Cresci lendo revistas em quadrinhos, de Turma da Mônica à X-Men, Batman, Vingadores, Sandman e tantos outros. Para mim, trata-se de uma das mais notáveis formas de arte já inventada pelo homem. Sempre que posso leio novas sagas e a última que mais me chamou atenção foi a Guerra Civil[1], pela ousadia e originalidade com que tratou temas como: 1) relacionamento entre os super-heróis; 2) o papel de super-heróis na sociedade contemporânea; 3) poder e responsabilidade, levando ao extremo a conhecida máxima do Tio Ben “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”; 4) quais os limites que o Estado deve respeitar para regulamentar a atuação dos super-heróis; 5) quais os limites para a desobediência civil.
Eis a trama, em síntese: 1) um grupo de super-heróis adolescentes, inebriados com seus poderes e buscando a todo custo obter fama num mundo com cada vez mais super-heróis, participam de reality show e, ao tentarem abordar super-vilões bem mais poderosos, geram um conflito totalmente evitável que culmina com a morte centenas de pessoas, muitas delas crianças; 2) a comoção é grande e o Congresso Americano aprova lei para regulamentar a atuação dos super-heróis, tamanho o risco que seus super-poderes causa para a segurança da sociedade; 3) a Lei de Registro de Super- Humanos é aprovada, prevendo que todo super-humano deveria ser registrado perante o governo e, mais que isso, deveria receber treinamento compulsório, atuando obrigatoriamente em grupos divididos entre os 50 Estados americanos, sob rígido controle governamental, profissionalizando-se, assim, a atuação deles; 4) Capitão América não admite ser controlado dessa forma e se opõe frontalmente a tal Lei, não se submetendo ao registro e, muito menos, ao trabalho compulsório para o Governo; 5) Tony Stark, o Homem de Ferro, lidera a corrente contrária a favor da lei; 6) divididos e sem espaço para diálogo, grupos de super-heróis aglutinam-se em torno desses dois icônicos heróis, iniciando uma conflagração de graves proporções no universo Marvel.
É legítimo que indivíduos com poderes extraordinários, poderes estes que fazem parte de sua própria individualidade, sejam obrigados a trabalhar para o governo? A Lei de Registro de Super- Humanos, assim, é justificável? Por outro lado, quem diverge do conteúdo de lei legitimidade aprovada pelo Parlamento pode, simplesmente, iniciar uma guerra? Quais os limites para a desobediência civil?
Temas importantíssimos, que servem, dentre tantas outras finalidades, para sepultar qualquer argumento contra a riqueza intelectual que revistas em quadrinhos podem proporcionar. O deleite proporcionado por uma leitura desse tipo pode sim servir para o debate de diversas questões, séria e cuidadosamente postas pelos autores da obra. Há algum tempo, desde especialmente, a Watchmen de Alan Moore, que os super-herois cada vez mais são trazidos para o mundo real, fazendo com que o leitor imagine: como seria nossa sociedade caso, realmente, pessoas com muito poder, poderes comparáveis às armas de destruição em massa, realmente existissem? O que deveríamos fazer em relação a eles? E, de modo igualmente assustador, o que eles buscariam fazer em relação às pessoas comuns?
De fato, é inegável que há risco no uso dos super-poderes, como muito bem evidenciado logo no início da Guerra Civil. Ora, o risco para a segurança pública é uma justificativa mais que plausível para que sua fonte sofra ingerências estatais, a fim de que o risco seja minorado ou extinto. A Constituição brasileira, por exemplo, admite a regulação das profissões (relembre-se que a Lei de Registro de Super- Humanos, na prática, profissionaliza a atuação dos super-heróis), ao dispor, no art. 5º inciso XIII que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Sem dúvidas que a proteção da sociedade contra destruição e ataques em massa justificaria, assim, previsões legais que buscassem qualificar tal profissão.
Mas há muitos pontos polêmicos na forma como tal regulamentação foi levada a cabo pelo Congresso Americano. Eis alguns: 1) é controverso que indivíduos que apresentem como característica intrínseca de sua personalidade tais super-poderes possam ser, simplesmente, profissionalizados, ainda mais de modo compulsório; 2) não há notícia de nenhum parlamentar super-humano ou, pelo menos, políticos que, aberta e sinceramente, defendam os interesses deles. Muito pelo contrário: apesar de existirem super-heróis com forte apoio da opinião pública, como o Homem de Ferro, historicamente eles foram objeto de repúdio e preconceito na sociedade, como os X-Men não deixam mentir.
Tem-se, assim, pelo menos dois argumentos, o primeiro de ordem material e o segundo de ordem formal, para se questionar tal regulamentação.
Lendo o desenvolvimento da trama, foi ótimo ver logo o Capitão América rebelar-se contra seu próprio País, atuando de modo surpreendente e movido, fortemente, com base no primeiro argumento acima lançado. A condição dos super-heróis, de modo algum, pode ser tratada como mera liberdade profissional. Ser super-herói não é uma profissão, é ser um super-humano. Se, para a trama, não havia forma melhor de se iniciar um conflito, juridicamente, não há qualquer justificativa para a rebeldia do Capitão América.
A democracia americana, apesar dos diversos problemas de ordem social e de perniciosa influência exagerada do poder econômico nas eleições, é um regime representativo e, goste-se ou não, a Lei de Registro de Super- Humanos foi aprovada com larga margem e apoio popular. Ela, portanto, deveria ter sido cumprida. Numa situação como essas, juridicamente, somente o Poder Judiciário poderia afastar a Lei, declarando-a inconstitucional. Felizmente, a Guerra Civil não é uma saga de tribunais e, vamos admitir, a reação natural do Capital América foi muito mais verossímil e instigante.
Mas ela também foi a mais perigosa: o que pretendia, a final, o Capitão América? Derrubar a Lei pela força? E o que faria em seguida? Governaria os Estados Unidos autocraticamente? A destruição causada pela Guerra Civil, ao final, mostra como, realmente, a atuação dos super-humanos merece, de algum modo, ser controlada.
De maneira nenhuma, no entanto, poderia ser profissionalizada.
[1] MILLAR, Mark; MCNIVEN, Steve. Guerra Civil. São Paulo: Salvat, 2013.