AS ORIGENS DO PCC E O SISTEMA PENITENCIÁRIO FEDERAL

junho 24, 2015 — 1 Comentário

O Primeiro Comando da Capital (PCC) não é a única organização criminosa que atua nos presídios brasileiros, tendo contribuído para a sedimentação da ideia em torno da necessidade de criação das Penitenciárias Federais. No entanto, o poderio ostentado por ela, especialmente demonstrado nos eventos de maio de 2006 em São Paulo, justifica perquirir, mesmo que brevemente, suas origens. O tema tratado neste post inaugura uma série de postagens sobre o Sistema Penitenciário Federal, analisado sob a perspectiva dos direitos fundamentais nas relações especiais de sujeição.

A doutrina não jurídica, ao enfocar o tema da criminalidade organizada sob a perspectiva sociológica1 ou antropológica2, aponta que as crescentes instabilidades encontradas no sistema carcerário, especialmente em São Paulo e Rio de Janeiro, desde o início dos anos 903, contribuíram para a fixação da ideia em torno da necessidade das penitenciárias federais. A onda de rebeliões, não tratadas com o devido cuidado pelas autoridades do sistema penitenciário, culminou com a série de ataques orquestrada pelo PCC em São Paulo, em maior de 2006. Nesse ponto, tais pesquisas convergem na busca pelas origens do PCC, analisando as relações entre tal organização, as péssimas condições humanas nos presídios estaduais e a criação do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD).

Acerca das origens do PCC, Karina Biondi aponta que:

Não é possível afirmar com precisão a data e as circunstâncias do surgimento do PCC. No decorrer da minha pesquisa, coletei diferentes versões sobre sua fundação: que teria sido em 1989, na Casa de Detenção do Carandiru; em 1991, em Araraquara; que se originou de outros grupos prisionais chamados Serpente Negra ou Guerreiros de David; ou que sua origem se deu em uma partida de futebol.
(…)

De acordo com essa versão, o PCC nasceu em 31 de agosto de 1993 por ocasião de um jogo de futebol entre o Comando Caipira e o Primeiro Comando do Capital, no Anexo da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, considerada uma das mais rígidas instituições carcerárias do país. A briga entre as equipes resultou na morte de dois integrantes do Comando Caipira. Para se protegerem dos castigos de funcionários da instituição, geralmente na forma de espancamentos, os jogadores do PCC firmaram um pacto no qual a punição de um dos integrantes do time enfrentaria a reação de todos os demais membros do time (Barros: 2006). Logo, os oito fundadores passaram a contar com apoio de outros presos. Mizael, um dos fundadores, redigiu um estatuto, no qual expressava a intenção de se organizarem para tentar evitar os maus tratos que diziam sofrer no sistema penitenciário e, ao mesmo tempo, regular as relações entre os presos, para que os maus tratos não partissem deles próprios. A orientação era a de que tinham de se unir (pois, afinal, compartilhavam uma mesma situação) para então reivindicar o que consideravam um tratamento digno no sistema carcerário. Em seguida, mulheres de alguns desses presos se reuniam na Câmara Municipal de São Paulo para discutir as condições do cárcere.

A criação do PCC é vista por muitos presos como o fim de um tempo no qual imperava uma guerra de todos contra todos, onde a ordem vigente era “cada um por si” e “o mais forte vence”.4

Tenha ou não sido especificamente a partir dos eventos desencadeados com essa partida de futebol que o PCC se formou é certo que os laços de solidariedade entre os membros de tal organização, deixando-os “juntos e misturados”, para utilizar a nomenclatura da autora citada, exerceram forte influencia no mundo do cárcere a partir do episódio, com a crescente adesão, por diversos motivos, por parte de outros presos. Segundo José de Jesus Filho:

generais’, ‘pilotos’, ‘torres’, ‘irmãos’, ‘irmãs’, ‘cunhados’ e ‘primos’ são temos usados pelo PCC para distinguir as funções dos membros. Com a ajuda de advogados, familiares e egressos, dentre outros, PCC tornou-se uma organização atuando dos presídios, organizando crime nas ruas, incluindo tráfico de drogas e roubo a banco.5

A história de motins, tendo como um dos exemplos mais sangrentos o famoso massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de setembro de 1992 quando 111 presos foram mortos pela polícia militar em São Paulo, certamente contribuiu para a ascensão das ideias em torno da criação das unidades Prisionais Federais de segurança máxima. Os eventos de maio de 2006 ocorridos em São Paulo, nos quais o PCC demonstrara formidáveis níveis de comunicação e poder de comando de dentro dos presídios, tamanha a quantidade de ataques coordenados especialmente contra ônibus e prédio públicos, notadamente relacionados à segurança pública6, serviram para fortalecer ainda mais a ideias em torno das Penitenciárias Federais.

Nessa linha, não é de se estranhar o perfil do preso que pode ser submetido àquelas unidades, como traçado pelo art. 3º do Decreto nº 6.877/2009:

Art. 3O Para a inclusão ou transferência, o preso deverá possuir, ao menos, uma das seguintes características:

I – ter desempenhado função de liderança ou participado de forma relevante em organização criminosa;

II – ter praticado crime que coloque em risco a sua integridade física no ambiente prisional de origem;

III – estar submetido ao Regime Disciplinar Diferenciado – RDD;

IV – ser membro de quadrilha ou bando, envolvido na prática reiterada de crimes com violência ou grave ameaça;

V – ser réu colaborador ou delator premiado, desde que essa condição represente risco à sua integridade física no ambiente prisional de origem; ou

VI – estar envolvido em incidentes de fuga, de violência ou de grave indisciplina no sistema prisional de origem.

Claramente, o intuito primordial é isolar membros perigosos de organizações criminosas, buscando-se evitar, justamente, as práticas antes descritas e fartamente praticadas nos ataques de maio de 2006 em São Paulo. O que não se pode admitir, no entanto, é a utilização retórica da expressão “preso submetido ao SPF” para se efetivar restrições desproporcionais aos direitos fundamentais do preso, eis que, mesmo numa relação especial de sujeição, não há uma exclusão absoluta dos direitos fundamentais.

Mas a crítica a essa argumentação retórica é assunto para outro texto.

1 Sérgio. SALLA, Fernando. Criminalidade organizada nas prisões e os ataques do PCC. In.: Estudos Avançados on line version. Vol. 21, noº 61. São Paulo Sept./Dec. 2007. Disponível em: . Acessado em: 18/06/2015.

2 BIONDI, Karina. Junto e misturado – uma etnografia do PCC. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2010. Kindle Edition.

3 ADORNO, Sérgio. SALLA, Fernando. Ob. cit. p, 8. Disponível em: . Acessado em: 18/06/2015.

4 BIONDI, Karina. Ob. cit. Posições 883-912 de 3661.

5 ROSS, Jeffrey Ian. The invention of the American supermax prison. In.: The globalization of supermax prisons – critical issues in crime and society. ROSS, Jeffrey Ian (Org.). New Brunswick, New Jersey and London: Rutgers University Press, 2013. Kindle Edition. Pos. 294-300 de 3279. No original: “In October 1983, after the brutal stabbingdeaths of two correctional officers by inmates at the federal eral maximum-security prison in Marion, Illinois, the facility implemented a twenty-three-hour-a-day lockdown of all convicts. The institution slowly changed its policies and practices and was retrofitted to become what is now considered a supermax prison. After considerable debate and difficulties with Marion, in 1994 the federal government opened its first specially designed supermax prison in Florence, Colorado.”

6ROSS, Jeffrey Ian. The invention of the American supermax prison. In.: The globalization of supermax prisons – critical issues in crime and society. ROSS, Jeffrey Ian (Org.). New Brunswick, New Jersey and London: Rutgers University Press, 2013. Kindle Edition. Pos. 397-404 de 3279.

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  1. “Bandido bom é bandido morto” – de Carl Schmitt à crise penitenciária do Estado do Rio Grande do Norte « - agosto 3, 2016

    […] A criação do PCC é vista por muitos presos como o fim de um tempo no qual imperava uma guerra de todos contra todos, onde a ordem vigente era “cada um por si” e “o mais forte vence”.4 […]

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