Há pouco mais de cinco anos iniciava as atividades nesta página, cuja primeira postagem ocorreu justamente quando tomei posse no cargo de procurador da República. Nunca imaginei que, passado esse tempo, precisaria escrever um texto defendendo a democracia no Brasil em face de seus inimigos, especialmente levando em conta a Constituição brasileira. Após 30 anos, a Constituição de 1988, uma das mais avançadas no mundo, é colocada em prova diariamente através, por exemplo, da corrupção na política, da violência do crime organizado ou da fragilização da norma jurídica em face de concepções morais de membros do Poder Judiciário e do Ministério Público.
Fui criado durante a redemocratização: tenho 34 anos e cresci escutando uma inverdade acerca da consolidação da democracia em nosso País. Dizia-se que passáramos por um impeachment em 1992 ou pelo julgamento da ação penal nº 470 (“caso mensalão”) sem qualquer tipo de cogitação acerca de quebras institucionais ou golpes de Estado. Apontava-se que as instituições estavam funcionando plenamente, sem riscos de retrocesso. Toda essa geração comprou inocentemente esse discurso, esquecendo-se que, inicialmente, havia amplo apoio popular ao golpe militar de 1964 e uma ideologia autoritária desse tipo não iria, simplesmente e num passe de mágicas, desaparecer do País, ainda mais tendo em vista o tratamento dado aos torturadores do regime.
Hoje temos de conviver com a normalização do discurso de ódio contra a democracia. A temática do discurso do ódio, quando enfrentada pela doutrina[1], costuma ser caracterizada como manifestações de cunho discriminatório ou preconceituoso contra minorias, como homossexuais, mulheres, indígenas ou quilombolas, não olvidando igualmente as minorias religiosas. Numa perspectiva complementar, constituem manifestações de ódio a pregação à violência, como se tem com a incitação ao assassinato de membros de tais grupos. Além disso, estudam-se os limites da liberdade de expressão na crítica às instituições públicas, quando não há uma clara minoria em jogo, como as citadas anteriormente. Tem-se este último caso, precisamente, com manifestações públicas que preguem o cometimento de algum crime, como as ações de grupos armados contra o Estado democrático. O ódio à democracia é uma manifestação desta última concepção.
Tal ódio, vivenciado muito claramente quando da greve dos caminhoneiros em maio deste ano, quando diversos cartazes defendendo intervenção militar adornavam as manifestações, não se concretizou como pleiteado. No entanto, essa ideologia autoritária é muito clara e cara à parcela significativa da sociedade, que não hesita em defender a militarização e aplaude, expressa ou tacitamente, as indevidas intervenções políticas de militares de alta patente que deveriam guardar discrição quando em atividade. A crise vivenciada no Brasil, nas mais diversas áreas, tornou aceitável a disseminação de ideias desse tipo.
A eleição presidencial do domingo passado mostra como, sob o aspecto formal, a democracia brasileira desenvolve-se a partir de eleições livres, com a soberania popular sendo exercida através do sufrágio universal, como preconiza a Constituição. À democracia sob o aspecto formal soma-se a necessidade de defesa de direitos fundamentais, pois a Constituição também proclama intangibilidade de normas relacionadas à separação de poderes, federalismo, voto e, especialmente, direitos individuais. Não há democracia plena, assim, somente com a concretização dos direitos políticos a partir da eleição.
O empoderamento de grupos que apregoam fraseado do tipo “bandido bom é bandido morto”, manifestando-se em público com armas de brinquedo, como, desgraçadamente, aconteceu em Iguatu, minha terra natal[2], é um sinal claro de degradação. A postura discriminatória contra a mulher ou diversos grupos minoritários, com sugestão de assimilação deles à maioria, pode contribuir para o empoderamento, na realidade concreta da vida social, de pessoas que admitam a violência como forma de fazer valer tais concepções.
A apologia à tortura, com saudosas referências àqueles que praticavam tal crime durante a ditadura militar, bem demonstra como a ideologia autoritária ainda é aceita no Brasil. Busca-se desqualificar esse debate apontando que o golpe militar ocorreu há mais de 50 anos e os problemas do Brasil hoje são outros. A tese busca tornar invisível a maior ofensa à Constituição: a admissão de que, caso o povo não se comporte de determinada maneira, mesmo pautando-se nos estritos termos constitucionais, é admissível que certa elite militar tutele a democracia. Diretamente, num movimento difícil de acreditar hoje em dia, a partir de tanques nas ruas, ou de modo indireto e mais sorrateiro, com ameaças veladas às instituições.
O caráter dialogal da Constituição de 1988, contraditória em diversos pontos e que alcançou um consenso entre diversos atores no bojo da Constituinte de 1987/1988, coloca tal texto como um dos mais avançados do mundo na consagração de direitos e deveres. Liberdades, busca pela igualdade material, proteção à família e ao meio ambiente num contexto de um Estado que se pretende cada vez mais social e solidário são algumas das disposições constantes no seu vasto texto. Transigir com isso, com cogitações vindas à esquerda e à direita acerca de uma nova constituinte é apostar em inadmissível retrocesso.
É na defesa dessas normas fundamentais que o Poder Judiciário, por exemplo, tem falhado no Brasil. Ao fragilizar a norma jurídica, desrespeitando, por exemplo, o valor da regra constitucional, tida como subalterna em relação aos princípios de igual hierarquia, juízes desestabilizam o projeto desenvolvido pelo constituinte originário, em exercício de forte realismo jurídico. Sem o respeito ao sentido linguístico mínimo da norma, o direito acaba sendo aquilo que os Tribunais entendem que seja.
O combate às mazelas do Brasil não deve ser efetivado ao custo da normatividade constitucional. A política, ao mesmo tempo em que cria o direito, acabada, em seguida, sendo limitada por ele, cuja pretensão de autoridade demanda respeito por parte dos membros do Poder Judiciário, Executivo ou Legislativo, tenham sido eleitos ou não. A sociedade, obviamente, é a grande destinatária da proteção constitucional, devendo reconhecer também sua responsabilidade na manutenção da Constituição e da democracia no País.
Como um católico, vou à missa aos finais de semana com minha esposa e filha e aprendi dentro de casa a importância da tolerância e da proscrição de qualquer forma de violência injustificada ou da banalização de discursos que tendam à conflagração. Os eventos vivenciados no Brasil desde junho de 2013 servem para sepultar aquela inocente crença acerca do pretenso caráter naturalmente perene da democracia, a qual, verdadeiramente, deve ser cotidianamente defendida contra seus inimigos. É assim que a democracia tem de ser sustentada: com argumentos e de modo racional, sem o temor das reações de ódio.
[1] SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do “Hate Speech”. In: Livres e Iguais. Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. P, 207-209; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p, 97-113.
[2] Disponível em: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/opiniao/simpatizantes-de-bolsonaro-exibem-armas-de-brinquedo-durante-carreata-em-iguatu-1.1977210. Acessado em 08/10/2018.
ótimo texto!