DEMOCRACIA E PODERES OCULTOS

dezembro 22, 2014 — Deixe um comentário

A publicidade é característica fundamental das instituições representativas, eis que possibilita aos representados o controle dos agentes do poder, que devem praticar seus atos às claras. Norberto Bobbio aponta os riscos em torno dos segredos da democracia, partindo de algumas promessas que o regime democrático fez e não cumpriu:

A democracia, considerada ao menos idealmente como a melhor forma de governo, muitas vezes é acusada de não cumprir suas promessas. Não manteve a de eliminar as elites no poder; não manteve a promessa de autogoverno; não manteve a promessa de integrar a igualdade formal com a substantiva, e com escassa frequencia – curiosamente – a acusam também de não conseguir aniquilar o poder invisível.[1]

Bobbio parte de constatações da democracia italiana para apontar três ocorrências perniciosas em tal regime, envolvendo justamente o poder que se oculta e que oculta suas práticas. Ele elenca três ocorrências desses fenômenos, sendo as duas primeiras de uma semelhança assustadora com a realidade brasileira.

Primeiramente, aponta que “existe um poder invisível que se dirige contra o Estado e que se conforma com o mais absoluto segredo para combatê-lo”.[2] Bobbio refere-se às organizações criminosas, como a máfia italiana, e a grupos terroristas, os quais, apesar das diferenças quanto aos fins, possuem semelhantes formas de atuação, caracterizada na prática de: furtos, assaltos, sequestros e homicídios.[3]

Como dito, a lição poderia muito bem se aplicar ao Brasil. Organizações criminosas poderosas afrontam o poder estatal, não raro atuando de dentro do próprio sistema prisional, como ocorre, por exemplo, com o comando vermelho ou o primeiro comando da capital, organizações que se destacam com sua torpe fama. Nas favelas e outras regiões mais pobres das grandes cidades, além disso, é corriqueira a atuação das chamadas “milícias”, outra forma de organização criminosa que, a pretexto de prestar certos serviços à população, alguns deles tipicamente estatais como segurança pública, recorrem a todo tipo de expediente violento para garantir seus lucros e poder vil. Forma-se, assim, uma esfera de poder criminosa na própria sociedade, a qual se vê sequestrada e sem qualquer liberdade para, seriamente, escolher seus representantes, eis que tais corpos se interpõem de maneira totalmente ilegítima entre sociedade e Estado, buscando capturar políticos.[4]

A tendência de infiltração de tais organizações criminosas no poder político, maculando a representação legítima, leva à segunda caracterização de Bobbio, quando aponta que “o poder invisível se forma e organiza não só para combater o poder público, mas também para obter benefícios ilícitos e alcançar vantagens não consentidas caso a ação ocorresse à plena luz”.[5] O exemplo por ele trazido refere-se às associações secretas, como a maçonaria, envolvida, na Itália, com escândalos relativos ao petróleo. Novamente, a semelhança com o caso brasileiro é evidente: substitua-se a maçonaria por empreiteiras que obtiveram contratos superfaturados, após fraudes em licitação com a Petrobras e, sem seguida, dividiram propina com agentes públicos, para se ter um dos maiores escândalos de corrupção e desvio de dinheiro público em nosso País, como restou público e notório no contexto da investigação “lava-jato”.

Por último, Bobbio aponta os riscos que os serviços secretos, existentes nos mais variados países, acarretam para a democracia representativa, quando não há controle efetivo desse ramo estatal, oculto por natureza, pelos detentores do poder legitimamente constituídos. Em outras palavras: essa instituição oculta do próprio Estado só se justifica quando sua atuação seja supervisionada pelos cidadãos e se dirija unicamente para a defesa da democracia.[6]

Como dito, as duas primeiras manifestações dos poderes ocultos, na lição de Bobbio, são as que mais de perto tocam a realidade brasileira. Facilmente se constata a degeneração do princípio representativo quando se tem a atuação de organizações criminosas contra o Estado ou trabalhando em associação com este, tamanho os danos causados com: 1) a instalação do medo nos representados e a completa falta de liberdade na hora da eleição; 2) a captura de agentes políticos que passam a representar, mesmo que em campos específicos da administração púbica, os interesses de tais organizações, que se impõem pela corrupção e através do oferecimento e recebimento de vantagens indevidas.

Nesse campo, o princípio da representação política merece proteção através do direito penal. Caso os esforços preventivos mostrem-se insuficientes, somente com forte atuação repressiva por parte dos órgãos de segurança pública, bem como por parte do Ministério Público e do Poder Judiciário, ter-se-á o reestabelecimento da representação popular anteriormente roubada.

[1] Bobbio, Norberto. Democracia y secreto. Tradução para o espanhol: Ariella Aureli e José F. Fernández Santillán. México D.F.: Fondo de Cultura Económica: 2013. Kindle Edition, posição 286. “La democracia, considerada al menos idealmente como la mejor forma de gobierno, a menudo es acusada de no cumplir con sus promesas. No mantiene la de eliminar lãs elites em el poder; no mantiene la promesa de autogobierno; no mantiene la promesa de integrar la igualdad formal con la sustantiva, y com escasa frecuencia – curiosamente – se le acusa también de no lograr aniquilar al poder invisble.”

[2] Idem. Posição 300. “En primer lugar, existe un poder invisible que se dirige contra el Estado y que se conforma en el más absoluto secreto para combatirlo.”

[3] Idem. Posição 300.

[4] A realidade carioca ilustra essa forma de atuação das organizações criminosas no período eleitoral, como pode ser constatada na seguinte notícia, cuja manchete é: “Força tarefa vai combater atuação de milícias nas eleições do Rio.” O seguinte trecho já demonstra a forma de atuação de tais grupos: “Uma semana depois do início do período eleitoral, milícias e facções criminosas já articulam estratégias para se beneficiarem do domínio territorial. Só os paramilitares mantêm 184 áreas no estado, segundo levantamento da Secretaria de Segurança. Em comparação com as campanhas eleitorais anteriores, os grupos passaram a ser mais discretos na disputa por votos, mas não ficaram menos violentos ao exigir o pagamento de taxas aos interessados em panfletar em seus redutos.
Prova disso é o cartaz rasgado no Conjunto Habitacional Dom Pedro I, em Realengo, na Zona Oeste, do qual restou apenas a moldura de madeira e parte do que parece ser um número de candidatura. Episódios como esse, somados às denúncias que chegam ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) alertando para a existência de currais eleitorais em várias regiões, levaram o presidente do órgão, desembargador Luiz Zveiter, a criar uma força-tarefa para combater a atuação do crime organizado”. Disponível em:  http://www.prerj.mpf.mp.br/noticias/o-globo-forca-tarefa-vai-combater-atuacao-de-milicias-nas-eleicoes-do-rio/

[5] Idem, posição 300. “En segundo lugar, el poder invisible se forma y organiza no solo para combatir al poder público, sino también para obtener benefícios ilícitos y recabar ventajas no consentidas por una acción a plena luz.”

[6] Idem. Posições 300-314.

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