Arquivos para Controle de Constitucionalidade e Democracia

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Fonte: 

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/01/1850276-presos-ainda-controlam-ala-de-presidio-no-rn-apesar-da-presenca-da-policia.shtml

  1. Introdução

Um dos problemas concretos enfrentados nas aulas de Direito Constitucional diz respeito a uma das crises mais sérias pela qual passa a federação brasileira: o descaso com o sistema penitenciário. É uma questão que atinge a federação sob diversos ângulos: a) a crise ocorre em todos os Estados membros, tendo atingindo um nível de brutalidade cada vez mais surpreendente a partir das rebeliões ocorridas no início deste ano, inclusive no Estado do Rio Grande do Norte; b) é um tema de responsabilidade de todos os Poderes, sejam em âmbito federal ou estadual; c) em tese, é possível cogitar a intervenção federal como forma para superar tal estado de coisas atentatório aos direitos da pessoa humana.

O presente texto tem por objeto demonstrar a ineficácia da intervenção federal como forma de superar o sistemático desrespeito aos direitos dos presos perante o sistema penitenciário estadual. A questão se coloca porque, além de haver pedido de intervenção federal já protocolado pelo Procurador Geral da República (PGR) desde 2008[1] no qual se sustenta a necessidade de intervenção no Estado de Rondônia justamente para se preservar os direitos da pessoa humana no Presídio Urso Branco, novas medidas desse tipo são cogitadas na PGR[2].

Inicialmente, serão lançadas, de modo introdutório, considerações gerais sobre a intervenção federal e seu procedimento. Em seguida, a hipótese de intervenção concernente na garantia aos direitos da pessoa humana no contexto dos denominados “princípios sensíveis” e da Intervenção Federal (IF) nº 114, será analisada como justificativa para o pedido de intervenção em face da crise penitenciária. Finalmente, será demonstrada a ineficácia da intervenção federal para solucionar tal questão a partir, por exemplo, da constatação de que: a) o Supremo Tribunal Federal (STF) não julga rapidamente tais casos; b) a intervenção federal atuaria de modo pontual e não sistemático; c) condutas de todos os entes da federação, não somente de um em particular, e de todos os Poderes contribuem para tal estado de coisas inconstitucional, sendo impensável que a intervenção possa atacar problema com tamanha amplitude.

  1. Aspectos gerais da intervenção federal

A intervenção federal é um processo constitucionalmente previsto para garantia da integridade da federação. Muito brevemente, a Constituição (art. 34) elenca que a União somente poderá intervir nos Estados quando estiver em jogo: a) a integridade nacional; b) a necessidade de repelir invasão estrangeira ou de um Estado sobre outro; c) a garantia à ordem pública; d) a reorganização das finanças do Estado, que não esteja pagando sua dívida fundada ou não esteja realizando as transferências tributárias constitucionalmente determinadas aos Municípios; e) o livre exercício de qualquer dos Poderes estaduais. Além disso, a Constituição cogita da intervenção diante da inexecução de lei federal ou descumprimento de ordem judicial ou do descumprimento de diversos princípios nomeados como “sensíveis” pela doutrina, tais como: a) a forma republicana, regime democrático e sistema representativo; b) os direitos da pessoa humana; c) a prestação de contas da administração pública direta e indireta; d) autonomia municipal; e) a aplicação de recursos públicos mínimos, por parte dos Estados, resultado da arrecadação de seus impostos, na manutenção e desenvolvimento de ações voltadas para a educação e saúde.

Não é o objeto deste texto aprofundar cada uma das hipóteses. É importante compreender, para os objetivos desta explanação, que, enquanto nas quatro primeiras hipóteses, o Presidente da República pode agir de ofício, há necessidade de se efetivar um procedimento judicial específico para a intervenção no caso de descumprimento à lei federal e aos designados princípios sensíveis. Este procedimento é levado a cabo pelo PGR, a partir da denominada representação interventiva.

Através da representação, é exercido um controle de constitucionalidade por parte do STF com características bem peculiares. Inicialmente, percebe-se o PGR como um representante da União, a qual tem interesse na manutenção da higidez da federação, fazendo surgir um verdadeiro litígio com o Estado membro, especialmente se este se opõe à intervenção.

A lei nº 12.562, de 23 de dezembro de 2011, regulamenta o processo da representação interventiva, cabível, repita-se, tanto em face do descumprimento de princípios sensíveis como em face da não execução de lei federal. Em linhas gerais, a lei regulamenta os requisitos da petição inicial, possibilidade de deferimento de medida liminar, poderes instrutórios do relator, requisitos para julgamento e forma de execução da decisão que defere o pedido. Nessa linha, tem-se que a petição inicial deve conter, nos termos do art. 3º e incisos: I) o dispositivo constitucional ou a lei federal que se entende violados; II) indicação do ato normativo, ato administrativo, ato concreto ou da omissão questionados; III) prova da violação; IV) pedido com suas especificações.

Questão importante é analisar, preliminarmente, a constitucionalidade do art. 3º, II da mencionada lei, especificamente quando prevê a possibilidade de controle judicial sobre atos concretos. Nessa linha, é essencial uma breve resenha sobre o que decidiu o STF na IF nº 114, julgada em 1991, 20 anos antes, portanto, da edição da lei em análise.

  1. A IF nº 114 e a possibilidade de controle sobre atos concretos no bojo da representação interventiva

Em 1990, no Município de Matupá, no Estado do Mato Grosso, três indivíduos fizeram uma família como refém após tentativa frustrada de roubo na residência dela. Após negociação com a polícia, eles se entregaram e libertaram aqueles que estavam indevidamente em seu poder. Parte da população do Município arrebatou os suspeitos da custódia policial, linchando-os. Quando eles já se encontravam inertes e jogados ao chão, foi atirada gasolina e ateado fogo em seus corpos.

Ante tais atos de barbárie, o então PGR ajuizou representação interventiva, buscando que a União interviesse no Estado do Mato Grosso em face da violação, por parte deste Estado, do princípio sensível consistente na garantia aos direitos da pessoa humana. Destaque-se que o Estado tinha os presos em seu poder e não conseguiu velar pela integridade física deles.

A primeira questão a se analisar após tal narração fática diz respeito ao cabimento da representação. Ressalte-se que ainda não havia sido editada a Lei 12.562 e, mesmo que esta estivesse em vigor, o ponto de partida, obviamente, deveria ser a Constituição. Para alguns Ministros, como Celso de Mello, a representação não poderia sequer ser conhecida, eis que somente poderia controlar atos de cunho normativo, não atos concretos praticados por particulares, mesmo que configurassem omissão do Estado. A posição do Ministro se aproxima da visão clássica acerca do controle de constitucionalidade como instrumento para controle somente de atos normativos.

Visão diferente apresentava, por exemplo, o Ministro Sepúlveda Pertence. Fazendo uma leitura estritamente constitucional, entendeu plenamente possível o ajuizamento da ação no caso, já que a Constituição não limita o objeto de controle a atos normativo. Tal interpretação é possível a partir da leitura da parte final do art. 36 § 3º, o qual aponta: “ Nos casos do art. 34, VI e VII, ou do art. 35, IV, dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional ou pela Assembléia Legislativa, o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade”. Inicialmente, poder-se-ia argumentar: ora, se o texto constitucional prevê a possibilidade de suspensão do ato impugnado como mecanismo para superação do conflito, há necessidade, logicamente, da existência de algum ato formal. No entanto, o dispositivo seguinte esclarece que a suspensão somente será efetivada se isso bastar ao restabelecimento da normalidade, abrindo a possibilidade de controle sobre atos que não sejam formalizados ou mesmo que não apresentem cunho normativo.

Em outras palavras: o perfil da ação deve ser definido a partir do direito positivo, constitucionalmente previsto, mesmo que, diante disso, haja um afastamento dos cânones clássicos do controle de constitucionalidade.[3]

No final das contas, o STF admitiu a intervenção, reconhecendo que a ação poderia controlar a ofensa aos princípios sensíveis perpetrada por atos de cunho concreto ou omissões estatais, mas julgou o pedido improcedente, reconhecendo que: a) a intervenção é medida excepcional; b) o Estado do Mato Grosso estaria atuando para responsabilizar os autores dos assassinatos.

  1. A crise penitenciária estadual e a possibilidade de intervenção federal

Tais considerações abrem espaço para o uso da intervenção federal, através da representação interventiva, em face da grave crise penitenciária pela qual passa os Estados da federação. Ora, se há omissão estatal na falta de cuidado a presos que foram linchados por particulares, haverá, ainda mais gravemente, omissão em face de assassinatos cruéis praticados pelos próprios presos. Neste ponto, analisar-se-á a eficácia de intervenção federal como forma de solucionar tal crise.

Uma primeira consideração aponta que, dependendo da amplitude da crise penitenciária, é possível cogitar de intervenção determinada de ofício pelo Presidente da República, como forma de garantia da ordem pública (art. 34, III, da Constituição). Como a Constituição elenca, a ofensa deve ser grave, não sendo qualquer perturbação à tranqüilidade pública que justifique a intervenção. Outra possibilidade é aquela já analisada neste texto, levada a cabo pelo PGR a partir da representação interventiva em face de ofensa aos direitos da pessoa humana (art. 34, VII, “b” da Constituição).

Nenhuma das medidas, no entanto, apresenta eficácia apta a solucionar a crise sistemática no sistema penitenciário estadual. Diversos argumentos podem ser elencados para sustentar tal afirmação, tais como: a) falta de interesse do próprio STF em julgar rapidamente tais causas; b) o aspecto pontual da intervenção federal; c) a consideração de que a crise penitenciária é causada não só por um determinado Estado membro, mas sim por todos os entes e, mais ainda, por todos os Poderes da República e pelo próprio Ministério Público. Aprofundemos um pouco cada ponto.

  1. Como dito no início deste texto, desde 2008 o PGR ajuizara representação interventiva a fim de que houvesse intervenção federal no Estado de Rondônia justamente para se preservar os direitos da pessoa humana no Presídio Urso Branco. Perceba-se que esta é uma hipótese que vai além do precedente elencado na IF nº 114, eis que refere-se especificamente à crise penitenciária. Por que o STF ainda não julgou a ação até hoje? As questões em torno do poder de pauta do STF merecem pesquisa específica, sendo, realmente, instigante perquirir o porquê de certas causas serem julgadas mais rapidamente de que outras, contenham ou não medidas de urgência. Talvez o STF, especialmente o ministro relator, esteja apostando na alteração do quadro fático a partir do transcurso do tempo, o que faria com que o STF não precisasse determinar a execução de uma medida tão drástica como a intervenção. Não há garantia alguma de que novos pedidos tramitem com mais velocidade.
  2. A intervenção seria restrita a um Estado específico, sendo difícil imaginar o fato de a União intervir, ao mesmo tempo, em todos os Estados da Federação. Como o problema é generalizado, a intervenção teria pouca utilidade.
  3. A crise penitenciária que vivenciamos hoje é fruto de um conjunto de omissões perpetradas pela União, Estados, Distrito Federal, Poderes Legislativo, Executivo, Judiciário, Ministério Público e, em certa medida, pela própria sociedade. A União, por exemplo, contingenciava recursos financeiros do Fundo Penitenciário Nacional, que deveriam ser destinados para a melhoria dos presídios. Os Estados, por sua vez, não conseguem utilizar os recursos federais para construção de novas unidades às vezes por não apresentarem sequer de projeto para a obra. O Poder Legislativo edita lei com nítido caráter simbólico, a Lei de Execução Penal, passando a imagem de que está atuando seriamente para garantir os direitos dos presos. O Poder Judiciário não controla adequadamente o punitivismo de parte dos membros do Ministério Público, não fundamentando adequadamente a não imposição de medidas cautelares diferentes da prisão quando esta é indevidamente pleiteada pelo Parquet. Finalmente, a própria sociedade não reconhece sua responsabilidade para superação desse estado de coisas: aposta na retórica do “bandido bom é bandido morto”, atiçada por parcela do Poder Legislativo, e se recusa, por exemplo, a receber a construção de determinado presídio nos limites do Município em que residem. Se essa postura for correta, novos presídios não poderiam ser construídos em nenhum local.

O que fazer com os presos, então?

Percebe-se, portanto, como a intervenção federal para garantir os direitos da pessoa humana nos presídios é ineficaz para solucionar a crise. Uma resposta possível para tal situação esta sendo buscada na ADPF nº 347, na qual se busca caracterizar a crise penitenciária como estado de coisas inconstitucional, propondo ousadas técnicas decisórias para a superação dele. Os riscos em torno da ineficácia também dessa

[1] IF nº 5129.

[2] http://oglobo.globo.com/brasil/pgr-estuda-pedir-ao-stf-intervencao-no-sistema-penitenciario-de-quatro-estados-20734206. Acessado em: 04/03/2017.

[3] Esta constatação fica ainda mais clara quando do estudo do estado de coisas inconstitucional, o qual será feito a partir de outro texto.

Mais um semestre se inicia na Universidade Potiguar (UnP) e retomamos os estudos em Direito Constitucional. A abordagem de temas relacionados à teoria da Constituição e do controle de constitucionalidade é instigante, de modo que escrevo este pequeno texto como uma forma de introduzir aos alunos os problemas acerca da inconstitucionalidade que enfrentaremos no decorrer do semestre.

Nossa obra fundamental será o “Curso de Processo Constitucional”, de Dimitri Dimoulis e Soraya Lunardi, cuja finalidade é bem interessante: promover um estudo participativo a partir da leitura de textos e entendimento dos temas sem recurso à “decoreba” ou mera memorização de dispositivos da Constituição (essencial como recurso didático, especialmente para o professor, mas que, jamais, deve se converter em fim único ou último do processo de ensino).

Nessa linha, o autor vai propor, logo no início, a leitura de textos tais como: a) o voto do Juiz Marshall no famoso Marbury x Madison (1803), precedente que inaugura a declaração judicial de inconstitucionalidade de lei federal em face da Constituição; b) o artigo número LXXVIII de Alexander Hamilton, nos Feralist Papers, mostrando que a ideologia em torno do controle judicial de constitucionalidade não fora desenvolvida por aquele juiz, mas já se encontrava na teorização norte-americana.

Ao final do capítulo, o autor propõe um interessante exercício, perquirindo ao aluno como ele fundamentaria o controle judicial de constitucionalidade a partir da Constituição de 1988 se ela não contivesse as disposições típicas em torno do tema! Uma clara provocação ao raciocínio partindo do mencionado estudo de caso norte-americano, eis que lá o controle judicial fora desenvolvido sem qualquer norma constitucional expressa garantindo o poder de invalidar a lei por parte dos juízes.

Vamos investigar esse precedente com muita atenção, tecendo críticas à postura de Marshall, juiz claramente suspeito para atuar no caso.

As preocupações em torno da legitimidade democrática do controle de constitucionalidade e o confronto entre o poder dos Juízes e dos Parlamentos serão constantes. A declaração de contrariedade entre lei e Constituição é sensível e merece muita atenção, justificando, por exemplo, a competência de diversos atores para o exercício do controle de constitucionalidade, tais como Presidente da República, Parlamento e Juízes. Para demonstrar os inconvenientes em se deferir a uma única autoridade a guarda da Constituição, recorrerei a Carl Schmitt, criticando seu decisionismo, muito embora reconheça a importância em estudar a teoria do polêmico autor, especialmente para prevenir que muitas de suas ideias voltem a ser colocadas em prática. O debate daquele autor com Hans Kelsen será, igualmente, fundamental.

Nesse ponto, o controle político de constitucionalidade será levado a sério. Adotaremos a tese de que não há, necessariamente, qualidade institucional maior no controle judicial em detrimento do controle político. Para tanto, recorrerei a Jeremy Waldron e ao seu positivismo normativo. Para fazer o contraponto, este autor dialogará com seu mestre, Ronald Dworkin, forte defensor do controle judicial. Tais autores, dentre outros, também contribuirão para o estudo do controle de constitucionalidade numa perspectiva comparada entre Canadá, França, Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos.

Os clássicos autores nacionais também serão lembrados, é claro: desde Lúcio Bittencourt, Themistocles Cavalcanti e Alfredo Buzaid, com livros sobre controle de constitucionalidade já esgotados, mas que, felizmente, pude encontrar nos sebos virtuais.

O estudo da inconstitucionalidade e da sua tipologia encontrará em Marcelo Neves seu ponto de partida. Em obra rara, igualmente encontra nos sebos, o autor vai apontar sua compreensão sobre inconstitucionalidade formal, material, parcial, total, etc, como parte de sua dissertação.

A prática do controle de constitucionalidade no Brasil será estudada em seguida, seja a partir do controle difuso (exercido por qualquer juiz) até o controle concentrado (exercido pelo STF). Diversos problemas serão abordados: a) papel do Senado no controle difuso; b) limites para a superação de inconstitucionalidades por omissão; c) as dificuldades em torno da teoria dos motivos determinantes; d) os amici curiae como “amigos” da Corte ou de alguma das partes; e) as intervenções judiciais prematuras no âmbito do processo legislativo; f) o desvirtuamento da causa de pedir aberta, com claro intuito de colocar o STF num local indevido.

Preocupação igualmente constante será com os aspectos históricos, também no âmbito nacional. Estudaremos, por exemplo, em que medida a criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade atendeu, inicialmente, a meros reclamos de governo.

Finalmente, as técnicas de decisão serão abordadas no contexto da criação judicial do direito. A “legislação judicial”, na linguagem de Hart, será estudada no âmbito da discricionariedade judicial, bem como a justificativa que o autor confere a tal prática.

Muitos temas e uma grande responsabilidade: unir teoria e prática de modo claro. É plenamente possível e enriquecedor, sobre isso não tenho dúvidas. Mas os alunos precisam ler as indicações bibliográficas, sob pena de a aula não ser satisfatoriamente apreendida. Este sim é o maior desafio, cuja superação, no entanto, não depende do professor.

 

 

 

 

 

índice

Prezados, divulgo palestra sobre ativismo judicial, a ser realizada na UnP. Falarei sobre ativismo judicial e judicialização da política, a partir de textos de Luís Roberto Barroso, Lenio Streck e Daniel Sarmento. Como ponto de partida, no entanto, enfrentaremos o tema da discricionariedade judicial, a partir da teoria da interpretação de Hans Kelsen na Teoria Pura do Direito, bem como do debate entre Ronald Dworkin (texto “Modelo de Regras I”, na obra “Levando os direitos a serio”) e Herbert Hart (especialmente o pós escrito na obra “O conceito de direito”) acerca do papel do juiz e do próprio conceito de direito, entre regras e princípios. Diversos temas relacionados a certos precedentes do STF serão estudados, tais como: a) o papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade incidental exercido pelo STF; b) a atribuição de efeitos erga omnes ao mandado de injunção; c) a teoria dos motivos determinantes; d) a fixação de prazo pelo STF para o Poder Legislativo legislar em casos de omissões, dentre outros.

  1. Introdução

Hoje o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar o Mandado de Segurança nº 22.972 (Rel. Ministro Teori Zavascki) em que se busca o controle de constitucionalidade acerca de tramitação de emenda constitucional que fixa o sistema parlamentarista. O STF deve manter sua jurisprudência admitindo tal controle preventivo, em face de possível violação às cláusulas pétreas. Neste texto, que constitui parte do que apresentarei hoje à noite na UFERSA, sustendo o fim do controle de constitucionalidade judicial preventivo. São ideias que vão de encontro à jurisprudência que vem se formando há mais de trinta anos pelo STF. O que me despertou para o assunto foi esta palestra do professor Martônio Mont´Alverne Barreto Lima: https://www.youtube.com/watch?v=SDdrckxTrnk. É muito importante para mim que os interessados no tema leiam e comentem, especialmente para termos algum debate mais informado hoje à noite.

Sobre o mérito do mencionado Mandando de Segurança, o qual não será objeto detalhado deste texto, penso que, mantida a jurisprudência do STF, o pedido deveria ser julgado procedente, não se admitindo qualquer emenda Parlamentarista: o Presidencialismo hoje é cláusula pétrea no ordenamento constitucional. O art. 2º do ADCT já se exauriu e o Parlamentarismo abole o voto direto (cláusula pétrea, de acordo com o art. 60, §4º, II da Constituição) logo para a eleição do Chefe de Governo. Sendo assim, vamos pensar em outras formas de corrigir o Brasil.     

O presente texto analisará o modelo de controle de constitucionalidade judicial preventivo desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal, criticando essa forma de controle e sustentando sua extinção, seja quanto à análise de inconstitucionalidades materiais ou formais em projetos de lei ou de emendas à Constituição. Para tanto, serão explorados três fundamentos: 1) necessidade de se conferir maior responsabilidade política ao controle de constitucionalidade exercido pelos parlamentares e pelo Presidente da República, sem o recurso fácil e paternalista ao STF pela via preventiva, possibilitando posterior diálogo institucional entre Parlamento e Corte; 2) respeito aos próprios fundamentos lançados pelo STF ao vedar o controle de constitucionalidade judicial preventivo sob o viés material no Mandado de Segurança (MS) 33.033/13;[1] 3) inexistência de qualquer risco à Constituição em tal postura, já que haverá controle político e, além disso, controle judicial repressivo.

Antes, para fins didáticos, apresentar-se-á tal forma de controle.

  1. O controle de constitucionalidade judicial preventivo

Como se sabe, o controle de constitucionalidade no Brasil é uma atividade exercida pelo Presidente da República, pelos Parlamentares e pelos Juízes através da qual se faz um juízo de compatibilidade entre uma lei ou ato normativo, o procedimento de criação deles ou eventuais omissões em relação à Constituição. Surgem conceitos de relação, como diria Jorge Miranda: constitucionalidade e inconstitucionalidade. Cada um daqueles atores atua no âmbito de suas competências políticas e jurídicas, sendo um erro cada vez mais comum no Brasil supor que o controle judicial é, necessariamente, superior aos demais. Tal visão, criticada adiante, baseia-se numa forte desconfiança com a política, a qual, no entanto, não autoriza de modo algum a automática transferência de poderes aos juízes, no bojo especificadamente do controle de constitucionalidade.

Em relação ao tempo do controle, ou seja, ao momento em que o mesmo pode ser efetivado, há modelos predominantemente preventivos, como o francês e predominantemente repressivos, como o brasileiro. Assim, a regra, em nosso ordenamento, é que o STF somente exerça controle de constitucionalidade após, pelo menos, a promulgação do ano normativo, não se concebendo como atividade normal a interferência judicial sobre o projeto de lei ou de emenda à Constituição.

Finalmente, deve-se dominar a tipologia em torno das inconstitucionalidades formais e materiais para se compreender a extensão do controle judicial preventivo. A inconstitucionalidade formal diz respeito às regras do processo legislativo, a saber, do conjunto de atos voltados para a edição do ato normativo. Sendo assim, as regras constitucionais de iniciativa, debates, votação, sanção, veto, promulgação e publicação servirão de base para análise da conduta concreta dos parlamentares durante o processo. Por outro lado, a inconstitucionalidade material diz respeito ao conteúdo do ato, a saber, se a matéria nele veiculada ofende ou não algum preceito constitucional. Como será visto adiante, a jurisprudência do STF não era clara acerca dos limites do controle preventivo, no sentido de se albergar ou não o controle material além do formal.

Até 1980, o STF não exercia qualquer forma de controle de constitucionalidade preventivo. Entendia que a separação de poderes vedava qualquer análise sobre a tramitação dos projetos. No julgamento do MS 20.257/80[2] discutia-se a possibilidade de emenda constitucional prorrogar mandatos eletivos de dois para quatro anos, antevendo-se possível ofensa ao princípio da temporalidade dos mandatos, essencial à República, cláusula pétrea.

No voto vencedor, que inaugurou a divergência, o Ministro Moreira Alves apontou que não poderia admitir um controle de constitucionalidade preventivo que levasse em conta possível ofensa a determinado princípio constitucional. Assentou que o controle preventivo ocorre unicamente em face da própria tramitação do projeto de emenda constitucional, eis que a Constituição vedava qualquer deliberação tendente a abolir cláusulas pétreas. Sendo assim, teria o parlamentar direito liquido e certo a não se submeter a um processo legislativo que a própria Constituição, desde o início, já vedava. Ao final, mesmo tendo declarado que tal forma de controle não poderia utilizar como parâmetro um princípio constitucional, acabou tecendo considerações sobre o mérito em si da proposição, entendendo que a mera prorrogação dos mandatos eletivos não ofenderia o princípio republicano. Abria-se a porta, então, para o controle preventivo material.

Por outro lado, no julgamento do MS 24.667/03, o STF restringe o controle de constitucionalidade preventivo somente às possíveis ofensas às regras do processo legislativo. Curiosamente, é citado como leading case o MS 20.257/DF o qual, na melhor das hipóteses, não foi claro acerca dos limites do controle preventivo.[3] 

Finalmente, em 2013 o STF, de maneira clara e categórica, veda o controle de constitucionalidade judicial preventivo material sobre projeto de lei ao julgar o MS 32.033/13. De acordo com o voto do Ministro Teori Zavascki, relator para o acórdão por ter iniciado a divergência em relação ao voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, o controle judicial preventivo somente pode ser admitido em duas hipóteses: 1) tramitação de projeto de emenda constitucional que ofenda cláusulas pétreas; 2) tramitação de projeto de lei que desrespeite as regras o processo legislativo. As justificativas para tal distinção são: a) literalidade do art. 60, §4º da Constituição, o qual veda a deliberação de projetos de emendas constitucionais (não de projetos de lei) potencialmente violadores de cláusulas pétreas; b) a possibilidade de o Presidente da República vetar projeto de lei, hipótese inexistente no caso de projeto de emenda constitucional.[4]

A partir dessa distinção firmada pelo Ministro Teori Zavascki é que se deve compreender o texto da ementa do julgado que, de forma categórica, veda o controle material preventivo. Em relação aos projetos de lei, tal vedação é absoluta. Em relação aos projetos de emenda constitucional, não: para se analisar o vício formal na deliberação, é necessário adentrar o conteúdo da cláusula pétrea.

Em tal mandado de segurança, o STF firmou a necessidade de se aguardar o término da tramitação legislativa para analisar eventuais incompatibilidades materiais, as quais poderiam muito bem ser superadas no curso do processo legislativo. Nessa linha, expressamente consignou:

Quanto mais evidente e grotesca possa ser a inconstitucionalidade material de projetos de leis, menos ainda se deverá duvidar do exercício responsável do papel do Legislativo, de negar-lhe aprovação, e do Executivo, de apor-lhe veto, se for o caso. Partir da suposição contrária significaria menosprezar a seriedade e o senso de responsabilidade desses dois Poderes do Estado.[5] (sem destaques no original)

Eis, então, este precedente recente do STF sobre o tema, vedando, assim, o controle preventivo material em projetos de lei. Em seguida, sustentarei, como dito no primeiro parágrafo, que mesmo o controle preventivo formal é injustificável, seja em projetos de lei, seja em projetos de emendas constitucionais.  

  1. Contra o controle de constitucionalidade judicial preventivo

3.1 O controle de constitucionalidade fraco e o diálogo entre os poderes

A ideia de que a melhor palavra sobre o controle de constitucionalidade esteja sempre com o Poder Judiciário ou com quaisquer dos Poderes isoladamente considerados é falsa. Historicamente, há diversos exemplos de abusos cometidos por Chefes do Poder Executivo, Parlamentares e Juízes no exercício do controle de constitucionalidade. O Brasil não adota um modelo institucional que privilegie o controle de constitucionalidade fraco, como o faz, por exemplo, o Reino Unido ou o Canadá. Mas nem por isso a busca por diálogo institucional deve ser abandonada pelos juízes do STF.

E é justamente um fechamento prematuro que se tem no debate constitucional quando não se admite, sequer, a tramitação de projeto de lei ou emenda. É certo que a redação do art. 60, §4º da Constituição de 1988 sequer admite a deliberação de proposta de emenda constitucional que tenda a abolir cláusula pétrea. No entanto, não se deve esquecer que os parlamentares exercem controle de constitucionalidade não somente quando da análise do projeto nas Comissões de Constituição e Justiça: a qualquer momento pode ser apresentada emenda que corrija algum dispositivo ou, ao final, pode mesmo haver a rejeição da proposta.

Sem dúvida alguma, a tese firmada no MS 32.033/13 representa grande avanço na delimitação entre o Direito e a Política, entre a atuação da Corte e do Parlamento. A intromissão prematura do STF quando da análise material de projeto de lei retiraria, até mesmo, a possibilidade de intervenção do Presidente da República no seu exercício constitucional de efetivar controle de constitucionalidade através do veto, como também salientou o voto que inaugurou a divergência. No entanto, é possível argumentar: a intervenção prematura do STF, mesmo para se coibir vício formal em projeto de lei, também não retira essa prerrogativa do Presidente da República? Evidente que sim.

Os parlamentares devem ser instigados a serem mais responsáveis no controle de constitucionalidade, cabendo-lhes, também, o combate às inconstitucionalidades formais. Certamente, o STF não fomenta esse senso de responsabilidade quando, prematuramente, coloca-se numa posição de tutor do Poder Legislativo: os parlamentares logo buscarão a Corte ao invés de se empenharem verdadeiramente no exercício do controle de constitucionalidade político.

3.2 Há inconstitucionalidades formais “evidentes” e “grotescas” – se o Poder Legislativo pode, segundo o STF, identificar inconstitucionalidades matérias com essas características, também tem total condição de fazê-lo em relação às inconstitucionalidades formais

Nesse ponto, utilizarei, como dito anteriormente, parte da própria fundamentação do STF no último MS em análise para vedar por completo o controle de constitucionalidade judicial preventivo. O STF, no último precedente citado, apontou claramente que projetos de lei com conteúdos como: a) imposição indiscriminada da pena de morte; b) previsão de censura prévia; c) descriminalização da pedofilia, teriam inconstitucionalidades materiais “evidentes” e “grotescas” e, mesmo assim, deveria ser aguardar o término do processo legislativo para se ter a intervenção da Corte.

Ora, há inconstitucionalidades formais igualmente “grotescas” e “evidentes”: a) parlamentar que propõe a Lei Orgânica da Magistratura Nacional; b) projeto de lei complementar aprovada por maioria simples; c) projeto de emenda constitucional proposta por ¼ dos parlamentares; d) projeto de lei ordinária aprovada sem o quórum de instalação da sessão; e) projeto de emenda constitucional encaminhado pela minoria das assembleias legislativas dos Estados, etc.

Se os parlamentes, como corretamente decidiu o STF, são capazes de identificar e superar inconstitucionalidades materiais “evidentes” e “grotescas”, também o são em relação às inconstitucionalidades formais. Além disso, repita-se: em relação aos projetos de lei, o Presidente da República também pode exercer controle de constitucionalidade para coibir vícios formais.

3.2 Ausência de risco para a Constituição e para a proteção dos direitos

Finalmente, caso a política falhe e o controle parlamentar seja incapaz de debelar a inconstitucionalidade, por mais evidente e grotesca que ela seja, certamente o STF será provocado para exercer o controle repressivo, tendo em vista a ampla legitimidade para propositura das ações do controle concentrado.

Pelo apresentado, tem-se como inegável o avanço promovido pelo STF no julgamento do MS 32.033/13. No entanto, é plenamente possível sustentar o fim do controle de constitucionalidade judicial preventivo, como forma de aprimorar o diálogo entre os poderes e fortalecer o papel do Parlamento e do Presidente da República no controle de constitucionalidade político, sem retirar qualquer poder do STF no controle repressivo.

Há muitas vantagens para a democracia brasileira com tal postura: a) atribui-se maior responsabilidade aos órgãos políticos; b) garante-se o afastamento do STF em torno de questões eminentemente políticas consubstanciadas no debate parlamentar; c) propicia-se um controle repressivo por parte do STF muito mais informado e dialogal, após a participação completa dos Parlamentares (no caso de aprovação de projetos de emenda) e dos Parlamentares e Presidente da República (no caso de aprovação de projetos de lei).   

[1] Rel. Ministro Gilmar Mendes. Rel. para acórdão Ministro Teori Zavascki. (20/06/2013)

[2] EMENTA – Mandado de segurança contra ato da Mesa do Congresso que admitiu a deliberação de proposta de emenda constitucional que a impetração alega ser tendente a abolição da república.

 – Cabimento do mandado de segurança em hipóteses em que a vedação constitucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a sua apresentação (como é o caso previsto no parágrafo único do artigo 57) ou sua deliberação (como na espécie). Nesses casos, a inconstitucionalidade diz respeito ao próprio andamento do processo legislativo, e isso a Constituição não quer – em face das gravidades dessas deliberações, se consumadas – que sequer se chegue à deliberação, proibindo-a taxativamente. A inconstitucionalidade, se ocorrente, já existe antes de o projeto ou de a proposta se transformar em lei ou em emenda constitucional, porque o próprio processamento já desrespeita, frontalmente, a Constituição.

– Inexistência, no caso, da pretendida inconstitucionalidade, uma vez que a prorrogação de mandato de dois para quatro anos, tendo em vista a conveniência da coincidência de mandatos nos vários níveis da Federação, não implica introdução do princípio de que os mandatos não mais são temporários, nem envolve, indiretamente, sua adoção de fato.

Mandado de segurança indeferido. (Rel. Ministro Moreira Alves. 08/10/80)

[3] EMENTA: CONSTITUCIONAL. PODER LEGISLATIVO: ATOS: CONTROLE JUDICIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. PARLAMENTARES.

  1. – O Supremo Tribunal Federal admite a legitimidade do parlamentar – e somente do parlamentar – para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo.
  2. – Precedentes do STF: MS 20.257/DF, Ministro Moreira Alves (leading case) (RTJ 99/1031); MS 20.452/DF, Ministro Aldir Passarinho (RTJ 116/47); MS 21.642/DF, Ministro Celso de Mello (RDA 191/200); MS 24.645/DF, Ministro Celso de Mello, “D.J.” de 15.9.2003; MS 24.593/DF, Ministro Maurício Corrêa, “D.J.” de 08.8.2003; MS 24.576/DF, Ministra Ellen Gracie, “D.J.” de 12.9.2003; MS 24.356/DF, Ministro Carlos Velloso, “D.J.” de 12.9.2003.
  3. – Agravo não provido.
    (MS 24667 AgR, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2003, DJ 23-04-2004 PP-00008 EMENT VOL-02148-04 PP-00714)

[4] “Somente em duas situações a jurisprudência do STF abre exceção a essa regra: a primeira, quando se trata de Proposta de Emenda à Constituição – PEC que seja manifestamente ofensiva a cláusula pétrea; e a segunda, em relação a projeto de lei ou de PEC em cuja tramitação for verificada manifesta ofensa a alguma das cláusulas constitucionais que disciplinam o correspondente processo legislativo. Nos dois casos, as justificativas para excepcionar a regra estão claramente definidas na jurisprudência do Tribunal: em ambos, o vício de inconstitucionalidade está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da atuação legislativa. Assim, a impetração de segurança é admissível, segundo essa jurisprudência, porque visa a corrigir vício já efetivamente concretizado no próprio curso do processo de formação da norma, antes mesmo e independentemente de sua final aprovação ou não.” Voto do Ministro Teori Zavascki, p, 4 (página 140 do acórdão).

[5] EMENTA: CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTROLE PREVENTIVO DE CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DE PROJETO DE LEI. INVIABILIDADE.

  1. Não se admite, no sistema brasileiro, o controle jurisdicional de constitucionalidade material de projetos de lei (controle preventivo de normas em curso de formação). O que a jurisprudência do STF tem admitido, como exceção, é “a legitimidade do parlamentar – e somente do parlamentar – para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo” (MS 24.667, Pleno, Min. Carlos Velloso, DJ de 23.04.04). Nessas excepcionais situações, em que o vício de inconstitucionalidade está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da atuação legislativa, a impetração de segurança é admissível, segundo a jurisprudência do STF, porque visa a corrigir vício já efetivamente concretizado no próprio curso do processo de formação da norma, antes mesmo e independentemente de sua final aprovação ou não.
  2. Sendo inadmissível o controle preventivo da constitucionalidade material das normas em curso de formação, não cabe atribuir a parlamentar, a quem a Constituição nega habilitação para provocar o controle abstrato repressivo, a prerrogativa, sob todos os aspectos mais abrangente e mais eficiente, de provocar esse mesmo controle antecipadamente, por via de mandado de segurança.
  3. A prematura intervenção do Judiciário em domínio jurídico e político de formação dos atos normativos em curso no Parlamento, além de universalizar um sistema de controle preventivo não admitido pela Constituição, subtrairia dos outros Poderes da República, sem justificação plausível, a prerrogativa constitucional que detém de debater e aperfeiçoar os projetos, inclusive para sanar seus eventuais vícios de inconstitucionalidade. Quanto mais evidente e grotesca possa ser a inconstitucionalidade material de projetos de leis, menos ainda se deverá duvidar do exercício responsável do papel do Legislativo, de negar-lhe aprovação, e do Executivo, de apor-lhe veto, se for o caso. Partir da suposição contrária significaria menosprezar a seriedade e o senso de responsabilidade desses dois Poderes do Estado. E se, eventualmente, um projeto assim se transformar em lei, sempre haverá a possibilidade de provocar o controle repressivo pelo Judiciário, para negar-lhe validade, retirando-a do ordenamento jurídico.
  4. Mandado de segurança indeferido.

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Divulgo tema de palestra que terei a honra de ministrar na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) mês que vem sobre a legitimidade democrática do controle de constitucionalidade, atendendo a convite do meu amigo e coordenador Prof. José Albenes Jr.

Falarei sobre controle de constitucionalidade fraco e forte, a partir do debate entre autores como Dworkin e Jeremy Waldron. A polêmica entre Carl Schmitt e Kelsen sobre o guardião da Constituição servirá como ponto de partida, utilizando como pano de fundo algumas decisões do Supremo Tribunal Federal e de seus Ministros sobre o controle judicial de constitucionalidade preventivo. Nesse ponto, a doutrina brasileira entrará em cena, com as ideias de Gilmar Mendes e, no extremo oposto, Martônio Mont´Alverne.

Até lá postarei mais detalhes, mas fica, desde já, o convite para todos os interessados, especialmente aos alunos da UFERSA e da UnP. O evento contará como atividade complementar.

Voltando para casa após uma semana riquíssima na Universidade de Oxford, não poderia deixar de registrar aqui meus agradecimentos a todos que manifestaram apoio nessa minha rápida empreitada internacional. Interpretei as “curtidas” dos familiares e dos amigos da Justiça Federal, do MPF, da AGU, da Faculdade de Direito da UFC, da UFERSA, e, em geral, do Iguatu e de Fortaleza, como um sincero “boa sorte”. Valeu!

No final do curso, apresentamos um rápido trabalho em inglês, por recomendação direta dos próprios professores, sendo que eu e minhas colegas Carolina Rosado e Cristina Melo discorremos sobre o tema “O controle de constitucionalidade – uma perspectiva comparada entre Brasil e Reino Unido”. Foi um dos grandes momentos do curso, o qual, de um modo geral superou minhas expectativas, eis que possibilitou: 1) aprofundar a língua e a cultura inglesa; 2) conhecer Oxford e seu sistema de ensino; 3) fazer contato com professores. Quem puder algum dia estudar lá, não vai se arrepender.

Em seguida, eis um breve post sobre a apresentação que fizemos. Parti do texto The core of the case against judicial review, de Jeremy Waldron, para fazer a distinção entre as formas forte e fraca de controle de constitucionalidade, essencial nessa comparação.

Sabe-se que o constitucionalismo inglês é marcado pelo aspecto não escrito de sua Constituição, eis que o direito consuetudinário está na base de tal ordenamento. Isso não quer dizer, por outro lado, que os ingleses desconheçam normas escritas, pois há diversos documentos formais que compõem, igualmente, essa acepção de Constituição. Nessa linha, a Magna Carta, o Habeas Corpus Act, o Bill of Rights, o Tratado de Maastricht e, sendo o mais importante para o presente texto, o Human Rights Act de 1998, compõem relevante parte escrita da Constituição inglesa.

Pensar, assim, na expressão controle de constitucionalidade levando em conta a realidade antes descrita pressuporia a possibilidade de juízes declarem uma lei incompatível com algum daqueles documentos, os quais, repita-se, integram a Constituição inglesa. Tal possibilidade sempre fora rechaçada, tendo em vista o princípio da soberania do Parlamento, o qual não poderia encontrar limites a partir da atuação judicial. Tal estado de coisas foi em parte alterado em 1998, com a introdução Human Rights Act, o qual admitiu, pela primeira vez, a possibilidade de juízes ingleses declararem a incompatibilidade entre uma lei e uma disposição daquele tratado, internalizado no ordenamento inglês. Trata-se de um exercício de controle de constitucionalidade, sem dúvidas, mas efetivado de um modo bem mais fraco que aquele conhecido, por exemplo, no Brasil.

Nessa linha, para o correto entendimento do tema, é essencial diferenciar um controle de constitucionalidade fraco e outro forte, seguindo a doutrina de um dos principais críticos do judicial review, Jeremy Waldron. A menção desse autor num texto sobre o sistema jurídico inglês é essencial, eis que parte de sua pesquisa em torno do controle de constitucionalidade refere-se diretamente à conveniência na introdução de um Human Rights Act no Reino Unido. Para ele, o controle de constitucionalidade quase sempre violará a democracia, sendo aceito somente em contextos muito específicos, ante, por exemplo, a falência total das instituições representativas de um dado estado. Certamente, esse não é o caso da Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte.

Waldron, em termos gerais, diferencia um controle de constitucionalidade forte, no qual o Poder Judiciário, de modo vinculante, pode invalidar uma lei quando entende que esta é incompatível com a Constituição ou eleger um sentido para torná-la compatível com o texto maior, de um controle fraco, no qual, apesar de haver uma atividade voltada para analisar tal compatibilidade, seu resultado não pode ser a invalidação da lei, mas uma mera declaração de incompatibilidade. E em que consistiria tal declaração?

Nesse ponto, é importante consultar os dispositivos pertinentes do Human Rights Act:

Declaration of incompatibility

Subsection (2) applies in any proceedings in which a court determines whether a provision of primary legislation is compatible with a Convention right.

If the court is satisfied that the provision is incompatible with a Convention right, it may make a declaration of that incompatibility.

Subsection (4) applies in any proceedings in which a court determines whether a provision of subordinate legislation, made in the exercise of a power conferred by primary legislation, is compatible with a Convention right.

If the court is satisfied—

a) that the provision is incompatible with a Convention right, and

b) that (disregarding any possibility of revocation) the primary legislation concerned prevents removal of the incompatibility

(…)

A declaration under this section (“a declaration of incompatibility”)—

a) does not affect the validity, continuing operation or enforcement of the provision in respect of which it is given; and

b) is not binding on the parties to the proceedings in which it is made.

Os dispositivos apontam a possibilidade de as Cortes (Supreme Court; Judicial Committee of the Privy Council; Court Martial Appeal Court; naEscócia, a High Court of Justiciary; na Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte, a High Court or the Court of Appeal; Court of Protection, de acordo com a seção 6 do Human Rights Act) declararem a incompatibilidade de uma legislação, seja primária (editada diretamente pelo Parlamento) ou secundária (quando o Parlamento autoriza a edição de certos atos, normalmente relacionados a questões de alta complexidade técnica), quando em confronto com os dispositivos do Human Rights Act. No entanto, tal declaração não afeta a validade ou eficácia da lei incompatível, nem é vinculante, sequer para a partes envolvidas no litígio.

Poder-se-ia perguntar: para que vale, então, tal declaração?

O sistema inglês, fiel à soberania do Parlamento antes mencionada, não poderia admitir uma invalidação pura e simples da lei pelo Judiciário. Tentando compatibilizar tais ideias com uma declaração de incompatibilidade, pensou-se num sistema no qual tal declaração, apesar de não ser vinculante e não poder anular a lei, poderia gerar um procedimento legislativo capaz de alterar a lei tida por incompatível. Veja-se o dispositivo pertinente:

Power to take remedial action.

If a Minister of the Crown considers that there are compelling reasons for proceeding under this section, he may by order make such amendments to the legislation as he considers necessary to remove the incompatibility.

Segundo o texto, tem-se que um Ministro, considerado que há razões suficientes, pode promover uma emenda na legislação, a fim de que se remova a incompatibilidade declarada pelas Cortes. Eis, portanto, o poder que as Cortes inglesas têm ao efetivarem uma declaração de incompatibilidade: provocar o debate legislativo sobre o tema, sem qualquer possibilidade de vinculação.

Percebe-se, assim, como o controle de constitucionalidade inglês apresenta diferenças marcantes em relação ao brasileiro. Se aqui a palavra final acerca da interpretação constitucional está com o Supremo Tribunal Federal, ou seja, com uma Corte, no Reino Unido essa última interpretação cabe ao Parlamento. Essa foi a forma encontrada para compatibilizar o judicial review com a soberania do Parlamento.

As recentes manifestações de rua consistem em verdadeiras aulas de exercício legítimo do direito de reunião, destacando-se o amplo caráter pacífico delas. Uma de suas bandeiras é o combate à corrupção e à roubalheira na PETROBRAS, a qual tem meu total apoio.

Sendo assim, sugiro uma pauta para os próximos encontros: cobrança para julgamento do Mensalão do PSDB, levando em conta que há mais de um ano o STF declinou a competência para julgar o caso. Lembro que nosso PGR já apresentou até alegações finais, pedindo a condenação do ex-governador Eduardo Azeredo a 22 anos de prisão, o que comprova como o MPF  atua de maneira apartidária.

Afinal, a retórica das ruas acerca do combate à corrupção interessa a todos, sem certas seleções discursivas, correto?

Fontes:

http://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2015/03/27/mensaloes-e-inercia-do-judiciario/

http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/02/pgr-sugere-22-anos-de-prisao-para-azeredo-no-mensalao-mineiro.html

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House of cards é uma das melhores séries da atualidade. Derivada do romance britânico de Michael Dobbs, a versão americana mostra a ascensão de Frank Underwood (Kevin Spacey) ao poder máximo dos Estados Unidos, através de muita retórica, manipulação e crimes diversos, como corrupção e, até mesmo, homicídio. É uma série fascinante, seja pela maneira como aborda a política, seja pela atuação magistral daquele ator. Um prato cheio, no entanto, para os críticos dos Parlamentos demonstrarem a indignidade da legislação.

Evidentemente, não poderia escrever muito sobre filosofia política e do direito neste texto, primeiro por falta de maior conhecimento da minha parte, segundo por manifesta ausência de espaço. Mas é impossível não lembrar de Jeremy Waldron quando se assiste à série. Tal pensador, um dos principais filósofos do direito da atualidade, busca em suas obras demonstrar a dignidade da legislação, teorizando sobre temas sub estudados na filosofia do direito, tais como: 1) a autoridade da legislação; 2) o tamanho dos Parlamentos; 3) como os desacordos entre os diversos pontos de vista em torno dos direitos devem ser encarados internamente na legislação; 4) por que os Parlamentos devem ser considerados os locais mais adequados para se decidir sobre controversas questões acerca dos direitos fundamentais. Ferrenho opositor do controle judicial de constitucionalidade, o autor busca construir uma teoria que leve a legislação a sério, superando o pessimismo antes mencionado.[1]

O modelo de político que Frank Underwood encarna não ajuda muito nessa empreitada. Tanto na obra original como na série da Netflix, o ponto de partida da trama é a vingança daquele político em face de sua não indicação para altos cargos no primeiro escalão do governo britânico e americano, respectivamente. No romance de Michael Dobbs, Francis Urquhart é o protagonista, capaz de derrubar o primeiro-ministro britânico. Nos Estados Unidos, o protagonista é igualmente perigoso, e não tem limites para alcançar seus fins. Eis alguns crimes de Frank Underwood: 1) falsidade, a partir da construção de notícias inverídicas na imprensa com intuito difamatório e político; 2) corrupção, especialmente no promíscuo relacionamento com lobistas; 3) comunicação falsa de crime, a partir da criação fictícia de cenários de crime para seu proveito político; 4) homicídios; 5) uso de informação privilegiada (mais evidente na obra britânica); 6) ameaças, diretamente ou através de interpostas pessoas. A lista é extensa, certamente estou esquecendo algum delito.

Deixando de lado a parte criminal, a forma de fazer política de Underwood, mesmo nos raros momentos em que não há atuação criminosa, não é nada digna. Há sempre um “toma lá dá cá” e a busca por algum ganho pessoal na aprovação de projetos de lei. As negociações com outros parlamentes, normalmente, envolvem trocas em nada interessadas com o bem comum.

Como pode uma série com um protagonista desses ser tão fascinante?

Há algum tempo os personagens criminosos e controversos ganham fama nas séries e filmes de TV. Assassinos em série (Dexter), mestres do tráfico de drogas (Breaking Bad), advogados trambiqueiros (Better Call Saul) ou uma família de mafiosos (Poderoso Chefão) compõem alguns poucos exemplos de como há certa tendência em mostrar tipos desviantes das convenções fundamentais de nossa sociedade. Para mim, é este o principal fascínio de estórias como aquelas: poder ter contato com pessoas com trajetória de vida completamente distanciadas da maioria da sociedade, na tentativa de entender a razão para a conduta delas.

Como dito, posturas como a de Frank Underwood contribuem para os críticos da legislação. Eles dirão que os parlamentos são antros de corrupção, sem qualquer possibilidade de levar os direitos das pessoas a sério. Por outro lado, buscarão, a partir daí, justificar cada vez mais a necessidade de controle judicial de constitucionalidade, eis que são as Cortes, não os Parlamentos, quem teriam mais condições de decidir com base em princípios, garantindo os direitos violados pela própria legislação.

Sem dúvidas que quaisquer crimes merecem ser punidos, principalmente quando praticados por políticos como Underwood. Essa deveria ser a reação dos mencionados críticos: defender tal punição. Aquela extensão da crítica, a ponto de buscar desacreditar por completo os Parlamentos e a Lei, no entanto, é uma falácia: 1) há escândalos de desvios também no Poder Judiciário; 2) a Lei, na ampla maioria dos casos, não é aprovada de maneira inconfessável e leva sim os direitos das pessoas na devida conta; 3) o controle judicial de constitucionalidade também já foi responsável por decisões tirânicas. Exemplos de cada afirmação: 1) denúncias acerca de venda de sentenças; 2) Lei de Biossegurança, que tratou de maneira bastante adequada a questão das pesquisas com células tronco embrionárias; 3) manutenção da segregação racial nos Estados Unidos por parte da Suprema Corte (caso Plessy x Ferguson).

Jeremy Waldron não admite que a filosofia do direito gaste tanta energia na teorização sobre a decisão judicial e o “juiz Hércules” (Ronald Dworkin) e não faça algo semelhante na busca por um “legislador Hércules”. Em parte, o que explica tamanha falta de deferência à legislação é a pressuposição de que parlamentares, quando divergem sobre questões de direitos fundamentais e formam uma maioria negando pretensos direitos a uma minoria, comporiam, necessariamente, uma maioria tirânica, tudo partindo daquela premissa de que Parlamentos, necessariamente, não levam os direitos das pessoas a sério.

Waldron rebate veementemente tal sustentação, eis que a minoria, de fato, pode não ter o direito que supõe ter. Para determinar se a maioria realmente é tirânica, é necessário mais que uma simples vitória no parlamento, do contrário sempre haveria tirania, em qualquer votação. Há opressão da maioria, assim, quando os interesses da sociedade coincidem com interesses pessoais da maioria votante: parlamentares senhores de escravos ou parlamentares brancos preconceituosos não possuem qualquer interessem a votar a favor de leis contra a discriminação racial. Quando há coincidência entre a maioria decisória (que vota o projeto de lei) e a maioria tópica (que é beneficiada pessoalmente pela lei), ter-se-ia tal tirania.[2] Desse modo, presumir a tirania da maioria e a indignidade da legislação dela decorrente é incorreto.

A terceira temporada de House of Cards promete muita tensão, possivelmente nas relações internacionais, como parece sugerir o trailer disponibilizado. Seria o começo do fim para Frank Underwood? Basta por hoje, vamos assistir logo a estes 13 episódios e comentar depois!

[1] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Trad. de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[2] WALDRON, Jeremy. A essência da oposição ao judicial review. In.: Legitimidade da jurisdição constitucional. BIGONHA, Antônio Carlos Alpino; MOREIRA, Luiz. (Orgs.). Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora. p, 93-157.

É celebre a disposição contida no art. 16 da Declaração Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “Toda sociedade na qual não esteja assegurada a garantia de direitos nem determinada a separação de poderes não possui Constituição”. Em verdade, o princípio da separação dos poderes, em sua feição liberal, fora concebido como forma de limitar o poder e preservar a liberdade da burguesia então ascendente, sepultando de vez qualquer resquício do regime absolutista.[1]

Ocorre que as feições atuais do princípio da separação dos poderes fez surgir um alargamento das funções deles, tendo, para alguns, o Poder Judiciário crescido justamente como forma de reequilibrar essa relação. Nessa linha, o crescimento de atribuições do Poder Judiciário, justificando uma releitura do princípio da separação de poderes, teria sido uma resposta ao aumento das atribuições típicas do Poder Executivo e do Poder Legislativo trazidas a lume com o advento do Estado Social.[2] Com esse novo cenário, o avanço do Poder Judiciário nada mais representa do que o necessário movimento para se preservar a harmonia e independência entre os demais Poderes, com a ampliação dos mecanismos de freios e contrapesos.

O fenômeno acima sucintamente descrito diz respeito à judicialização da política, o qual não se confunde com o ativismo judicial. A judicialização é uma imposição das Constituições, as quais, gradativamente, têm cada vez mais matérias inseridas em seus textos, alcançando os mais diversos ramos da vida. O ativismo, por outro lado, é uma posição interpretativa que não decorre diretamente da Constituição, mas sim de um ato de vontade do próprio juiz, proferindo decisão sem amparo no texto constitucional, muito embora, não raro, a pretexto de concretizá-lo.

Nessa linha, a maior polêmica reside na legitimidade e limites do ativismo. Para Luís Roberto Barroso, por exemplo, apesar de não serem fenômenos idênticos, judicialização e ativismo tem certos laços em comum, no sentido de que ambos apontam para um protagonismo judicial, pelo menos sob certas hipóteses.[3] Nessa linha, entende como justificável o ativismo em certos casos, quando, por exemplo, haja manifesto desinteresse do Poder Legislativo em enfrentar determinado tema. Nessa linha, a atuação seria justificável para “contornar, bypassar o processo político majoritário quando ele tenha se mostrado inerte, emperrado ou incapaz de produzir consenso”.

A judicialização, assim, diz respeito ao alargamento da função do Poder Judiciário tendo em vista que temas como meio ambiente, direitos do consumidor, da família ou dos indígenas, entre tantos outros, passaram a compor a Constituição. Com o surgimento do Estado Social, as finalidades estatais são amplamente dilatadas, pois agora o Estado deve atuar como agente capaz de reduzir as desigualdades de fato existentes na sociedade. Os direitos sociais, assim, são aqueles direitos fundamentais de segunda geração, ligados ao valor igualdade. A implementação desses direitos demanda, primordialmente, uma atitude positiva por parte do Estado, diferentemente dos direitos de primeira geração, ligados ao valor liberdade e cujo respeito demanda, em maior medida, uma abstenção estatal.[4]

Desse modo, para se alcançar essas finalidades sociais em temas como previdência social, saúde, assistência, trabalho, proteção à gestante, proteção à infância, lazer, cultura, moradia, educação e segurança, as competências do Poder Executivo e do Legislativo, inegavelmente, acabam por se ampliar. Uma constatação desse movimento pode ser facilmente percebida com o surgimento nos textos constitucionais de normas tidas por “programáticas”, cuja concretização dependeria de ulterior regulamentação não só por uma única lei infraconstitucional, mas por várias. Além disso, tais normas constitucionais dependeriam de atos concretos do Poder Executivo para serem, efetivamente, aplicadas.[5] Com esse novo dimensionamento desses poderes políticos, o Poder Judiciário teve de se adaptar, pois passou a ser chamado a se manifestar sobre políticas públicas e a inconstitucionalidade da não implementação destas.

A questão, especialmente no Brasil, é ainda mais complexa, no que tange ao ativismo judicial eis que, como aponta Lenio Streck, ele compõe uma das recepções equivocadas do direito brasileiro, contribuindo essencialmente para a crise deste. Diferentemente de Luíz Roberto Barroso, Lenio Streck não concebe como aceitável o ativismo, eis que sob ele está a mácula inexpugnável de um positivismo que garante aos juízes total discricionariedade no momento decisório.[6] Lenio usa como exemplo de ativismo inaceitável a tentativa de se mudar o texto da Constituição através de interpretação judicial, como tentaram os Ministros Gilmar Mendes e, especialmente, Eros Grau, no julgamento da Reclamação Constitucional nº 4.335/AC, quando se buscou alterar o texto do art. 52, X da Constituição: segundo os Ministros, caberia ao Senado Federal simplesmente publicar a decisão do STF que julgasse no todo ou em parte inconstitucional determinada lei, em sede de controle difuso, muito embora o texto constitucional diga que cabe àquele órgão legislativo o papel de “suspender” tal lei, não “publicar” um acórdão.

Tanto judicialização como ativismo demandam uma releitura das feições clássicas do princípio representativo. A judicialização afigura-se legítima, na medida em que decorre de próprias exigências constitucionais, podendo-se questionar, somente, o acerto dos parlamentares constituintes em constitucionalizar tantas matérias. O ativismo judicial, por outro lado, corrompe gravemente o princípio representativo, eis que admite que juízes possam tomar decisões até mesmo contrárias ao claro texto constitucional, sempre sob o manto das boas intenções.

[1] Nesse sentido, Paulo Bonavides aponta que: “Todo o prestígio que o princípio da separação de poderes auferiu na doutrina constitucional do liberalismo decorre da crença no seu emprego como garantia das liberdades individuais ou mais precisamente como penhor dos recém-adquiridos direitos políticos da burguesia frente ao antigo poder das realezas absolutas”. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10ª ed. 12ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2003. p, 142.

[2] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Editora SAFE, 1993. p, 19.

[3] Eis a diferenciação do autor: “A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, freqüentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva”. BARROSO, Luíz Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: http://www.plataformademocratica.org/Publicacoes/12685_Cached.pdf. Sentido diverso, no tocante ao pretenso parentesco entre ativismo e judicialização, é sustentado por Rafael Tomaz de Oliveira, o qual, ao desenvolver as ideias de Lenio Streck, aponta: “A pesquisa que efetuamos e que estamos apresentando nesta introdução nos permite afirmar, contudo, que não há uma relação de parentesco entre ativismo e judicialização, do modo como quer Barroso. Efetivamente, as origens dos fenômenos são distintas. Mas não se trata apenas disso: os contornos de cada um – sua “carga genética”, por assim dizer – demonstram que cada um dos fenômenos participam de famílias diferentes. Antecipando nossa conclusão: enquanto o ativismo judicial está umbilicalmente associado a um ato de vontade do órgão judicante; a judicialização de questões políticas ou sociais não depende desse ato volitivo do poder judiciário, mas, sim, decorre da expansão da sociedade (que se torna cada vez mais complexa) e da própria crise da democracia, que tende a produzir um número gigantesco de regulações (seja através de leis, medidas provisórias, decretos, portarias, etc.) e que encontram seu ponto de capilarização no judiciário e, principalmente, nas questões cujo deslinde envolve um ato de jurisdição constitucional.” OLIVEIRA, Rafael Tomaz; FARIA, Bruno Costa de; CURTOLO, Cristiane Maria de Lima; TEODORO, Leandro; VELUDO, Michele Seixas. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. IN: Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional. Disponível em: http://www.abdconst.com.br/anais2/JurisdicaoRafael.pdf.

[4] Ainda segundo Cappelletti: “Constitui um dado da realidade que a legislação social ou de welfare conduz inevitavelmente o estado a superar os limites das funções tradicionais de “proteção” e “repressão”. O papel do governo não pode mais se limitar a ser o de um “gendame” ou “night watchman”; ao contrário, o estado social – o ‘État providence’, como o chamam, expressivamente, os franceses – deve fazer sua a técnica de controle social que os cientistas políticos chamam de promocional. Tal técnica consiste em prescrever programas de desenvolvimento futuros, promovendo-lhes a execução gradual, ao invés de simplesmente escolher, como é típico da legislação clássica, entre ‘certo’ e ‘errado’, ou seja, entre o ‘justo’ e o ‘injusto’, right and wrong. E mesmo quando a legislação social cria por si mesma direitos subjetivos, cuida-se mais de direitos sociais do que meramente individuais.” Ob. cit. p, 41.

[5] Veja-se, por exemplo, que a concretização do direito social à saúde é impensável de ocorrer “da noite para o dia”, ou através de uma simples e única lei. É necessária a concatenação de uma série de leis tratando do tema e seus correlatos, nas mais diversas esferas de governo. Além disso, a concretização em si do direito só ocorrerá de fato com o dispêndio de gastos públicos e a prática de diversos atos administrativos relativos à: construção de hospitais, ampliação de atos de prevenção, realização de licitação para compra de materiais e remédios, realização concurso para contratação de servidores especializados, etc.

[6] Tal discricionariedade é ainda mais potencializada a partir das três recepções equivocadas no direito brasileiro: 1) a jurisprudência dos valores; 2) a ponderação alexyana; 3) o ativismo norte-americano. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p, 47-55.

A obra “Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação”, de Conrado Hübner Mendes[1], busca demonstrar, dentre tantas outras teses, como o controle de constitucionalidade baseado em teorias do tipo “última palavra” supervalorizam as Cortes e os Parlamentos, quando tal mister é atribuído a quaisquer desses atores. O autor sustenta um modelo mais democrático e adequado de controle de constitucionalidade, baseado não num “monólogo” da Corte, mas num diálogo entre esta e o Parlamento.

Para tanto, ele analisa diversas vantagens e desvantagens ínsitas à atividade judicante e parlamentar. Reconhecendo que ambas possuem virtudes e deméritos, sua conclusão não poderia ser outra: somente um modelo dialogal de controle de constitucionalidade pode combinar o que de melhor ambas as instituições podem oferecer, diminuindo os riscos de seus defeitos aflorarem no momento decisório.

Este texto abre uma série de postagem contendo um breve resumo de parte dessas comparações feitas por Hübner Mendes. A metodologia emprega pelo autor na análise do confronto entre Cortes e Parlamentos é a seguinte: 1) argumentar em defesa das Cortes, citando suas qualidades e, ao mesmo tempo, argumentar contra os Parlamentos, atacando seus defeitos; 2) em seguida, argumenta-se a favor dos Parlamentos, citando suas virtudes para, adiante, atacar as Cortes e denunciar suas falhas.

Dentre tantos argumentos analisados pelo autor, um deles é aquele que sustenta ser o controle judicial de constitucionalidade e, portanto, as Cortes, uma garantia do Estado de Direito.

Como se sabe, o Estado de Direito é aquele que preconiza a submissão dos governantes ao império da Lei, vinculando a vontade destes às disposições legais e superando qualquer ato de vontade como soberana imposição aos súditos. Ora, para garantir que tais finalidades sejam alcançadas, é necessária a existência de alguma instituição que aplique sanções aos Poderes quando estes não cumprirem a necessária vinculação à lei.

Tal instituição seria a Corte, a qual, através do controle judicial, poderia invalidar um ato, como uma Lei, contrário às finalidades do Estado de Direito, mantendo este incólume.

É possível, no entanto, sustentar posição contrária.

Nesse sentido, argumenta-se que não há uma vinculação direta entre a proteção do Estado de Direito e o controle judicial de constitucionalidade, a saber, o Estado de Direito permaneceria mesmo sem o controle judicial, já que: 1) se o controle judicial de constitucionalidade fosse tão essencial assim, como explicar o fato de que diversas leis inconstitucionais permanecem anos produzindo efeitos até serem invalidadas? 2) o que dizer, ainda, acerca de diversas outras leis inconstitucionais que sequer são atacadas e levadas a juízo?

Em outras palavras: o Estado de Direito já sobrevive adequadamente sem a necessidade de controle judicial, pois tem em seu ordenamento diversas leis que podem muito bem não respeitar as finalidades daquele tipo de Estado e, mesmo assim, elas produzem efeito normalmente. O controle judicial de constitucionalidade não é tão eficiente assim para eliminar essa patologia consistente nas leis inconstitucionais e, mesmo assim, o Estado de Direito permanece.

A resposta é interessantíssima. De fato, tendo em vista a inércia típica da jurisdição, mesmo a constitucional, tem-se como plenamente possível que diversas leis inconstitucionais produzam efeitos por anos sem sequer serem levadas às Cortes. Por outro lado, levando em conta diversos fatores como, por exemplo, o elevado número de casos levados ao conhecimento do nosso Supremo Tribunal Federal, é plenamente possível que mesmo leis atacadas por ações diretas permaneçam produzindo efeitos indefinidamente, aguardando o regular trâmite processual, mormente quando medidas cautelares não são deferidas e, ao final, a lei é tida por inconstitucional.

A defesa das Cortes como garantidoras do Estado de Direito, por outro lado, poderia replicar apontando que, mesmo diante de tais falhas, a situação poderia ser bem pior, ou seja, mesmo não sendo o controle judicial de constitucionalidade apto para albergar todas as violações à Constituição, certamente analisará as principais ofensas. Tal argumento é relevante, principalmente levando em conta o contexto brasileiro em que, além da existência do controle difuso, fazendo com que qualquer interessado sustente a inconstitucionalidade de lei a favor de sua tese principal, há a consagração de amplo rol de legitimados para a deflagração do controle concentrado.

Sendo assim, apesar de teoricamente possível, é forçoso reconhecer: no sistema brasileiro, é difícil supor que uma matéria de alta relevância não seja levada ao STF, tamanha a quantidade de legitimados para tanto.

Feita essa constatação prática a favor das Cortes no modelo brasileiro, abre-se dois caminhos: 1) abandona-se a crítica à Corte como incapaz de garantir o Estado de Direito; 2) reconhece-se que, mesmo no modelo brasileiro, é possível uma violação constitucional permanecer indefinidamente no tempo, autorizando-se buscar outro modelo de controle de constitucionalidade, o qual use tal limitação, mesmo que esta seja menor do que se pensava, a favor do diálogo entre Corte e Parlamento.

A escolha desses caminhos, no entanto, não pode ser aprofundada neste texto.

[1] MENDES, Conrado Hübner. Direitos Fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011.