
Nesta data comemorativa de estreia da terceira temporada da Guerra dos Tronos (Game of Thrones), segue o presente post, voltado especialmente para como os personagens desta incrível série são desenvolvidos.
Na vida nós interpretamos papéis que ora nos colocam na condição de heróis, ora de vilões, dependo da perspectiva. O que mais me fascina na obra de G. R. R. Martin é a capacidade que este autor tem de retratar este estado de coisas.
As Crônicas do Gelo e Fogo consistem num épico medieval onde traição, lealdade, heroísmo e vilania caminham juntos. O enredo se passa no mundo de Westeros, onde uma luta desenfreada pelo poder, simbolizado pelo Trono de Ferro, é aguçada após a morte do Rei Robert. Dragões, magia, mortos-vivos, deuses (antigos e novos) e demais seres e acontecimentos fantásticos chamam a atenção do leitor pela forma natural e extremamente verossímil como são apresentados. São os personagens, no entanto, de carne, osso e sangue que roubam a cena.
G.R.R. Martin utiliza o ser humano em sua narrativa levando-o para muito além do simples e estanque dualismo entre bem e mal. É essa complexidade de características, essencialmente humanas, que tornam a obra tão fascinante. Os caminhos humanos são tortuosos e perscrutar, por exemplo, a origem da bondade e coragem de um homem que não teme a morte em face de seus ideais é tão fascinante quanto entender a crueldade e malevolência daquele que ordena sua decapitação.
Essas características, aliadas ao realismo com que as estórias dos personagens são contadas, predem o leitor. Para mim, os momentos mais marcantes da obra são mostrados, normalmente, naqueles parágrafos de quase meia página, no qual a narração de algum fato passado na vida daqueles indivíduos mostra a dura face de uma crueldade descrita com precisão cirúrgica. Exemplos: 1) a origem das cicatrizes do Cão de Caça; 2) a origem do amor de Tyrion pelas prostitutas; 3) a razão para Sam, amigo de Jon Snow, ter vestido o negro; 4) a castração de Varys; 5) a decadência de Sor Jorah Mormont e seu exílio. Tais situações, num elenco meramente exemplificativo, por vezes enojam e revoltam, mas nem por isso podem ser tachadas de menos verdadeiras.
Esse jogo ganha contornos mais complexos quando um único personagem consegue incorporar em si aquelas características contrapostas, boas e vis. A partir desta terceira temporada, isso acontecerá mais vivamente com um deles. E aqui há uma polêmica: até que ponto atos bondosos são suficientes para expiar todos os pecados da vida de uma pessoa, outrora devotada para o mal?
A abordagem seguinte não é nova, mas ajudará a entender. Quando o filme A Queda (Der Untergang) foi lançado, diversas críticas lhe foram dirigidas, principalmente em face das cenas que retratavam Adolf Hitler numa perspectiva humana, como, por exemplo, nos momentos em que ele tratava sua secretária com extrema cordialidade. Para os críticos, Hitler deveria ser retratado como um facínora e assassino em massa em tempo integral.
Ocorre que não há mal absoluto.
É um exagero querer que um filme, ou qualquer obra literária, fruto da liberdade de expressão, tenha um compromisso quase que documental com a verdade (sabemos que é a liberdade de imprensa quem deve ter essa pretensão). De todo modo, o referido filme retrata diversos outros momentos em que o Hitler convencional revelava suas cores. Se Hitler, para sua jovem secretária, mostrava-se compreensivo e atencioso, daí não se pode inferir que ele deva ser perdoado por suas atrocidades. Cabe ao telespectador, ou ao leitor, separar as coisas. A Queda tem, assim, dentre outros méritos, mostrar que Hitler, além de monstro, era um ser humano, goste-se ou não.
Voltando à Guerra dos Tronos, tem-se que G.R.R. Martin, como dito, brinca com os tons de cinza ínsitos à humanidade. Quem nunca se surpreendeu, positiva ou negativamente, com uma atitude de alguém que reputávamos nosso inimigo ou amigo? Quem nunca se arrependeu de um ato que lhe colocou como vilão para com outrem? Sempre que algo desse tipo acontece, logo penso como G.R.R. Martin é genial.
Mas então, quais as consequências dessa mudança de papel? Os novos heróis já devem gozar de uma reputação apta de apagar todo seu passado de vilania? Igualmente, os novos vilões merecem ser condenados definitiva e perpetuamente, sem qualquer referência ao seu passado de glórias?
Vamos ser mais objetivos e tratar o ato de vilania como um crime, ato que goza de uma reprovabilidade social generalizada. Com isso busco evitar o subjetivismo na caracterização dos heróis e vilões no caso concreto. Sendo assim, alguém que, sistemática e surpreendentemente, começa uma campanha difamatória e caluniante (praticando, assim, os crimes de difamação e calúnia) contra outrem, assume um papel, naquela situação posta, de vilania em relação à vítima.
Suponha-se que, ao mesmo tempo em que pratica tais crimes, tal agente é, por exemplo, um competente médico, sendo o responsável por salvar diversas vidas. Para seus pacientes, não há ser humano melhor e mais valoroso.
O Direito determina que uma pena seja imposta àquele infrator, de modo que suas condições profissionais não podem levar à sua absolvição. Nem por isso elas são desconsideradas: em sendo ele primário e com bons antecedentes, provavelmente sua pena base será fixada no mínimo.
Meu ponto é: mesmo o vilão do caso concreto deve ser punido com proporcionalidade, pois ele não é criminoso em tempo integral. Evidentemente que tal solução seria bem diferente se o vilão fosse Fernandinho Beira Mar. No entanto, mesmo para este, há um consolo para os que o considera um herói (seus pais ou outros familiares, por exemplo): a possibilidade, em tese, de volta ao convívio familiar, ante a ausência de penas de caráter perpetuo ou de morte.
Minha conclusão é: há espaço sim para reconciliação e mudança de papéis, mas somente após o cumprimento de uma pena justa, proporcional. E somente alguém imparcial, o Juiz da questão, pode ter a visão e sabedoria para perceber todas as nuances e filigranas da condição humana.
Busquei essa abordagem a fim de evitar spoilers, mas, quem já leu o terceiro livro, sabe bem de qual personagem estou falando. Será que algum dia a justiça baterá na sua porta?
A “Tormenta de Espadas” será dividida em duas temporadas, tendo potencial para serem as melhores de toda a série da HBO. Tal obra chegou a concorrer ao prêmio Hugo de fantasia e ficção científica, em 2001, tendo recebido ampla aceitação da crítica. Dos quatro primeiros livros (ainda não li o quinto) ele é, sem dúvidas, o melhor.
As Crônicas do Gelo e Fogo podem gerar diversos outros debates. Num futuro post analisarei como elas podem se relacionar com o tema do poder constituinte.
Enquanto isso, vamos jogando o jogo da vida. Tabém nele, às vezes, vence-se ou morre. Não há meio-termo, principalmente quando o inverno está chegando.