A decisão liminar proferida na ação popular nº 0800318-28.2020.8.20.5300 é mais um exemplo de como parcela do Poder Judiciário supõe que o direito dos tribunais é, necessariamente, superior que a atividade política desenvolvida por quem, legitimamente, detém competência para tanto. É obvio que os atos da Administração Pública podem ser controlados judicialmente, mas é incrível como a presunção de legitimidade deles é solenemente ignorada por quem propõe uma ação com tal causa de pedir, refletindo-se na tomada de decisão.
Diz-se isso porque em momento algum da decisão interlocutória tem-se a indicação de qualquer estudo empírico ou prova técnica que comprove a fundamentação expedida. O Decreto atacado buscava limitar o horário e os dias de funcionando de estabelecimentos que exploram atividades de comercialização de alimentos que utilizem circulação artificial de ar, bem como de empresas que prestem serviços de transporte e bares, dentre outros.
A preocupação declarada referia-se à necessidade de preservação da economia do Estado, a partir dos impactos negativos na arrecadação tributária, bem como na pretensa falta de “razoabilidade” e “proporcionalidade” em tais medidas, pois, como supõe a decisão, as pessoas, sabendo que tais serviços não funcionariam em certos dias, fariam aglomerações nos demais.
Ora, não há comprovação alguma em torno dessas suposições, como se constata a partir de qualquer referência técnica, proveniente de órgãos de fiscalização, por exemplo, na fundamentação da decisão. Em certo trecho da decisão, é citada passagem na qual o autor alega que tal Decreto “não reduz, senão apenas no plano puramente teórico, apriorístico, o risco de transmissão do novo Coronavírus”. A argumentação é curiosa, pois na decisão também não é citada nenhuma evidência que comprove a alegação.
Obviamente que um mero testemunho judicial relacionado a um único estabelecimento, referente à aglomerações que ocorreram nele, como citado num precedente elencado na decisão, não apresenta um mínimo de força probante capaz de demonstrar a generalização de tal estado de coisas a ponto de tornar verossímil a tese para a suspensão e posterior nulidade de um Decreto de Governador de Estado. Ter-se-ia de se comprovar que as aglomerações foram gerais e, mais precisamente ainda, que elas decorreram especificamente das regras atacadas no Decreto. Isso não restou demonstrado, olvidando-se que há diversas outras maneiras de se evitar tal reunião de pessoas, como se tem na simples medida em torno do controle da entrada nos estabelecimentos.
O que se tem nessa ação é mais um exercício de bacharelismo jurídico, através do qual uma legítima decisão política é levada ao Judiciário para que este reabra uma discussão num foro impróprio, dando ares de juridicidade a uma discussão já encerrada no local adequado. O que aconteceu no caso foi uma mera substituição da vontade do juiz pela do administrador, já que, repita-se, nenhuma comprovação fática foi trazida para corroborar a decisão.
Além disso, é sugestiva como a lógica neoliberal continua tentando predar o direito mesmo quando a vidas e a saúde das pessoas estão em jogo, como se a certa crise econômica não pudesse ser enfrentada de outro modo. Além das medidas que o Poder Executivo e o Congresso Nacional têm tomado, diversas outras podem ser consideradas, como a tributação das grandes fortunas, tributo constitucionalmente previsto, nunca criado e solenemente ignorado por quem reduz a vida das pessoas à mercadoria.
Assim, se não há base empírica, a ação e a decisão não passam de mero exercício de senso comum, demonstrando-se a irracionalidade jurídica.