Liberdade de expressão e culto à morte – uma crítica à Procuradoria Geral da República

abril 12, 2020 — 1 Comentário

Emanuel de Melo Ferreira.

Professor Assistente I (UERN-Mossoró). Mestre e Doutorando em Direito (UFC). Procurador da República.

A PGR sustentou que o Presidente tem liberdade de expressão para incitar condutas que levam ao contágio de doença ou à morte das pessoas. Não há como não se indignar com tal tese. É lamentável que num dos momentos mais trágicos da história do Brasil a conduta irresponsável do Presidente da República não seja controlada pela autoridade que tem o dever constitucional de atuar, demonstrando como esta instituição tornou-se uma das maiores expressões do irracionalismo jurídico nacional.

Em 25 de março de 2020, os Subprocuradores Gerais da República Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Domingos Savio Dresch da Silveira, Nívio de Freitas Silva Filho, Antônio Carlos Alpino Bigonha e Deborah Duprat encaminharam ao Procurador Geral da República (PGR) Antônio Augusto Brandão de Aras recomendação destinada ao Presidente da República para que este se abstivesse: a) de veicular informações não cientificamente comprovadas acerca da desnecessidade do maior isolamento social possível no contexto da pandemia do coronavírus-19; b) de adotar postura contraditória com a própria política desenvolvida pelo Ministério da Saúde, além de diversas outras autoridades sanitárias nacionais e internacionais, tendo em vista que, em 24/03/2020, o Chefe do Poder Executivo, em pronunciamento veiculado em rede nacional de televisão, expressamente minimizara os efeitos da referida doença.

No dia seguinte ao envio da recomendação para o PGR, este arquivou o pedido utilizando os seguintes argumentos: a)  não haveria meio processual para se buscar a execução forçada do pedido, caso a recomendação não fosse acatada; b) especialmente porque a liberdade de expressão garantiria proteção à fala do Presidente da República, nos termos da jurisprudência do STF, em especial do agravo na Reclamação nº 3820-1[1]; c) a Constituição não autorizaria, no mérito, que o MPF atuasse da forma preconizada, pois estaria em jogo manifestação de cunho político do Presidente da República, cabendo, até mesmo em homenagem à separação de poderes, que o juízo de reprovabilidade fosse efetivado pelo Congresso Nacional, não pelo Parquet; d) haveria incerteza científica acerta dos melhores métodos para contenção da pandemia, não cabendo ao MPF definir qual seria a melhor estratégia.

O presente texto busca demonstrar como a argumentação lançada pelo PGR padece de diversos vícios relacionados a uma concepção bastante peculiar acerca da liberdade de expressão, colocando esta como um direito fundamental que pode conviver com a relativização do próprio direito à vida saudável, bem como com uma concepção equivocada sobre o papel dos precedentes no sistema jurídico brasileiro, pois: a) houve confusão entre precedente e ementa, já que foi esta a indicada na referida manifestação; b) gerando o segundo problema acerca da necessária análise em torno da similitude entre os casos, pois o precedente invocado possui diferenças fáticas relevantes, tornando-se inaplicável.

A liberdade de expressão é um direito fundamental previsto constitucionalmente, cuja fundamentação é variável[2]. Numa perspectiva liberal, o direito garante a proteção que o indivíduo deve ter perante o Estado, buscando que este se abstenha de interferir na manifestação de qualquer pensamento, mesmo que ele contenha forte carga discriminatória. Assim, tem-se uma proteção quase absoluta de tal direito fundamental. Atente-se para o “quase”, pois nem mesmo nessa concepção qualquer discurso pode ser admitido. Assim, nem mesmo para a visão liberal, tão cara aos norte-americanos, poderia justificar-se a proteção de tal direito quando estivesse em jogo a vida ou a saúde das pessoas. A admissão do discurso do ódio não alberga, de modo algum, a proteção a qualquer manifestação do pensamento, especialmente quando se está diante de perigo iminente, quando se tem no clássico exemplo acerca da ilicitude em se gritar “fogo” num cinema. A evidente ofensa aos direitos das outras pessoas, notadamente relacionados à integridade física diante de uma situação forjada de caos, é motivo suficiente para negar proteção a tal manifestação em termos de liberdade de expressão.

É, precisamente, o caso em torno das manifestações do Presidente da República. Ao relativizar a letalidade do COVID-19, tachando como mera “gripezinha” em tal pronunciamento e incitando as pessoas a promoverem uma espécie de isolamento vertical, facilitando sobremaneira a disseminação do vírus, tal autoridade usa sua liberdade de expressão contra a vida e a saúde das pessoas. A séria crise econômica pode ser remediada através de outras medidas que não envolvam um sórdido e sádico cálculo em torno da morte, olvidando-se irresponsavelmente que pessoas fora do grupo de risco também podem precisar de internação hospitalar, contribuindo para o possível colapso de um sistema de saúde que vai impactar não somente aqueles acometidos pela pandemia, mas qualquer outra pessoa que viesse a precisar de atendimento na rede pública.

Assim, é bastante claro o perigo real e iminente que a fala do Presidente ostentou, cuja proteção somente seria possível a partir uma leitura autoritária da Constituição. Mas não é só.

O precedente ou, mais precisamente, a ementa citada na decisão de arquivamento demonstra grave equívoco em termos de aplicação das decisões judiciais. Primeiramente, o PGR limitou-se a citar somente trecho de ementa, a qual não passa de um mero resumo do julgado, normalmente não contendo maiores considerações fáticas essenciais para se alcançar a respectiva ratio, esta sim a parte vinculante dele, em diferentes graus. Com esse equívoco, o PGR não atentou para diferenças relevantes entre os casos, pois, como narrado na decisão monocrática proferida na Reclamação nº 3820-1[3], o caso relacionava-se à publicação de biografia não autorizada de Suzane Louise Von Richthofen, a famosa presidiária que cumpre pena em face de delito de homicídio perpetrado contra seus próprios pais.  Há flagrante diferença entre os casos. Como visto, a fala do Presidente tem o potencial de dano iminente à saúde e à vida das pessoas. O precedente invocado refere-se à publicação de biografia de presidiária, sem qualquer referência, na narração fática efetivada pelo Ministro Alexandre de Morais, acerca da incitação à prática de crimes. No segundo caso, há justificativa para a proteção da liberdade de expressão com admissão de responsabilização posterior, tendo em vista, até mesmo, algum grau de reversibilidade na medida, com a retirada posterior da obra de circulação, caso ofenda a honra e imagem de outrem. Evidentemente, essa possibilidade de reversão não existe quando se está diante de risco de morte ou grave comprometimento da saúde.Muito mais poderia ser dito acerca dos demais fundamentos da promoção de arquivamento[4]. O presente texto buscou analisar, única e brevemente, a argumentação em torno da liberdade de expressão em face do verdadeiro culto à morte que tal concepção revela. É lamentável que num dos momentos mais trágicos da história do Brasil a conduta irresponsável do Presidente da República não seja controlada pela autoridade que tem o dever constitucional de atuar, demonstrando como a Procuradoria Geral da República tornou-se uma das maiores expressões do irracionalismo[5] jurídico nacional.

[1] Rcl 38201-AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 6.3.2020.

[2] Numa perspectiva social, para além da liberal mencionada no texto, os direitos fundamentais apresentam também uma eficácia objetiva, de modo que, para além de se irradiarem para as relações privadas, eles podem ser limitados diante de outros direitos, como a igualdade ou a proteção à vida e à saúde humanas.

[3] “Trata-se de Reclamação, com pedido de liminar, contra decisão proferida pelo Juízo de Direito da Unidade Regional de Departamento Estadual de Execução Criminal (DEECRIM 9ª RAJ) da Comarca de São José dos Campos/SP, nos autos do Pedido de Providências nº 1000475-67.2019.8.26.0520, que teria desrespeitado a autoridade do que decidido por esta SUPREMA CORTE no julgamento da ADPF 130 (Rel. Min. AYRES BRITTO, Pleno, DJe de 6/11/2009), bem como no julgamento da ADI 4.815 (Rel. Min. CARMÉN LÚCIA, Pleno, Dje de 10/6/2015).    O reclamante expõe, de início, o seguinte contexto fático (doc. 1, fl. 5):    Na hipótese, a partir da notícia de que o jornalista e escritor Ullisses Campbell, ora Reclamante, publicará obra editorial com biografia não autorizada de Suzane Louise Von Richthofen, cujo lançamento está previsto para o mês dezembro próximo, ainda em fase de preparação, a biografada postulou medida censória junto ao órgão administrativo da execução penal, de natureza correcional, vinculado ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, e assim agiu em busca de provimento destinado à CENSURA PRÉVIA da obra editorial, com o objetivo de coibir a edição, publicação, venda e divulgação da biografia não autorizada pelo Reclamante, o que foi prontamente atendido, em absoluta afronta à autoridade das decisões havidas nos julgamentos da ADI 4815 e ADPF 130 desta C. Corte.” Rcl 38201. Rel. Min. Alexandre de Moraes. 18 de dezembro de 2019

[4] Por exemplo, há meio apto para se buscar o cumprimento forçado da recomendação, como, por exemplo, a arguição de descumprimento de preceito fundamental, no caso do controle concentrado. Há diversos precedentes admitindo o cabimento da ação para se coibir qualquer ato do Poder Público. A preocupação em torno da separação de poderes e a pretensa imunidade judicial aos atos políticos demonstra vinculação a uma teoria dos atos políticos já superada há muito tempo pela própria jurisprudência do STF, pois, diante da ofensa aos direitos fundamentais, qualquer ato pode ser controlado judicialmente. Finalmente, a fala acerca da existência de incerteza científica demonstra manifesto irracionalismo jurídico, pois a afirmação carece de citação de outros estudos científicos que embasem a viabilidade das propostas do Presidente da República, enquanto a tese contrária goza de forte consenso pelas autoridades especializadas. Claro que mesmo teorias científicas podem se mostrar equivocadas, estando sempre abertas à refutação. No entanto, esse ônus argumentativo cabe a quem se propõe a enfrentar o paradigma, não tendo o PGR se desincumbido de tal tarefa.

[5] A irracionalidade tem papel decisivo na configuração de modelos autoritários, pois compõe a essência do processo político, sendo as teorias anti-intelectualistas um caminho para os golpes de estado (CAMPOS, Francisco. O estado nacional. Coleção Biblioteca Básica Brasileira. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001. P. 19, 26). Nesse sentido, o autor critica a empreitada liberal de buscar conformar a democracia à imagem do mundo forense, como se a deliberação pública fosse resultado de um choque de argumentos entre as partes de um processo judicial perante o magistrado. Tal imagem do processo político é equivocada porque desconsidera a irracionalidade da massa, a qual emerge na esperança de fazer uma aclamação por um líder carismático, um César, que vá governar ditatorialmente. (CAMPOS, Francisco. Ob. cit., p. 24-26) O autor é claro: “o regime político das massas é a ditadura”, pois quanto maior a massa, mais a integração política se torna possível somente através de uma vontade pessoal. (CAMPOS, Francisco. Ob. cit., p. 23)

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