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- Introdução
Um dos problemas concretos enfrentados nas aulas de Direito Constitucional diz respeito a uma das crises mais sérias pela qual passa a federação brasileira: o descaso com o sistema penitenciário. É uma questão que atinge a federação sob diversos ângulos: a) a crise ocorre em todos os Estados membros, tendo atingindo um nível de brutalidade cada vez mais surpreendente a partir das rebeliões ocorridas no início deste ano, inclusive no Estado do Rio Grande do Norte; b) é um tema de responsabilidade de todos os Poderes, sejam em âmbito federal ou estadual; c) em tese, é possível cogitar a intervenção federal como forma para superar tal estado de coisas atentatório aos direitos da pessoa humana.
O presente texto tem por objeto demonstrar a ineficácia da intervenção federal como forma de superar o sistemático desrespeito aos direitos dos presos perante o sistema penitenciário estadual. A questão se coloca porque, além de haver pedido de intervenção federal já protocolado pelo Procurador Geral da República (PGR) desde 2008[1] no qual se sustenta a necessidade de intervenção no Estado de Rondônia justamente para se preservar os direitos da pessoa humana no Presídio Urso Branco, novas medidas desse tipo são cogitadas na PGR[2].
Inicialmente, serão lançadas, de modo introdutório, considerações gerais sobre a intervenção federal e seu procedimento. Em seguida, a hipótese de intervenção concernente na garantia aos direitos da pessoa humana no contexto dos denominados “princípios sensíveis” e da Intervenção Federal (IF) nº 114, será analisada como justificativa para o pedido de intervenção em face da crise penitenciária. Finalmente, será demonstrada a ineficácia da intervenção federal para solucionar tal questão a partir, por exemplo, da constatação de que: a) o Supremo Tribunal Federal (STF) não julga rapidamente tais casos; b) a intervenção federal atuaria de modo pontual e não sistemático; c) condutas de todos os entes da federação, não somente de um em particular, e de todos os Poderes contribuem para tal estado de coisas inconstitucional, sendo impensável que a intervenção possa atacar problema com tamanha amplitude.
- Aspectos gerais da intervenção federal
A intervenção federal é um processo constitucionalmente previsto para garantia da integridade da federação. Muito brevemente, a Constituição (art. 34) elenca que a União somente poderá intervir nos Estados quando estiver em jogo: a) a integridade nacional; b) a necessidade de repelir invasão estrangeira ou de um Estado sobre outro; c) a garantia à ordem pública; d) a reorganização das finanças do Estado, que não esteja pagando sua dívida fundada ou não esteja realizando as transferências tributárias constitucionalmente determinadas aos Municípios; e) o livre exercício de qualquer dos Poderes estaduais. Além disso, a Constituição cogita da intervenção diante da inexecução de lei federal ou descumprimento de ordem judicial ou do descumprimento de diversos princípios nomeados como “sensíveis” pela doutrina, tais como: a) a forma republicana, regime democrático e sistema representativo; b) os direitos da pessoa humana; c) a prestação de contas da administração pública direta e indireta; d) autonomia municipal; e) a aplicação de recursos públicos mínimos, por parte dos Estados, resultado da arrecadação de seus impostos, na manutenção e desenvolvimento de ações voltadas para a educação e saúde.
Não é o objeto deste texto aprofundar cada uma das hipóteses. É importante compreender, para os objetivos desta explanação, que, enquanto nas quatro primeiras hipóteses, o Presidente da República pode agir de ofício, há necessidade de se efetivar um procedimento judicial específico para a intervenção no caso de descumprimento à lei federal e aos designados princípios sensíveis. Este procedimento é levado a cabo pelo PGR, a partir da denominada representação interventiva.
Através da representação, é exercido um controle de constitucionalidade por parte do STF com características bem peculiares. Inicialmente, percebe-se o PGR como um representante da União, a qual tem interesse na manutenção da higidez da federação, fazendo surgir um verdadeiro litígio com o Estado membro, especialmente se este se opõe à intervenção.
A lei nº 12.562, de 23 de dezembro de 2011, regulamenta o processo da representação interventiva, cabível, repita-se, tanto em face do descumprimento de princípios sensíveis como em face da não execução de lei federal. Em linhas gerais, a lei regulamenta os requisitos da petição inicial, possibilidade de deferimento de medida liminar, poderes instrutórios do relator, requisitos para julgamento e forma de execução da decisão que defere o pedido. Nessa linha, tem-se que a petição inicial deve conter, nos termos do art. 3º e incisos: I) o dispositivo constitucional ou a lei federal que se entende violados; II) indicação do ato normativo, ato administrativo, ato concreto ou da omissão questionados; III) prova da violação; IV) pedido com suas especificações.
Questão importante é analisar, preliminarmente, a constitucionalidade do art. 3º, II da mencionada lei, especificamente quando prevê a possibilidade de controle judicial sobre atos concretos. Nessa linha, é essencial uma breve resenha sobre o que decidiu o STF na IF nº 114, julgada em 1991, 20 anos antes, portanto, da edição da lei em análise.
- A IF nº 114 e a possibilidade de controle sobre atos concretos no bojo da representação interventiva
Em 1990, no Município de Matupá, no Estado do Mato Grosso, três indivíduos fizeram uma família como refém após tentativa frustrada de roubo na residência dela. Após negociação com a polícia, eles se entregaram e libertaram aqueles que estavam indevidamente em seu poder. Parte da população do Município arrebatou os suspeitos da custódia policial, linchando-os. Quando eles já se encontravam inertes e jogados ao chão, foi atirada gasolina e ateado fogo em seus corpos.
Ante tais atos de barbárie, o então PGR ajuizou representação interventiva, buscando que a União interviesse no Estado do Mato Grosso em face da violação, por parte deste Estado, do princípio sensível consistente na garantia aos direitos da pessoa humana. Destaque-se que o Estado tinha os presos em seu poder e não conseguiu velar pela integridade física deles.
A primeira questão a se analisar após tal narração fática diz respeito ao cabimento da representação. Ressalte-se que ainda não havia sido editada a Lei 12.562 e, mesmo que esta estivesse em vigor, o ponto de partida, obviamente, deveria ser a Constituição. Para alguns Ministros, como Celso de Mello, a representação não poderia sequer ser conhecida, eis que somente poderia controlar atos de cunho normativo, não atos concretos praticados por particulares, mesmo que configurassem omissão do Estado. A posição do Ministro se aproxima da visão clássica acerca do controle de constitucionalidade como instrumento para controle somente de atos normativos.
Visão diferente apresentava, por exemplo, o Ministro Sepúlveda Pertence. Fazendo uma leitura estritamente constitucional, entendeu plenamente possível o ajuizamento da ação no caso, já que a Constituição não limita o objeto de controle a atos normativo. Tal interpretação é possível a partir da leitura da parte final do art. 36 § 3º, o qual aponta: “ Nos casos do art. 34, VI e VII, ou do art. 35, IV, dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional ou pela Assembléia Legislativa, o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade”. Inicialmente, poder-se-ia argumentar: ora, se o texto constitucional prevê a possibilidade de suspensão do ato impugnado como mecanismo para superação do conflito, há necessidade, logicamente, da existência de algum ato formal. No entanto, o dispositivo seguinte esclarece que a suspensão somente será efetivada se isso bastar ao restabelecimento da normalidade, abrindo a possibilidade de controle sobre atos que não sejam formalizados ou mesmo que não apresentem cunho normativo.
Em outras palavras: o perfil da ação deve ser definido a partir do direito positivo, constitucionalmente previsto, mesmo que, diante disso, haja um afastamento dos cânones clássicos do controle de constitucionalidade.[3]
No final das contas, o STF admitiu a intervenção, reconhecendo que a ação poderia controlar a ofensa aos princípios sensíveis perpetrada por atos de cunho concreto ou omissões estatais, mas julgou o pedido improcedente, reconhecendo que: a) a intervenção é medida excepcional; b) o Estado do Mato Grosso estaria atuando para responsabilizar os autores dos assassinatos.
- A crise penitenciária estadual e a possibilidade de intervenção federal
Tais considerações abrem espaço para o uso da intervenção federal, através da representação interventiva, em face da grave crise penitenciária pela qual passa os Estados da federação. Ora, se há omissão estatal na falta de cuidado a presos que foram linchados por particulares, haverá, ainda mais gravemente, omissão em face de assassinatos cruéis praticados pelos próprios presos. Neste ponto, analisar-se-á a eficácia de intervenção federal como forma de solucionar tal crise.
Uma primeira consideração aponta que, dependendo da amplitude da crise penitenciária, é possível cogitar de intervenção determinada de ofício pelo Presidente da República, como forma de garantia da ordem pública (art. 34, III, da Constituição). Como a Constituição elenca, a ofensa deve ser grave, não sendo qualquer perturbação à tranqüilidade pública que justifique a intervenção. Outra possibilidade é aquela já analisada neste texto, levada a cabo pelo PGR a partir da representação interventiva em face de ofensa aos direitos da pessoa humana (art. 34, VII, “b” da Constituição).
Nenhuma das medidas, no entanto, apresenta eficácia apta a solucionar a crise sistemática no sistema penitenciário estadual. Diversos argumentos podem ser elencados para sustentar tal afirmação, tais como: a) falta de interesse do próprio STF em julgar rapidamente tais causas; b) o aspecto pontual da intervenção federal; c) a consideração de que a crise penitenciária é causada não só por um determinado Estado membro, mas sim por todos os entes e, mais ainda, por todos os Poderes da República e pelo próprio Ministério Público. Aprofundemos um pouco cada ponto.
- Como dito no início deste texto, desde 2008 o PGR ajuizara representação interventiva a fim de que houvesse intervenção federal no Estado de Rondônia justamente para se preservar os direitos da pessoa humana no Presídio Urso Branco. Perceba-se que esta é uma hipótese que vai além do precedente elencado na IF nº 114, eis que refere-se especificamente à crise penitenciária. Por que o STF ainda não julgou a ação até hoje? As questões em torno do poder de pauta do STF merecem pesquisa específica, sendo, realmente, instigante perquirir o porquê de certas causas serem julgadas mais rapidamente de que outras, contenham ou não medidas de urgência. Talvez o STF, especialmente o ministro relator, esteja apostando na alteração do quadro fático a partir do transcurso do tempo, o que faria com que o STF não precisasse determinar a execução de uma medida tão drástica como a intervenção. Não há garantia alguma de que novos pedidos tramitem com mais velocidade.
- A intervenção seria restrita a um Estado específico, sendo difícil imaginar o fato de a União intervir, ao mesmo tempo, em todos os Estados da Federação. Como o problema é generalizado, a intervenção teria pouca utilidade.
- A crise penitenciária que vivenciamos hoje é fruto de um conjunto de omissões perpetradas pela União, Estados, Distrito Federal, Poderes Legislativo, Executivo, Judiciário, Ministério Público e, em certa medida, pela própria sociedade. A União, por exemplo, contingenciava recursos financeiros do Fundo Penitenciário Nacional, que deveriam ser destinados para a melhoria dos presídios. Os Estados, por sua vez, não conseguem utilizar os recursos federais para construção de novas unidades às vezes por não apresentarem sequer de projeto para a obra. O Poder Legislativo edita lei com nítido caráter simbólico, a Lei de Execução Penal, passando a imagem de que está atuando seriamente para garantir os direitos dos presos. O Poder Judiciário não controla adequadamente o punitivismo de parte dos membros do Ministério Público, não fundamentando adequadamente a não imposição de medidas cautelares diferentes da prisão quando esta é indevidamente pleiteada pelo Parquet. Finalmente, a própria sociedade não reconhece sua responsabilidade para superação desse estado de coisas: aposta na retórica do “bandido bom é bandido morto”, atiçada por parcela do Poder Legislativo, e se recusa, por exemplo, a receber a construção de determinado presídio nos limites do Município em que residem. Se essa postura for correta, novos presídios não poderiam ser construídos em nenhum local.
O que fazer com os presos, então?
Percebe-se, portanto, como a intervenção federal para garantir os direitos da pessoa humana nos presídios é ineficaz para solucionar a crise. Uma resposta possível para tal situação esta sendo buscada na ADPF nº 347, na qual se busca caracterizar a crise penitenciária como estado de coisas inconstitucional, propondo ousadas técnicas decisórias para a superação dele. Os riscos em torno da ineficácia também dessa
[1] IF nº 5129.
[2] http://oglobo.globo.com/brasil/pgr-estuda-pedir-ao-stf-intervencao-no-sistema-penitenciario-de-quatro-estados-20734206. Acessado em: 04/03/2017.
[3] Esta constatação fica ainda mais clara quando do estudo do estado de coisas inconstitucional, o qual será feito a partir de outro texto.
Se desde 2008 já existe protocolado o pedido de intervenção pelo PGR, o que fica aparente é a falta de interesse do STF, que após quase dez anos nem sequer veio a julgar tal pedido, resultando numa barbaria sem precedentes naquele Estado, o que só comprova a procedência e legitimidade na ação do PGR.
Estou completamente de acordo com sua linha de pensamento, pois o problema da crise penitenciaria, é de todos os Estados membros, e seria inútil intervir em apenas um estado. O correto seria juntar-se união, estado, municípios e distrito federal, e de forma conjunta busca o apoio da população e por fim solucionar o problema do nosso sistema penitenciário. O que na minha opinião e quase impossível, infelizmente…
Itaécio,
Semestre que vem vamos estudar um tema denominado “estado de coisas inconstitucional”, o qual almeja alcançar, justamente, essa coordenação reputada, corretamente, como “quase impossível”, por você. Será outro tema digno de amplos debates em sala, você verá.