É celebre a disposição contida no art. 16 da Declaração Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “Toda sociedade na qual não esteja assegurada a garantia de direitos nem determinada a separação de poderes não possui Constituição”. Em verdade, o princípio da separação dos poderes, em sua feição liberal, fora concebido como forma de limitar o poder e preservar a liberdade da burguesia então ascendente, sepultando de vez qualquer resquício do regime absolutista.[1]
Ocorre que as feições atuais do princípio da separação dos poderes fez surgir um alargamento das funções deles, tendo, para alguns, o Poder Judiciário crescido justamente como forma de reequilibrar essa relação. Nessa linha, o crescimento de atribuições do Poder Judiciário, justificando uma releitura do princípio da separação de poderes, teria sido uma resposta ao aumento das atribuições típicas do Poder Executivo e do Poder Legislativo trazidas a lume com o advento do Estado Social.[2] Com esse novo cenário, o avanço do Poder Judiciário nada mais representa do que o necessário movimento para se preservar a harmonia e independência entre os demais Poderes, com a ampliação dos mecanismos de freios e contrapesos.
O fenômeno acima sucintamente descrito diz respeito à judicialização da política, o qual não se confunde com o ativismo judicial. A judicialização é uma imposição das Constituições, as quais, gradativamente, têm cada vez mais matérias inseridas em seus textos, alcançando os mais diversos ramos da vida. O ativismo, por outro lado, é uma posição interpretativa que não decorre diretamente da Constituição, mas sim de um ato de vontade do próprio juiz, proferindo decisão sem amparo no texto constitucional, muito embora, não raro, a pretexto de concretizá-lo.
Nessa linha, a maior polêmica reside na legitimidade e limites do ativismo. Para Luís Roberto Barroso, por exemplo, apesar de não serem fenômenos idênticos, judicialização e ativismo tem certos laços em comum, no sentido de que ambos apontam para um protagonismo judicial, pelo menos sob certas hipóteses.[3] Nessa linha, entende como justificável o ativismo em certos casos, quando, por exemplo, haja manifesto desinteresse do Poder Legislativo em enfrentar determinado tema. Nessa linha, a atuação seria justificável para “contornar, bypassar o processo político majoritário quando ele tenha se mostrado inerte, emperrado ou incapaz de produzir consenso”.
A judicialização, assim, diz respeito ao alargamento da função do Poder Judiciário tendo em vista que temas como meio ambiente, direitos do consumidor, da família ou dos indígenas, entre tantos outros, passaram a compor a Constituição. Com o surgimento do Estado Social, as finalidades estatais são amplamente dilatadas, pois agora o Estado deve atuar como agente capaz de reduzir as desigualdades de fato existentes na sociedade. Os direitos sociais, assim, são aqueles direitos fundamentais de segunda geração, ligados ao valor igualdade. A implementação desses direitos demanda, primordialmente, uma atitude positiva por parte do Estado, diferentemente dos direitos de primeira geração, ligados ao valor liberdade e cujo respeito demanda, em maior medida, uma abstenção estatal.[4]
Desse modo, para se alcançar essas finalidades sociais em temas como previdência social, saúde, assistência, trabalho, proteção à gestante, proteção à infância, lazer, cultura, moradia, educação e segurança, as competências do Poder Executivo e do Legislativo, inegavelmente, acabam por se ampliar. Uma constatação desse movimento pode ser facilmente percebida com o surgimento nos textos constitucionais de normas tidas por “programáticas”, cuja concretização dependeria de ulterior regulamentação não só por uma única lei infraconstitucional, mas por várias. Além disso, tais normas constitucionais dependeriam de atos concretos do Poder Executivo para serem, efetivamente, aplicadas.[5] Com esse novo dimensionamento desses poderes políticos, o Poder Judiciário teve de se adaptar, pois passou a ser chamado a se manifestar sobre políticas públicas e a inconstitucionalidade da não implementação destas.
A questão, especialmente no Brasil, é ainda mais complexa, no que tange ao ativismo judicial eis que, como aponta Lenio Streck, ele compõe uma das recepções equivocadas do direito brasileiro, contribuindo essencialmente para a crise deste. Diferentemente de Luíz Roberto Barroso, Lenio Streck não concebe como aceitável o ativismo, eis que sob ele está a mácula inexpugnável de um positivismo que garante aos juízes total discricionariedade no momento decisório.[6] Lenio usa como exemplo de ativismo inaceitável a tentativa de se mudar o texto da Constituição através de interpretação judicial, como tentaram os Ministros Gilmar Mendes e, especialmente, Eros Grau, no julgamento da Reclamação Constitucional nº 4.335/AC, quando se buscou alterar o texto do art. 52, X da Constituição: segundo os Ministros, caberia ao Senado Federal simplesmente publicar a decisão do STF que julgasse no todo ou em parte inconstitucional determinada lei, em sede de controle difuso, muito embora o texto constitucional diga que cabe àquele órgão legislativo o papel de “suspender” tal lei, não “publicar” um acórdão.
Tanto judicialização como ativismo demandam uma releitura das feições clássicas do princípio representativo. A judicialização afigura-se legítima, na medida em que decorre de próprias exigências constitucionais, podendo-se questionar, somente, o acerto dos parlamentares constituintes em constitucionalizar tantas matérias. O ativismo judicial, por outro lado, corrompe gravemente o princípio representativo, eis que admite que juízes possam tomar decisões até mesmo contrárias ao claro texto constitucional, sempre sob o manto das boas intenções.
[1] Nesse sentido, Paulo Bonavides aponta que: “Todo o prestígio que o princípio da separação de poderes auferiu na doutrina constitucional do liberalismo decorre da crença no seu emprego como garantia das liberdades individuais ou mais precisamente como penhor dos recém-adquiridos direitos políticos da burguesia frente ao antigo poder das realezas absolutas”. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10ª ed. 12ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2003. p, 142.
[2] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Editora SAFE, 1993. p, 19.
[3] Eis a diferenciação do autor: “A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, freqüentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva”. BARROSO, Luíz Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: http://www.plataformademocratica.org/Publicacoes/12685_Cached.pdf. Sentido diverso, no tocante ao pretenso parentesco entre ativismo e judicialização, é sustentado por Rafael Tomaz de Oliveira, o qual, ao desenvolver as ideias de Lenio Streck, aponta: “A pesquisa que efetuamos e que estamos apresentando nesta introdução nos permite afirmar, contudo, que não há uma relação de parentesco entre ativismo e judicialização, do modo como quer Barroso. Efetivamente, as origens dos fenômenos são distintas. Mas não se trata apenas disso: os contornos de cada um – sua “carga genética”, por assim dizer – demonstram que cada um dos fenômenos participam de famílias diferentes. Antecipando nossa conclusão: enquanto o ativismo judicial está umbilicalmente associado a um ato de vontade do órgão judicante; a judicialização de questões políticas ou sociais não depende desse ato volitivo do poder judiciário, mas, sim, decorre da expansão da sociedade (que se torna cada vez mais complexa) e da própria crise da democracia, que tende a produzir um número gigantesco de regulações (seja através de leis, medidas provisórias, decretos, portarias, etc.) e que encontram seu ponto de capilarização no judiciário e, principalmente, nas questões cujo deslinde envolve um ato de jurisdição constitucional.” OLIVEIRA, Rafael Tomaz; FARIA, Bruno Costa de; CURTOLO, Cristiane Maria de Lima; TEODORO, Leandro; VELUDO, Michele Seixas. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. IN: Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional. Disponível em: http://www.abdconst.com.br/anais2/JurisdicaoRafael.pdf.
[4] Ainda segundo Cappelletti: “Constitui um dado da realidade que a legislação social ou de welfare conduz inevitavelmente o estado a superar os limites das funções tradicionais de “proteção” e “repressão”. O papel do governo não pode mais se limitar a ser o de um “gendame” ou “night watchman”; ao contrário, o estado social – o ‘État providence’, como o chamam, expressivamente, os franceses – deve fazer sua a técnica de controle social que os cientistas políticos chamam de promocional. Tal técnica consiste em prescrever programas de desenvolvimento futuros, promovendo-lhes a execução gradual, ao invés de simplesmente escolher, como é típico da legislação clássica, entre ‘certo’ e ‘errado’, ou seja, entre o ‘justo’ e o ‘injusto’, right and wrong. E mesmo quando a legislação social cria por si mesma direitos subjetivos, cuida-se mais de direitos sociais do que meramente individuais.” Ob. cit. p, 41.
[5] Veja-se, por exemplo, que a concretização do direito social à saúde é impensável de ocorrer “da noite para o dia”, ou através de uma simples e única lei. É necessária a concatenação de uma série de leis tratando do tema e seus correlatos, nas mais diversas esferas de governo. Além disso, a concretização em si do direito só ocorrerá de fato com o dispêndio de gastos públicos e a prática de diversos atos administrativos relativos à: construção de hospitais, ampliação de atos de prevenção, realização de licitação para compra de materiais e remédios, realização concurso para contratação de servidores especializados, etc.
[6] Tal discricionariedade é ainda mais potencializada a partir das três recepções equivocadas no direito brasileiro: 1) a jurisprudência dos valores; 2) a ponderação alexyana; 3) o ativismo norte-americano. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p, 47-55.