF sob esse motivo? Perceba-se que tal preso, mesmo na unidade de origem, pode ter ostentado bom comportamento carcerário, não necessariamente tendo praticado crimes violentos. Nessa hipótese, repita-se, a transferência se dá também no interesse do próprio preso, a fim de que sua integridade física seja preservada.

O entendimento do STJ ignora essa particularidade e outras que podem surgir, visualizáveis mais cuidadosamente pelo Juiz Federal Corregedor, autoridade que deve ser competente para a execução penal e para analisar o pedido de progressão dos presos submetidos ao SPF. Ao vedar, abstrata e completamente, a progressão de regime de preso sob o simples argumento de que as regras do SPF são incompatíveis com o benefício, tal Corte violou o princípio da individualização da pena na vertente da individualização da execução[10].

O equívoco apresentado em tal entendimento decorre de um erro teórico, a saber, a má compreensão do regime das relações especiais de sujeição. Como visto, um preso não renuncia por completo aos seus diretos quando incluído num presídio, mesmo federal. A retórica acerca da incompatibilidade abstrata entre progressão de regime e os motivos da inclusão no SPF acarretam, na prática, a negação total da individualização da pena sem a consideração concreta dos requisitos subjetivos de cada preso.

[1] Steinmetz, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. 1ª ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001. p, 17-20.

[2] Paulo Gustavo Gonet Branco lembra que, de fato: “Houve momento na história em que se excluíam, por completo, as pessoas nessas condições do âmbito da aplicação dos direitos fundamentais. Essas pessoas simplesmente não poderiam invocar direitos e garantias em face do Estado, já que estariam inseridas num sistema em que o dever de obediência seria com isso incompatível. Desse modo, recusava-se a liberdade de expressão aos servidores civis e militares, bem assim o direito de greve, que comprometeria a disciplina e o bom andamento da Administração”. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo G. Gonet. Curso de direito constitucional. 8ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p, 231-232.

[3] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7a ed. Coimbra: Editora Almedina, 2003. p, 466.

[4] HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998. p, 259.

[5] “Ao contrário do defendido pela doutrina clássica das relações especiais de poder, os cidadãos regidos por estatutos especiais não renunciam a direitos fundamentais (irrenunciabilidade dos direitos fundamentais) nem se vinculam voluntariamente a qualquer estatuto de sujeição, produtor de uma capitis deminutio”. (destaques no original). CANOTILHO, J.J. ob. cit. p, 466-467.

[6]  HESSE, Konrad. Ob. cit. p, 261-262. No mesmo sentido, Paulo Gustavo Gonet Branco. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo G. Gonet. Ob. cit. p, 232.

[7] Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.

[8] Art. 2º, §2º: § 2o : A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.

[9] AgRg no CC 131.887/RJ, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/03/2014, DJe 03/04/2014.

[10] Art. 5º, XLVI da Constituição: a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: (…)

Há cerca de um mês, tive a alegria de participar do programa “Dinâmica do Direito”, veiculado pela TV AD Mossoró, atendendo ao convite do meu amigo e ex-estagiário, João Paulo Barbosa Neto.

Foi uma conversa muito interessante sobre Ministério Público, direitos fundamentais e, especialmente, liberdade de crença. João Paulo é um amigo generoso além da conta com as palavras, sendo também um estudioso do Direito, de modo que foi enriquecedor debater temas como: liberdade de religião e crítica à união homoafetiva, laicismo e laicidade estatal e a questão da transfusão de sangue dos Testemunhas de Jeová.

Não tive nenhuma pretensão em apresentar respostas definitivas para tais provocações, até porque não sou autoridade nesses assuntos. No entanto, gosto muito de conversar sobre Direito com qualquer pessoa interessada, de modo que não posso deixar de expressar minhas opiniões, sempre aberto a revisões de argumentos eventualmente usados de maneira equivocada.

Seja como for, não o deixei sem resposta e, neste momento, disponibilizo o vídeo, na esperança de que ele tenha utilidade para alguém.

Abraço a todos.

 

Ontem assisti a uma reportagem (a notícia correspondente pode ser lida aqui) que noticiava uma drástica medida adotada pela polícia francesa para solucionar um caso de estupro numa escola. Diante da impossibilidade de a vítima identificar o autor do delito, já que fora atacada em local escuro, decidiu-se realizar exame de DNA compulsório em todos os homens que estavam no recinto na data do fato, os quais contabilizavam mais de quinhentos.

Ou se fazia isso ou o caso entraria na triste lista de arquivamentos em face da impossibilidade de se determinar autoria, deixando a vítima sem qualquer resposta estatal a essa grave e revoltante afronta a seus direitos fundamentais.

Aqui no Brasil, caso semelhante ocorreu com a cantora Glória Trevi, a qual alegava ter sido estuprada na sede da polícia federal, quando lá custodiada enquanto aguardava seu processo de extradição perante o STF. A fim de elucidar os fatos, os quais punham em risco até mesmo a respeitabilidade e honra dos policiais federais que lá trabalhavam, coube ao STF decidir (Reclamação nº 2040) se um exame de DNA a partir da placenta da extraditanda poderia ser efetivado, mesmo contra a vontade dela.

Numa democracia, é justificável o Estado obrigar indivíduos a se submeterem a exame de DNA?

A resposta a essa indagação varia conforme a corrente filosófica sobre o papel que os direitos fundamentais devem ostentar num Estado Democrático de Direito. Certamente, para um liberal, ou seja, para aquele que defende que direitos fundamentais são meramente os direitos civis ou de liberdade, não há qualquer justificativa para uma intervenção desse tipo na integridade física e na autodeterminação individual do ser humano. Nem mesmo o interesse público na solução de um delito desse tipo poderia justificar um exame de DNA compulsório, cabendo à vítima levar adiante por toda sua vida o fardo da impunidade, sendo esse, diriam eles, um dos preços de se viver numa democracia liberal.

Uma outra abordagem, por outro lado, pode ser fornecida pelo ideário do republicanismo. Através dele, tem-se que a vida em sociedade demanda também a assunção de certos deveres, para além dos direitos amplamente consagrados. Tais obrigações tem um aspecto de participação na vida pública, participação esta que não seria meramente formal, através do voto, nem se contentaria unicamente com a defesa de interesses próprios: um republicano, assim, deve tomar decisões baseadas no interesse público.

No plano constitucional, apesar da consagração de diversos direitos individuais, a Constituição de 1988 não é, evidentemente, uma Constituição liberal, não sendo novidade alguma apontar que, desde 1934, o constitucionalismo brasileiro se abriu para os direitos sociais. Avançou-se, principalmente com a atual Constituição, nas disposições solidárias e republicanas que determinam diversos deveres para a sociedade em áreas como: segurança pública, educação, saúde, defesa da criança e do adolescente.

Dito isso, uma medida como a adotada pela polícia francesa é plenamente justificável, partindo-se da premissa de que, realmente, é possível identificar previamente todos os homens que estavam no local do crime na data em que este ocorrera. Levando em conta o interesse público na elucidação desse grave delito, bem como na punição do infrator, não é razoável admitir a facultatividade do exame. Os mencionados deveres republicanos apontam em sentido diverso: como dito, cabe a cada um dispor de seus direitos não meramente de maneira individual ou egoística, mas também tendo em vista o bem comum, o qual se mostra, nesse caso, a partir da necessidade em se descobrir a autoria delitiva.

Para o republicanismo, assim, fazer o exame de DNA, numa hipótese como a ora em análise, é um dever cívico. É conhecida a crítica aos exageros do republicanismo, quando o Estado quer impor aos seus cidadãos que estes participem mais na vida pública, contra a vontade destes. No presente caso, no entanto, essa crítica não procede.

Para rebater essa ponderação, usarei um pouco da própria argumentação do STF no caso Glória Trevi acima descrito, o qual fora julgado na citada Reclamação nº 2040. O STF admitiu a realização do exame de DNA compulsório, tendo em vista, dentre outros aspectos, a baixíssima ofensividade da medida, a qual seria efetivada na placenta da extraditanda. Tal material, segundo a própria perícia juntada aos autos, já poderia ser classificada como mero “refugo hospitalar” (fl. 179 do Acórdão).

Parece, assim, ser abusivo o exercício de um pretenso direito à intimidade que chegue ao ponto de não admitir a realização do exame. No caso Glória Trevi, outros argumentos foram lançados a favor do teste, como, por exemplo, a moralidade administrativa, a eficiência da persecução penal e a imagem dos policiais federais sob suspeita.

Caso se queira utilizar o princípio da proporcionalidade, mesmo sob o risco de ser tachado de decisionista por alguns, outra também não seria a solução. O exame de DNA compulsório é medida adequada para se alcançar o fim visado, qual seja, a identificação do agente criminoso. Não há nenhuma outra medida menos invasiva com o mesmo grau de eficácia para se alcançar tal fim: não há testemunhas ou quaisquer documentos que apontem para a autoria. No caso ocorrido na França, sequer foi possível coletar um depoimento pessoal mais detalhado da vítima, sendo este, normalmente, a fonte de prova a que se deve dar mais atenção em crimes desse tipo, ante a ausência de outras provas. Por outro lado, não se poderia admitir, para fins penais, eventual presunção de autoria para o sujeito que recusasse se submeter ao exame, caso este fosse facultativo, ante a proscrição da responsabilidade penal objetiva, além do respeito ao princípio do in dubio pro reo. Por tudo isso, é fácil constatar: não há mesmo outra medida menos invasiva.

Finalmente, no confronto entre a interesse público na solução do delito e o direito fundamental à imagem, este deve ceder em tais hipóteses, por todas as razões antes apontadas: 1) a Constituição de 1988 não consagra unicamente direitos de liberdade, não sendo, em hipótese alguma, um texto liberal ou mesmo libertário; 2) deveres republicanos impõem ao cidadão esse papel ativo, sendo este também interessado na solução do caso; 3) há mínima ofensividade nos exames de DNA hodiernamente realizados, havendo uma múltipla forma de coleta de materiais que não trazem qualquer prejuízo para o indivíduo.

Os argumentos republicanos aqui lançados entram no debate a partir do interesse público na elucidação de um crime. Eles não poderiam ser invocados, portanto, para se tentar superar o entendimento que sustenta a facultatividade do exame de DNA em casos de investigação de paternidade. Neste caso, restaria a fundamentação acerca da baixa ofensividade do exame, bem como a insuficiência em torno da mera presunção da paternidade gerada com a recusa na efetivação daquele.

 

Num Brasil com espaço público cada vez mais incendiário, seja no campo das ideias, seja na praça, é dever daqueles que se propõem a estudar e concretizar os direitos humanos e fundamentais sustentar teses que levem ao reconhecimento de direitos para os mais marginalizados, encontrando-se entre estes, por exemplo, as minorias étnicas. O presente texto apresenta o critério da auto-atribuição como instrumento essencial e democrático para a caracterização de grupos como negros, quilombolas, populações tradicionais e indígenas.

Muitos dos argumentos aqui lançados podem ser utilizados contra a retórica de sujeitos irresponsáveis que vociferam ideias completamente desvinculadas da realidade constitucional brasileira. Esse discurso vazio é facilmente identificável, pois apresenta, normalmente, as seguintes características: 1) apego a um critério abstrato “liberdade”, a qual seria meramente formal; 2) idealização de um “estado liberal” como modelo perfeito e acabado de organização humana, olvidando-se convenientemente que tal modelo faliu; 3) pretensão, declarada ou não, de aplicação do libertarianismo (corrente de pensamento que prega intervenção mínima estatal e busca uma maior proteção unicamente de direitos patrimoniais) num País marcadamente desigual, cuja Constituição expressamente impõe a superação da pobreza e marginalização.

O reconhecimento de direitos efetivado a partir do critério da auto-atribuição consiste na oitiva prévia do beneficiário de determinado direito consagrado para minorias como forma de legitimar sua caracterização como sujeito desse direito. Há, assim, um especial destaque para essa declaração como forma de não se impor uma verdade hegemônica da maioria sobre a vida dessa minoria. A auto-atribuição está prevista no art. 1º, item 2 da Convenção 169 da OIT, o qual expressamente consigna que: “A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção”.

A auto-atribuição, assim, propicia uma abertura, o início de um entendimento entre sujeitos que, mesmo nacionais de um mesmo Estado, apresentam culturas e visões de mundo profundamente diferentes. Ele assume o caráter de ponto de partida necessário para o diálogo intercultural, o qual decorre da constatação de que as culturas apresentam diferentes e incompletas concepções de dignidade da pessoa humana. Essa incompletude somente pode ser descortinada e superada através desse diálogo.

Um exemplo já citado anteriormente neste blog diz respeito ao reconhecimento do direito à terra de remanescentes de comunidades quilombolas. O direito fundamental contido no art. 68 do ADCT só pode ser concretizado a partir da admissão da própria declaração dos sujeitos que se considerem descendentes dos antigos escravos. Com essa declaração, um diálogo com a maioria hegemônica se inicia, permitindo a esta e às autoridades estatais perquirir os demais requisitos para deferimento do direito, sempre, repita-se, atribuindo-se maior peso à auto-atribuição.

Veja-se que a auto-atribuição, portanto, não encerra ou exaure tal diálogo intercultural. Uma das críticas feitas ao presente critério é a possibilidade de manipulações e fraudes pelas partes beneficiárias. Tal crítica é verdadeira no sentido de que, realmente, tais vícios podem ocorrer, cabendo ao Direito combatê-los.[1] No entanto, essa objeção erra quando busca, pura e simplesmente, a proscrição desse critério de identificação, pois ele não é o único critério posto.[2] No caso das comunidades quilombolas, requisitos como territorialidade, coletividade e passado de resistência à opressão também devem ser objeto do diálogo. Com a análise desses últimos critérios objetivos, afasta-se a preocupação acerca das fraudes, sempre num contexto, relembre-se, de que a verdade absoluta é inatingível.

Quando estava no Curso de Ingresso e Vitaliciamento no MPF, indaguei à Dra. Deborah Duprat se ela tinha notícia acerca de fraudes em processos de titulação de terras quilombolas. Ela disse que, muito embora em tese possível, uma declaração falsa acerca do pertencimento a certa minoria é algo extremamente difícil no Brasil, já que, com tal declaração, vem em seguida uma carga de preconceito e discriminação por parte de boa parte da sociedade contra tais sujeitos. Assim, não parece razoável supor que a regra seja uma auto-atribuição falsa, pois que faz uma declaração verdadeira sobre sua etnia já sabe que se submeterá aos mais grotescos preconceitos pelo resto de sua vida.


[1] ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos dos descendentes de escravos (remanescentes das comunidades de quilombos). Ob. cit. p, 459.

[2] Sobre o tema, Daniel Sarmento assim se manifesta: “É importante ressaltar que a auto-definição é um dos critérios adotados pelo Decreto 4.887/03, mas não o único. Trata-se de um critério extremamente importante, na medida em que parte da correta premissa de que, na definição da identidade étnica, é essencial levar em conta as percepções dos próprios sujeitos que estão sendo identificados, sob pena de se chancelarem leituras etnocêntricas ou essencialistas dos observadores externos provenientes de outra cultura, muitas vezes repletas de preconceito. A idéia básica, que pode ser reconduzida ao próprio princípio da dignidade da pessoa humana, é de que na definição da identidade, não há como ignorar a visão que o próprio sujeito de direito tem de si, sob pena de se perpetrarem sérias arbitrariedades e violências, concretas ou simbólicas”. SARMENTO, Daniel. Territórios quilombolas e Constituição: a ADI 3.239 e a Constitucionalidade do Decreto 4.887/03. Disponível em: http://6ccr.pgr.mpf.gov.br/documentos-e publicacoes/docs_artigos/Territorios_Quilombolas_e_Constituicao_Dr._Daniel_Sarmento.pdf. Acessado em: 23 de novembro de 2012.

Como se sabe, o poder que os ditos agentes políticos possuem deve ser usado em prol da sociedade. Uso essa constatação simples e básica para tentar dar máxima eficácia à minha atuação no Ministério Público Federal (MPF). Nesse sentido, fiquei emocionado com os resultados obtidos com a primeira audiência pública realizada pelo MPF aqui em Mossoró, a qual debateu os impactos sociais, econômicos e, principalmente, ambientais, das salinas do Estado do Rio Grande do Norte.

Foi evidente o poder da audiência pública na construção do diálogo: se no início o discurso das salinas era cheio de rancor, após a mediação do MPF e os debates travados com o IBAMA e IDEMA (autarquia ambiental estadual), a mudança no semblante de todos foi manifesta, a ponto de abrir espaço para consensos.

E que consenso foi esse?

Todas as empresas presentes (somente 2 das 25 salinas convidadas não enviaram representantes), concordaram em confeccionar um Plano de Recuperação de Área Degradada (PRAD), de acordo com Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) a ser posteriormente assinado entre aqueles entes ambientais e o MPF. O PRAD é um estudo técnico que deve ser subscrito por profissional habilitado para tanto, o qual poderá demonstrar, por exemplo, se as áreas de preservação permanente ocupadas pelas salinas podem ser especificamente recuperadas. Essa adesão dos participantes ficou patente quando meu colega, o Dr. Fernando Rocha, expressamente indagou se alguns dos representantes das salinas presentes tinha intenção em não elaborar o mencionado PRAD. O silêncio foi eloquente.

Tal PRAD somente poderá ser elaborado a partir de Termo de Referência previamente estipulado entre IBAMA e IDEMA, pois é este documento que prevê aspectos técnicos mínimos a serem observados na elaboração do PRAD. E eis outro resultado prático da audiência: como encaminhamento final, a partir de proposta do meu outro colega Dr. Victor Mariz, o MPF expediu a Recomendação nº 01/2014, recomendando que IBAMA e IDEMA constituam grupo de trabalho para, de maneira integrada, confeccionar tal Termo de Referência em até 60 dias.

Percebe-se, assim, o formidável poder das audiências públicas, a qual pode sim apresentar resultados tangíveis. Utilizada da maneira como foi, a audiência não se converte em mera exposição dos membros do MPF na mídia, invariável e felizmente presente, como pode se constatar nesta reportagem. Outro risco das audiências, além desse possível encanto vazio com a exposição pública, é pensar que ela é um fim em si mesma e que sua conclusões e encaminhamentos não precisam ser constantemente fiscalizados. O MPF deve continuar atento, portanto, perquirindo acerca da assinatura de tal TAC e, em seguida, fiscalizando o cumprimento do mesmo até que se obtenha a melhor proteção ao meio ambiente.

Ao final da audiência, senti-me emocionado de ser parte do MPF, ante o êxito dela. O maior mérito das PRM´s Assu e Mossoró foi ter unido forças para enfrentar esse delicado tema de maneira uniforme, concretizando o princípio da igualdade e buscando a proteção do meio ambiente.

Agora é continuar alerta.

Para quem tiver interesse, eis a notícia com as conclusões da audiência, bem como a Recomendação nº 01/2014.

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O Ministério Público, no âmbito de sua atuação extrajudicial, dispõe de instrumentos formidáveis para concretização dos direitos fundamentais. Um desses instrumentos é a recomendação, sobre o qual já escrevi um pouco aqui e aqui. O presente texto abordará outro mecanismo importantíssimo, qual seja, a realização de audiências públicas.

Numa perspectiva mais formal, a audiência pública é vocacionada a propiciar a participação da sociedade civil, de órgãos e de entidades públicas no debate acerca de certo problema que esteja afetando quaisquer direitos coletivos, compreendidos estes na sua acepção ampla. Seu intuito é claro: corrigir este estado de coisas a partir do compromisso entre as partes envolvidas.

Essa participação somente poderá ser alcançada com o adimplemento das condições postas na Resolução nº 82 do Conselho Nacional do Ministério Público, tais como: período mínimo entre publicação do edital de convocação e a realização do ato; descrição precisa do objeto; organização do andamento dos trabalhos e da exposição dos participantes; confecção de relatório final apontado o encaminhamento a ser dado pelo órgão do Ministério Público a partir dos elementos lá colhidos.

Muito mais que a garantia do direito de participação, no entanto, a audiência pública deve visar à solução da violação concreta aos direitos fundamentais. Uma afronta maciça ao meio ambiente, por exemplo, merece ampla discussão com a sociedade para, a partir da busca de consensos, garantir-se da melhor maneira possível a proteção ao meio ambiente equilibrado para as presentes e futuras gerações.

Logo quando cheguei ao Rio Grande do Norte, percebi que uma das principais questões ambientais envolvendo o interior do Estado dizia respeito às graves pendências ambientais em torno do setor de produção de sal. Mossoró, por exemplo, não tem a alcunha de “terra do sal” por acaso: o litoral do Rio Grande do Norte é responsável pela produção de cerca de 95% do sal consumido em todo o País.[1]

Qual não foi minha surpresa, então, quando percebi que parte desses empreendimentos centenários funcionavam sem licença ambiental ou ocupavam área de preservação permanente (APP), como, por exemplo, áreas que antes correspondiam a manguezais. Como sou daqueles que acha que não há direito adquirido a poluir, logo pensei que alguma solução merecia ser adotada.

Nessa perspectiva, uni esforços com os colegas Vitor Manoel Mariz e Fernando Rocha para uma atuação conjunta entre as PRM´s Assu e Mossoró, cuja área de atuação alberga praticamente todas as salinas do Estado. Nossa primeira ideia foi a realização de audiência pública, a fim de que o debate amplo com todas as salinas interessadas em participar pudesse contribuir para a solução de tais ilícitos ambientais.

O Ministério Público Federal não é cego: é claro que a envergadura de tais empreendimentos alcança uma magnitude econômica e social igualmente importantes à seara ambiental. Nesse sentido, seria irresponsável pensar na imediata desocupação das faixas de APP ou no simples embargo dos estabelecimentos. Até mesmo sob a perspectiva ambiental esta última medida não se justificaria, ante o risco de poluição que o próprio sal armazenado poderia causar ao ecossistema circundante.

No entanto, há espaço para o debate e consenso em torno das seguintes questões: 1) realização de projetos de recuperação de área degradada, por parte das empresas, para se aferir se é possível recuperar as faixas de APP por elas ocupadas; 2) assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta para desocupação gradual, em tempo razoável, dessas faixas cuja regeneração ainda se encontra tecnicamente viável; 3) necessidade de obtenção da respectiva licença ambiental para funcionamento.

O MPF, assim, tenta dialogar com as empresas e com a sociedade, buscando demonstrar que o fato de se poluir há décadas não torna tal conduta lícita. Por outro lado, esta tentativa consensual para solução da questão mostra sensibilidade para um estado de coisas que há muito tempo se mantém o mesmo, mas que merece ser enfrentado, em prol das presentes e futuras gerações.

A audiência pública ocorrerá dia 04 de fevereiro, na Universidade Federal Rural do Semi-Árido, em Mossoró/RN, nos termos do edital, o qual pode ser lido aqui.

O semi-árido brasileiro recebeu especial atenção da Constituição de 1988, sendo-lhe garantida a metade dos recursos destinados à Região Nordeste, do total de 3% que essa região tem direito no âmbito da repartição das receitas tributárias, de acordo com o art. 159, I, “c” da Constituição.[1] Como esse dinheiro será gasto, bem como qual a melhor maneira de as políticas públicas enfrentarem o problema das secas e da desertificação são questões que demandam a análise de dois paradigmas sobre o problema: aquele que pretende combater as secas, como se esta fosse o único motivo para o subdesenvolvimento do semi-árido, em contraponto com o paradigma que determina a convivência do homem com as estiagens.

O paradigma do combate às secas, como dito, coloca em evidência as secas como única causa para o subdesenvolvimento do semiárido, esquecendo-se de que, mesmo na época das chuvas, o sertanejo vive no limite, dispondo de péssimas condições de saúde, educação, moradia, alimentação, etc. Roberto Marinho Alves da Silva aponta as características dessa abordagem do problema:

A intervenção governamental no Semi-árido brasilei­ro, em grande parte, tem sido orientada por três dimen­sões que se combinam no combate à seca e aos seus efeitos: a finalidade da exploração econômica; a visão fragmentada e tecnicista da realidade local; e o proveito político dos dois elementos anteriores em benefício das elites políticas e econômicas regionais.

(…)

Desde as primeiras iniciativas governamentais, pesaram os interesses políticos das oligarquias sertanejas no Nordeste, transformando o combate à seca em um grande negócio.

(…)

Outra característica da intervenção governamental no Semi-árido é o enfoque fragmentado e reducionista de que a seca, como falta de água, é o principal problema a ser enfrentado. Os relatos históricos mostram que os estudos técnicos e científicos foram incentivados e patrocinados pelo governo desde os fins do século XIX, buscando identificar as causas das secas e apontar as soluções para redução dos seus efeitos.[2]

O paradigma do combate às secas, assim, privilegia uma análise externa e principalmente econômica de tal questão, buscando resolver tal problema, principalmente, a partir da realização de obras de acumulação de corpos d´água (“solução hidráulica”). A crítica a tal modelo assenta-se na falta de participação das comunidades diretamente afetadas com as secas na formulação das políticas públicas, bem como na colocação da açudagem como exclusivo ou principal mecanismo para solução dos efeitos das estiagens prolongadas. Não é somente com disponibilização de água que o fenômeno das estiagens será vencido.

Buscando superar essa ideologia, o autor aponta a emergência de um novo paradigma, aquele que aponta a necessidade de convivência com o semi-árido. Por convivência com o semi-árido entende-se: “uma perspectiva cultural orientadora da promoção do desenvolvimento sustentável no Semi-árido, cuja finalidade é a melhoria das condições de vida e a promoção da cidadania, por meio de iniciativas socioeconômicas e tecnológicas apropriadas, compatíveis com a preservação e renovação dos recursos naturais.”[3]

Através desse novo ideário, as políticas públicas para desenvolvimento do semi-árido não mais devem considerar as secas, como fenômeno climático, o único fator que leva às péssimas condições de vida dos habitantes do semi-árido. Tais políticas públicas devem se preocupar também com as seguintes questões: sociais, como o combate à pobreza e falta de concretização dos demais direitos sociais; culturais, respeitando as populações tradicionais submetidas às secas e privilegiando as soluções desenvolvidas “de baixo para cima”, sempre com a participação dos diretamente afetados; econômicas, buscando não meramente beneficiar os empreendimentos econômicos que realizem obras no semi-árido, mas se voltando para a geração de trabalho e renda; ambientais, buscando-se a recuperação e conservação dos ecossistemas, com a necessidade de se proteger adequadamente o bioma caatinga; políticas, com o fortalecimento da sociedade civil e com a ampliação da participação desta.[4] O paradigma do mero “combate às secas”, em síntese, negligenciava todas essas questões.

Um exemplo de convivência com as secas pode ser retirado da obra clássica de Guimarães Duque, “O Nordeste e as lavouras xerófilas”[5], a qual aponta a necessidade de um especial fomento para a utilização e plantação de espécies xerófilas, ou seja, mais resistentes às secas, como: o algodão Mocó, a carnaubeira, a oiticica, o cajueiro, a cultura da palma, a goiabeira, a maniçoba, o umbuzeiro, os bosques de algaroba, o faveleiro ou o licuri.

É evidente a grandeza do desafio: qual a melhor forma de exploração de tais lavouras? O homem do campo está aparelhado tecnicamente para o cultivo delas? Como o Poder Público pode fomentar a utilização de tais espécies? Trata-se de um investimento cujo retorno poderá ser alcançado em quanto tempo?

Essas dificuldades, evidentemente, desautorizam o não enfrentamento inteligente da questão.


[1] Art. 159. A União entregará:

I – do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados quarenta e oito por cento na seguinte forma: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 55, de 2007)

c) três por cento, para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento, ficando assegurada ao semi-árido do Nordeste a metade dos recursos destinados à Região, na forma que a lei estabelecer;

[2] SILVA, Roberto Marinho Alves. Entre o combate à seca e a convivência com o semi-árido: políticas públicas e transição paradigmática. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 38, nº 3, jul-set,  2007. p, 471-473.  Disponível em: http://www.bnb.gov.br/projwebren/exec/artigoRenPDF.aspx?cd_artigo_ren=1042. Acessado em: 17/12/2013.

[3] SILVA, R. M. A. Entre o combate à seca e a convivência com o semi-árido: transições paradigmáticas e sustentabilidade do desenvolvimento. 2006. Tese (Doutorado em Desenvolvimento sustentável) – Universidade de Brasília. p, 272. Apud: SILVA, Roberto Marinho Alves. Ob. cit. p, 477.

[4] SILVA, Roberto Marinho Alves. Ob. cit. p, 477.

[5] DUQUE, José Guimarães. O nordeste e as lavouras xerófilas. Banco do Nordeste do Brasil: Fortaleza, 2004. p, 188-297. Disponível em: http://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/23261/1/livro1-O-Nordeste-e-as-Lavouras-Xerofilas.pdf

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Está sendo criado no âmbito do Ministério Público Federal (MPF) o Grupo de Trabalho Intercameral “Seca”, grupo formado conjuntamente com a 4ª e a 5ª Câmara de Coordenação e Revisão, bem como com a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Tal Grupo foi instituído com o objetivo de potencializar a atuação coordenada do MPF na fiscalização das políticas públicas de planejamento e promoção da defesa permanente em face das consequências do fenômeno da seca, especialmente na Região Nordeste. Sua finalidade essencial será a busca pela mitigação dos impactos negativos das secas na vida daqueles sujeitos a tal fenômeno, numa perspectiva de convivência do povo do semi-árido com tal evento climático.

A legitimidade do MPF para atuar nessa seara é justificada sob diversos aspectos. Inicialmente, é interessante ressaltar que, diferentemente do que pode parecer, o semi-árido não é característico somente da Região Nordeste, estendendo-se até o norte do Estado de Minas Gerais, como se pode constar pela foto acima. Assim, não bastasse o impacto nacional já configurado entre os diversos Estados da Região Nordeste, aquele é ainda mais potencializado a partir do seu avanço para outra Região, a Sudeste. Nesse sentido, o próprio Governo Federal dispõe de diversos programas voltados para tais áreas, como o Programa “Água para todos”, integrante de programa ainda mais amplo, o “Brasil sem Miséria”.[1]

Além do mais, o Estado brasileiro obrigou-se internacionalmente a combater e prevenir quaisquer eventos que levem à desertificação e às secas, através da Convenção de Combate à Desertificação da ONU, internalizada através do Decreto Legislativo nº 28, de 13 de junho de 1997. Logo nos considerandos de tal Convenção, tem-se a preocupação central, logicamente, com o ser humano, ao se estatuir: “que os seres humanos das áreas afetadas ou ameaçadas estão no centro das preocupações do combate à desertificação e da mitigação dos efeitos da seca”.

Os impactos da seca sobre os direitos humanos e fundamentais das populações afetas é o pano de fundo, no entanto, de tal atuação, tamanha a afronta que tal evento causa àqueles direitos. Entendendo-se a desertificação como “a degradação da terra nas zonas áridas, semi-áridas e sub-úmidas secas, resultantes de vários fatores, incluindo as variações climáticas e as atividades humanas” e a seca como “o fenômeno que ocorre naturalmente quando a precipitação registrada é significativamente inferior aos valores normais, provocando um sério desequilíbrio hídrico que afeta negativamente os sistemas de produção dependentes dos recursos da terra”, de acordo com conceituações fornecidas no art. 1º da mencionada Convenção, é fácil perceber a brutalidade das secas na vida do sertanejo.

Com a secas, o direito à alimentação corre risco, ante a impossibilidade de desenvolvimento de uma básica agricultura voltada para subsistência. Sem a alimentação, logo a integridade física e psíquica restam comprometidas, não tardando para a própria vida do sujeito, nesse estágio já amplamente impactada, perecer. Os que tentam escapar de tais efeitos podem ser forçados a se mudarem, não raro buscando melhores condições de vida nas cidades, formando favelas. Os impactos aos demais direitos sociais como educação, saúde, moradia, o trabalho do agricultor ou seu lazer são, igualmente, de fácil percepção.

Não bastassem tais consequências, o próprio direito fundamental ao meio ambiente é subjugado, ante a mortandade de animais e plantas. A seca leva à desertificação a partir da redução dos níveis de água nos açudes, mas não se pode olvidar, no entanto, da maléfica atuação humana na ocupação indevida de áreas de preservação permanente consistentes nas matas ciliares, cuja função ambiental específica é, justamente, prevenir assoreamento, estando sujeitas, por isso mesmo, a constantes inundações ao lado dos rios e mananciais.

Sendo assim, a luta contra a desertificação também é responsabilidade da sociedade, que deve adotar posturas condizentes com o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado.

Todos os direitos acima mencionados são direitos humanos também garantidos por tratados internacionais os quais o Brasil se obrigou a respeitar. Há, evidentemente, amplo interesse federal na temática das secas.

O papel do MPF, a partir de amplo diálogo com a sociedade, será o de fiscalizar as políticas públicas voltadas para as secas, numa perspectiva de convivência do ser humano com tal fenômeno. O diálogo com a sociedade é efetivado, por exemplo, a partir de consultas públicas como a desenvolvida pelo MPF na Paraíba, a partir de encontro realizado em 10 de outubro deste ano, na cidade de Sousa/PB, aproximando o povo do órgão ministerial a partir do tema “Seca, esse problema também é nosso. O MPF quer ouvir você”.[2] Medidas como essa são essenciais para a detecção de problemas concretos, dando voz a quem realmente passa por problemas semelhantes aos acima narrados. Não se constitui, evidentemente, na resposta definitiva que a sociedade espera do MPF, constituindo-se, por outro lado, em necessário ponto de partida ou de continuidade da atuação ministerial, agora numa perspectiva mais informada.

O ângulo de enfrentamento das secas a partir da convivência entre as populações afetadas e o próprio fenômeno em si deve ser prestigiado, levando em conta que a seca é um fenômeno previsível. Nesse sentido, um dos focos da atuação ministerial no combate aos efeitos da seca será reforçar a necessidade de se buscar o empoderamento das populações afetadas, a partir, por exemplo, do especial fomento para a utilização e plantação de espécies xerófilas, mais resistentes às secas, como: o algodão Mocó, a carnaubeira, a oiticica, o cajueiro, a cultura da palma, a goiabeira, a maniçoba, o umbuzeiro, os bosques de algaroba, o faveleiro ou o licuri, na exemplificação de Guimarães Duque na sua obra “O Nordeste e as lavouras xerófilas”.[3]

O desenvolvimento do Nordeste passa, necessariamente, pela superação dos multicitados efeitos das secas. Considerando o desenvolvimento como liberdade, é possível compreender como o simples crescimento econômico, ou as boas condições econômicas (como as vivenciadas pelo Brasil nos últimos anos) não se convertem, necessária e automaticamente, em critério qualitativo de desenvolvimento. Para uma análise muito além do PIB, o desenvolvimento realmente ocorre quando amplia as liberdades das pessoas, havendo uma necessária relação entre direitos sociais e individuais.

Esse é o maior esforço de autores como Amartya Sen: sustentar que as liberdades de diferentes tipos podem fortalecer umas às outras, levando ao desenvolvimento do ser humano. A seguinte passagem é esclarecedora sobre o direito ao desenvolvimento nessa perspectiva:

Liberdades políticas (na forma de liberdade de expressão e de eleições livres) ajudam a promover a segurança econômica. Oportunidades sociais (na forma de serviços de educação e saúde) facilitam a participação econômica. Facilidades econômicas (na forma de oportunidades de participação no comércio e na produção) podem ajudar a gerar a abundância individual, além de recursos públicos para os serviços sociais. Liberdades de diferentes tipos podem fortalecer umas às outras.[4]

É com a conjugação dessas liberdades, individuais ou sociais, que será possível criar as oportunidades sociais adequadas, fazendo com que cada um tenha a prerrogativa de moldar seu próprio destino e ajudar uns aos outros.[5]

No sertão nordestino e no norte de Minas Gerais, o desenvolvimento como liberdade somente chegará, repita-se, como a superação dos efeitos das secas, cabendo agora ao MPF um importante papel nessa luta. Para mim, será um grande desafio, especialmente porque semana passada tive a honra de ser indicado pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão para integrar o citado grupo de trabalho. Buscarei fazer o que a sociedade mais necessitada espera de um procurador da República: ajuda na concretização de direitos básicos.

[3] DUQUE, José Guimarães. O nordeste e as lavouras xerófilas. Banco do Nordeste do Brasil: Fortaleza, 2004. p, 188-297. Disponível em: http://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/23261/1/livro1-O-Nordeste-e-as-Lavouras-Xerofilas.pdf

[4] SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p, 26.

[5] SEN, Amartya. Ob. cit. p, 26.

Concluindo o Trabalho de Conclusão de Curso referente ao Curso de Ingresso e Vitaliciamento de Procuradores da República, escrevi um artigo sobre “As ruas e o Ministério Público – o papel do Parquet no diálogo entre sociedade e Estado através do direito de reunião”. Dentre os temas abordados, encontra-se a análise da liberdade de reunião a partir do princípio da máxima eficácia dos direitos fundamentais. Com isso, busquei demonstrar que diversas interpretações restritivas do âmbito de proteção de tal direito merecem ser rechaçadas. Eis um pequeno texto sobre o tema, o qual segue a orientação de George Marmelstein lançada aqui, no que tange à bibliografia sugerida.

Uma reunião é formada por uma pluralidade de pessoas, sendo necessária no mínimo duas pessoas para a própria expressão “reunião” ter algum significado (quem se reúne, obviamente, o faz com alguém).[1] Da mesma forma que não se pode limitar a liberdade de expressão a assuntos exclusivamente políticos, também não se pode assim proceder em relação à proteção da liberdade de reunião. Primeiramente, não há qualquer limitação constitucional nesse sentido, devendo-se, como dito acima, a norma fundamental ser interpretada em sua máxima eficácia. Além do mais, uma posição restritiva como aquela poderia ser utilizada facilmente como mecanismo de censura, não se admitindo a proteção constitucional para manifestações artísticas, culturais ou meramente recreativas pela arbitrária razão de que a autoridade de plantão não compartilharia os valores propagados por determinada parcela da sociedade.[2]

Prosseguindo, tem-se o elemento temporal da liberdade, sendo intuitivo supor que uma determinada manifestação tenha prazo razoável para se desenvolver. Nesse sentido, apesar de as autoridades públicas não poderem, a piori, estabelecer um prazo para o desenvolvimento do ato, é possível posterior restrição temporal em face de largo transcurso de tempo, se a reunião acaba por colidir com outros direitos fundamentais igualmente relevantes.

O caráter pacífico da reunião é garantido pela ausência de armas e pela postura não beligerante de seus participantes. O protesto sentado é considerado pela jurisprudência estrangeira[3], acertadamente, como pacífico. Ora, mesmo impedindo a passagem de outrem, tal manifestação corporal encontra proteção tanto na liberdade de expressão (protesto através de atos corporais) como na liberdade de reunião, havendo forte carga argumentativa a favor da proteção a tal conduta. Sem dúvidas há uma colisão de direitos fundamentais, entre tais direitos e a liberdade de ir e vir, como, de resto, ocorre em praticamente todas as situações em que ocorrem manifestações públicas. Vedar, simplesmente, a reunião sentada seria medida completamente desproporcional em sentido estrito, pois o custo para promover a liberdade de ir e vir seria a total aniquilação daquela outra liberdade. Compatibilizando os direitos em jogo, é possível se pensar numa restrição temporal, nos moldes apontados acima.

Uma reunião não deixa de ser pacífica se parte de seus integrantes começam a cometer atos de violência, devendo a autoridade policial identificar os baderneiros e retirá-los da reunião. Não se nega a dificuldade exacerbada em torno do exercício do poder de polícia em relação às multidões, mas não se pode admitir a dissolução de uma reunião em face de atos isolados de violência. A atuação policial nas manifestações públicas será abordada com mais profundidade na análise específica do papel do Ministério Público na proteção do direito de reunião.

Finalmente, como elemento dos mais caros à liberdade de reunião tem-se seu caráter espacial, o qual compreende as áreas abertas ao público. Com isso, evidentemente, não se quer vedar proteção às reuniões em locais privados, mas sim apontar que, nesses casos, a proteção será alcançada por outros direitos fundamentais, como o direito de propriedade, a proteção ao domicílio e inviolabilidade da vida privada.[4]

O elemento espacial é outro aspecto da liberdade de reunião que o coloca em posição de grande proximidade com o regime democrático. Reivindicar, protestar, sugerir novos rumos para a política e a coisa pública de um modo geral somente pode ter um mínimo de efeito prático quando tais atos se desenvolvem no espaço público, às claras. Historicamente, as praças são os locais de tais transformações.[5]

A importância da praça, como se pôde perceber, não autoriza supor que tal local público é o único destinado às manifestações. Ao protesto público e à liberdade de reunião em geral, devem ser garantidos o uso equânime e legítimo dos espaços públicos que são utilizados para os propósitos mais rotineiros, como o tráfego de pedestres e veículos. Isso quer dizer que mesmo rodovias podem ser utilizadas como palco das manifestações, como decidido, por exemplo, pela Suprema Corte de Israel em 1979, conforme noticiado no Guidelines on Freedom os Peaceful Assembly, da organização internacional OSCE – Office for Democratic Institutions and Human Rights (ODIHR).[6]

Finalmente, a Constituição coloca como elementos procedimentais do direito de reunião a necessidade de comunicar previamente às autoridades a realização da reunião, bem como a vedação para que ela não frustre outra manifestação anteriormente convocada para o mesmo local. O intuito de tais procedimentos são os seguintes: 1) possibilitar na prática a realização do direito; 2) informar às autoridades públicas para que estas tomem as medias de segurança e de controle do tráfego necessários para o bom andamento da manifestação; 3) estabelecer a ordem cronológica de preferência entre reuniões que ocorrerão, eventualmente, no mesmo local; 4) prevenir o público em geral acerca do local, momento e conteúdo da manifestação, para que, caso não se queira participar do evento (já que ninguém pode ser obrigado a se reunir) busquem-se rotas alternativas, afastando-se da reunião.

Com dito na introdução do presente texto, toda a análise do direito de reunião será pautada pelo princípio interpretativo da máxima eficácia dos direitos fundamentais. Sendo assim, os presentes limites procedimentais devem ser bem interpretados, não podendo consubstanciar fonte de argumentos arbitrários contra a liberdade de reunião.

Nesse sentido, não há que se falar em necessidade de autorização estatal para a manifestação, muito menos em dissolução da reunião em face da ausência do aviso prévio. Tal aviso, em verdade, sequer pode ser exigido nas reuniões espontâneas, a saber, aquelas formadas em oposição às reuniões convocadas por associações ou pessoas dotadas de maior representatividade. Além do mais, cabe ao Poder Público se aparelhar para receber adequadamente tal aviso prévio, devendo-se considerar como adimplida tal condição quando a manifestação for pública e notória, com ampla divulgação na mídia ou nas redes sociais.

A ausência de aviso prévio, assim, não torna lícita a dissolução da reunião, devendo as autoridades policias fazerem o possível, dentro da dificuldade criada pelos próprios organizadores do evento, para garantir o bom andamento da reunião. Sendo assim, a consequência da ausência de observância desse limite procedimental é o risco, para os próprios manifestantes, de a reunião não alcançar seus fins almejados, nunca, repita-se, a dissolução da mesma.

De acordo com o texto constitucional, uma reunião não pode frustrar outra anteriormente convocada para o mesmo local. Tal limite tem sua razão de ser na tentativa de garantir a fruição do direito de reunião por parte do grupo que primeiramente comunicou a convocação às autoridades. No entanto, mesmo este limite deve ser interpretado com cuidado, no sentido de que, em sendo possível, também a reunião convocada tardiamente deve merecer proteção, admitindo-se sua dissolução somente em último caso.

Partindo-se do princípio interpretativo da máxima eficácia dos direitos fundamentais, portanto, é possível concluir que: 1) o conceito de reunião pacífica alberga o protesto sentado; 2) uma reunião não se torna violenta pela ação de parte de seus participantes, devendo os agentes de segurança retirarem tais manifestantes, não dissolvendo a reunião; 3) uma reunião, apesar de precisar de um mínimo de coordenação, não precisa, necessariamente, ter uma finalidade política, merecendo proteção as manifestações culturais e artísticas, mesmo que não se concorde com seu conteúdo; 4) as rodovias, como importante espaço público, podem sim ser local de manifestação, mesmo que cause transtornos para motoristas, os quais não terão seu direito de ir e vir totalmente vedado, mas simplesmente restringido; 5) os limites ou elementos procedimentais a tal direito simplesmente servem para facilitar o exercício da liberdade de reunião; 6) sendo assim, eventual falta de aviso prévio às autoridades não torna a reunião ilícita, muito embora possa haver responsabilização do agente convocador, em casos de abusos; 7) mesmo as reuniões convocadas para o mesmo local devem ser protegidas na medida do possível, vedando-se a realização da reunião cronologicamente mais nova somente em último caso.


[1] Bodo Pieroth e Bernhard Schlink, ao conceituarem o termo “reunião”, apontam que: “Na questão do conceito de reunião, verifica-se um consenso no sentido de que não pode ser suficiente qualquer encontro de várias pessoas, sendo, pelo contrário, necessária uma ligação interna, assegurada pela prossecução de um fim comum. Por isso, não são reuniões, mas meros ajuntamentos, uma concentração de pessoas quando de um acidente de trânsito ou o público num concerto musical, em que todos prosseguem o mesmo fim, mas não um fim comum, visto que não precisam uns dos outros para prossecução desse fim. Todavia, também os meros ajuntamentos se podem transformar em reuniões, se vier a surgir a ligação interna que a princípio faltava”. PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. Tradução: Antônio Francisco de Sousa e Antônio Franco. São Paulo: Saraiva, 2012.  p, 254.

[2] Nesse sentido, é possível criticar a decisão do Tribunal Federal Constitucional alemão no caso Loveparade. Segundo George Marmelstein: “O Loveparade é um festival de música tecno ao ar livre. Foi concebido originariamente como manifestação política pela paz através da música. Na sua primeira edição, em 1989, tinha apenas 150 participantes. Dez anos depois, passou a ser frequentado por mais de um milhão de pessoas. É considerado como a maior festa rave do mundo.” O evento ocorria numa área pública no centro de Berlim e em, 2001, por conta de transtornos causados pela multidão, teve sua realização proibida pelas autoridades. Quando o caso chegou ao Tribunal Federal Constitucional alemão, este negou proteção à reunião, usando, dentre outros fundamentos, o argumento de que “a liberdade de reunião, ainda que seja um dos direitos fundamentais mais importantes para a democracia, já que exerce uma função substancial na formação da opinião pública, não protege uma mera aglutinação de pessoas unidas por objetivos partilhados como a dança e a música, sendo indispensável um propósito de manifestar uma opinião, o que não ficou demonstrado no caso Loveparade”. Arrematando, o autor aponta as seguintes críticas a tal decisão: “Em primeiro lugar, o Loveparade, aparentemente, tem sim um intuito de divulgar uma ideia – seja a paz, seja o amor, seja a música tecno -, ainda que a forma de expressão não se amolde ao ‘mainstream’, ou seja, ao gosto cultural da maioria da população. Em segundo lugar, mesmo que não tivesse qualquer intuito ideológico por detrás do Loveparade, penso que a liberdade de reunião protege apenas reuniões ideológicas, mas qualquer tipo de reunião, desde que haja interesses comuns compartilhados, como ouvir e dançar uma música em praça pública”. MARMELSTEIN, George. A praça é do povo? A liberdade de reunião e o direito de manifestação popular em espaços públicos na visão dos tribunais. p, 22-24. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/41288960/Direito-de-Reuniao. Acessado em: 08/10/2013.

[3] Caso Sitzblockaden II (1995) – bloqueio sentado contra armas nucleares, julgado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão. MARMELSTEIN, George. Ob. cit. p, 20-21.

[4] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Ob. cit. p, 367.

[5] Nesse sentido, George Marmelstein aponta que: “A Ágora – símbolo maior da democracia grega – era a praça em que os cidadãos atenienses se reuniam para deliberarem sobre os assuntos da pólis. A liberdade dos antigos, para usar a conhecida expressão de Benjamin Constant, era justamente a liberdade de ‘deliberar em praça pública’ sobre os mais diversos assuntos: a guerra e a paz, os tratados com os estrangeiros, votar as leis, pronunciar as sentenças, examinar as contas, os atos, as gestões dos magistrados e tudo o mais que interessa ao povo. A democracia nasceu, portanto, dentro de uma praça. A praça também pode ser considerada como um ícone da liberdade dos modernos de que falava Constant. Foi na Place de la Bastille, em Paris, que se realizou pela primeira vez, em 14 de julho de 1790, a Fête de la Fédération (‘Festa da Federação’), para comemorar a Revolução Francesa que tinha se iniciado um ano antes naquele mesmo local, com a famosa queda da prisão da Bastilha, que simboliza o começo da modernidade. No Brasil, o movimento Diretas Já, que acelerou o fim da ditadura militar, teve como palco principal as praças das grandes cidades brasileiras: a Praça da Sé e a Praça Charles Müller, em São Paulo; Praça da Cinelândia e Praça da Candelária, no Rio de Janeiro; Praça Rio Branco, em Belo Horizonte; Praça do Bandeirante, em Goiânia; Praça Gentil Ferreira, em Natal; Praça XV de Novembro, em Florianópolis, entre várias outras. Muitas praças foram território de batalhas sangrentas pela liberdade no mundo todo. Em Pequim, na China, a Praça da Paz Celestial (Tian´anmen) presenciou um dos grandes atentados contra a liberdade da história contemporânea: o Massacre de 4 de junho de 1989, onde milhares de estudantes chineses, que protestavam pacificamente contra a repressão e a corrupção do governo chinês, foram mortos pelo exército sem qualquer respeito aos mais básicos direitos humanos”. MARMELSTEIN, George. Ob. cit. p, 35. Atualizando a rica lista lembrada pelo autor, poder-se-ia ainda citar o mais conhecido palco da chamada “primavera árabe”, qual seja, a praça Tahir, no Egito.

[6] Nesse sentido: “Participants in public assemblies have as much a claim to use such sites for a reasonable period as everyone else. Indeed, public protest, and freedom of assembly in general, should be regarded as an equally legitimate use of public space as the more routine purposes for which public space is used (such as pedestrian and vehicular traffi c). This principle was clearly stated in a decision of the Israeli Supreme Court in 1979: ‘… In exercising the ‘traffi c’ consideration, a balance must always be struck between the interests of citizens who wish to hold a meeting or procession and the interests of citizens whose right of passage is aff ected by that meeting or procession. Just as my right to demonstrate in the street of a city is restricted by the right of my fellow to free passage in that same street, his right of passage in the street of a city is restricted by my right to hold a meeting or procession. The highways and streets were meant for walking and driving, but this is not their only purpose. They were also meant for processions, parades, funerals and such events.’ OSCE – Office for Democratic Institutions and Human Rights (ODIHR). Guidelines on Freedom of Peaceful Assembly. Varsóvia: OSCE-ODIHR, 2007. Disponível em: http://www.osce.org/odihr/24523. Acessado: 08/10/2013. 

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Máscara que retrata Guy Fawkes, a partir do traço de David Lloyd em “V de Vingança”, de Alan Moore.

Como se sabe, nesta semana foi sancionado Projeto de Lei nº 2405/2013 do Estado do Rio de Janeiro através do qual há a proibição de uso de máscaras por parte dos manifestantes de rua, sob o argumento de que a Constituição veda o anonimato. A finalidade mais evidente e declarada para tal proibição é facilitar a identificação daqueles pseudo manifestantes infiltrados nas multidões que, criminosamente, buscam se utilizar do direito de reunião alheio para praticar delitos contra o patrimônio ou, até mesmo, contra a integridade física.

O presente post tem por finalidade sustentar a inconstitucionalidade de tal Lei[1] e, mais que isso, demonstrar como a vedação ao anonimato foi utilizada como um argumento mascarado de autoritarismo. Vamos à introdução necessária.

A Constituição Federal de 1988, no art. 5º, inciso IV, aponta que é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. A razão de ser de tal vedação é clara: possibilitar a responsabilização daqueles que, a pretexto de se expressarem, violam direito alheio. Sabendo que a própria Constituição impõe como limite à liberdade de expressão o respeito à imagem e à honra (art. 5º, inciso X), nada mais justo que a previsão de meios para se identificar quem viola tais direitos.

A liberdade de reunião, por outro lado, está prevista no art. 5º, inciso XVI, prescrevendo que todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.

As manifestações de rua dos últimos tempos demonstram uma clara concorrência de direitos fundamentais[2]: os manifestantes tem sobre si a proteção do direito de reunião em si e também da liberdade de expressão, especialmente aqueles que, de acordo com suas convicções, entendem conveniente se reunirem usando uma máscara do personagem narrado por Alan Moore no “V de Vingança”. Pode-se gostar ou não de tais formas de expressão mascaradas, mas elas, em si, não afrontam qualquer direito alheio.

Eis o primeiro argumento: pressupor que algum manifestante mascarado, necessariamente, vai praticar delitos é uma presunção altamente contestável. O sujeito pode usar uma máscara somente porque, cansado de diversos políticos que mostram a cara (mesmo que seja uma cara mascarada, se é que me entendem) e estão pouco preocupados com o mandato que adquiriram do povo, melhor é manter-se anônimo. Evidentemente que tal linha de raciocínio pode ser criticada, mas ela, por si só, repita-se, não viola a honra e imagem de ninguém, muito menos o patrimônio e a integridade física.

Quem se reúne para fazer baderna, normalmente, usa máscaras, mas nem todos que as usam são baderneiros. Como solucionar a equação? Certamente não pelo caminho falacioso do “justo paga pelo pecador”. Ora, estamos falando de uma restrição a dois direitos fundamentais: a liberdade de expressão e de reunião. A carga argumentativa para justificar a restrição deve ser amplamente fundamentada, não podendo se basear unicamente numa premissa tão contestável como aquela vista cima.

Segundo argumento: o direito de reunião não comporta qualquer outra restrição que não aquelas previstas no próprio dispositivo constitucional, a saber: 1) caráter pacífico da reunião, a qual não pode conter armas; 2) prévio aviso à autoridade, somente para fins de organização e sem a necessidade de maiores formalidades.

É evidente que a Constituição deve ser lida sistematicamente e que a vedação ao anonimato está prevista naquele dispositivo que rege a liberdade de expressão. No entanto, tal vedação se refere especificamente a tal liberdade, não alcançando a liberdade de reunião. Nesse caso, o direito fundamental de reunião ganha prevalência sobre a liberdade de expressão, por ser menos restrito. A afirmação anterior se justifica ainda mais porque tal concorrência de direitos fundamentais é daquelas que a doutrina qualifica como autênticas, sendo assim chamadas porque não se pode estabelecer uma relação de especialidade entre os direitos envolvidos. Sobre o tema, Bodo Pieroth e Bernard Schlink sustentam que:

Se uma conduta cair nos âmbitos de proteção de dois direitos de liberdade, entre os quais não se verifica qualquer relação de especialidade (o chamado concurso ideal), a proteção da conduta determina-se em conformidade com ambos os direitos fundamentais. Se o efeito de proteção de ambos os direitos fundamentais tiver forças diferentes, a dupla proteção significa que uma ingerência só está justificada se puder ser justificada também pelo direito fundamental de proteção mais forte.[3] (sem destaques)

O direito fundamental com proteção mais forte no caso concreto é a liberdade de reunião, já que não contempla a cláusula que veda o anonimato. Em outras palavras: em reuniões, os manifestantes têm direito ao anonimato.

Percebe-se, portanto, como a vedação ao anonimato foi utilizada de maneira sorrateira e autoritária para se tentar restringir de modo inconstitucional o direito de reunião e de expressão. É claro que se deve coibir a baderna e ação imbecil e criminosa de uma minoria, mas tal finalidade deve ser buscada com inteligência, nunca ao custo dos direitos fundamentais.


[1] Há outras inconstitucionalidades nela, como, por exemplo, a exigência de comunicação prévia da manifestação à polícia (a Constituição não prevê qualquer exigência específica neste sentido), mas elas não serão abordadas no texto.

[2] Canotilho cita como exemplo de concorrência de direitos fundamentais justamente a liberdade de expressão com a liberdade de reunião: “Uma das formas de concorrência de direitos é, precisamente, aquele que resulta do cruzamento de direitos fundamentais: o mesmo comportamento de um titular é incluído no âmbito de proteção de vários direitos, liberdade e garantias. O conteúdo destes direitos tem, em certa medida e em certos sectores limitados, uma cobertura normativa igual. Exemplifiquemos: o direito de expressão e informação (art. 37º) está em contacto com a liberdade de imprensa (art. 38º), com o direito de antena (art. 40º) e com o direito de reunião e manifestação (art. 45º). Da mesma forma, o direito de formação de partidos políticos (art. 51º) está em contacto com a liberdade de associação (art. 46º) e com a liberdade de expressão e informação (art. 37º). (sem destaques no original). CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7a ed. Coimbra: Editora Almedina, 2003. p, 1268.

[3]PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. Tradução: Antônio Francisco de Sousa e Antônio Franco. São Paulo: Saraiva, 2012. p, 120. Percebe-se que os autores, no trecho transcrito, também analisam a segunda hipótese de concorrência proposta, apontando a mesma solução que Canotilho: prevalência do direito fundamental que tem a proteção mais forte.