É democrática a existência de representantes profissionais eleitos para o Congresso Nacional especificamente pelas associações de classe, numa espécie de eleição indireta? Através da representação profissional, tem-se um sistema no qual há deputados do povo e Deputados profissionais, como, por exemplo, dos profissionais liberais, eleitos pela respectiva entidade de classe.
A questão pode ser ainda mais aprofundada: é democrática a previsão de representação profissional constante numa certa Constituição? Problematizando ainda mais, imagine-se que tal Constituição não foi outorgada, mas sim democraticamente confeccionada. Uma Constituição nesses moldes poderia albergar dispositivos não-democráticos?
As provocações vão além, evidentemente, do âmbito do Direito Constitucional positivo, alcançando a teoria da constituição e, especialmente, a filosofia política. Sem dúvidas, somente uma concepção de democracia adequadamente fundamentada é a que poderá fornecer uma resposta à questão acerca de normas constitucionais não-democráticas numa Constituição promulgada.
Lendo ao clássico “Ciência Política”, do mestre Paulo Bonavides[1], aprendi, surpreso, que a Constituição de 1934 previa a representação profissional no sistema eleitoral por ela delineado, dessa forma:
Art. 23 – A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos mediante sistema proporcional e sufrágio universal, igual e direto, e de representantes eleitos pelas organizações profissionais na forma que a lei indicar.
1º – O número dos Deputados será fixado por lei: os do povo, proporcionalmente à população de cada Estado e do Distrito Federal, não podendo exceder de um por 150 mil habitantes até o máximo de vinte, e deste limite para cima, de um por 250 mil habitantes; os das profissões, em total equivalente a um quinto da representação popular. Os Territórios elegerão dois Deputados.
2º – O Tribunal Superior de Justiça Eleitoral determinará com a necessária antecedência e de acordo com os últimos cômputos oficiais da população, o número de Deputados do povo que devem ser eleitos em cada um dos Estados e no Distrito Federal.
3º – Os Deputados das profissões serão eleitos na forma da lei ordinária por sufrágio indireto das associações profissionais compreendidas para esse efeito, e com os grupos afins respectivos, nas quatro divisões seguintes: lavoura e pecuária; indústria; comércio e transportes; profissões liberais e funcionários públicos.
4º – O total dos Deputados das três primeiras categorias será no mínimo de seis sétimos da representação profissional, distribuídos igualmente entre elas, dividindo-se cada uma em círculos correspondentes ao número de Deputados que lhe caiba, dividido por dois, a fim de garantir a representação igual de empregados e de empregadores. O número de círculos da quarta categoria corresponderá ao dos seus Deputados.
5º – Excetuada a quarta categoria, haverá em cada círculo profissional dois grupos eleitorais distintos: um, das associações de empregadores, outro, das associações de empregados.
6º – Os grupos serão constituídos de delegados das associações, eleitos mediante sufrágio secreto, igual e indireto por graus sucessivos.
7º – Na discriminação dos círculos, a lei deverá assegurar a representação das atividades econômicas e culturais do País.
8º – Ninguém poderá exercer o direito de voto em mais de uma associação profissional.
9º – Nas eleições realizadas em tais associações não votarão os estrangeiros.
Pensava-se que, dada a complexidade técnica crescente de temas afetos à legislação, justificada estava, dentre outros fatores, a previsão de uma representação profissional.
É fácil constatar, seguindo a lição do autor citado, como tal forma de representação é manifestamente antidemocrática. Como escancaradamente demonstrado logo no caput do dispositivo acima transcrito, logo se vê verdadeira cisão entre os eleitores, totalmente injustificada sob o ponto de vista do princípio da igualdade, conduzindo a criação de duas espécies de cidadãos: o “povo” e os profissionais liberais.
Pior: levando em conta que a Constituição delegava à Lei a forma de eleição dos Deputados das profissões (§3º), não parece absurdo supor que um eleitor profissional liberal poderia votar num deputado do povo, alcançando diretamente sua representação, e, além disso, poder contar com representante eleito indiretamente por sua entidade de classe. É o fim do sistema “one man, one vote”.
Felizmente, tal forma de representação não se repetiu nas Constituições seguintes, as quais, gradativamente, com avanços e retrocessos, alcançaram o sistema de sufrágio universal hoje vigente. Para superar as dificuldades em torno do enfrentamento de temas específicos do conhecimento humano, cada vez mais crescentes numa legislação típica de sociedade de massas do Estado Social, coube ao Parlamento a criação das comissões técnicas, aptas a auxiliarem os parlamentares justamente em temas complexos como tecnologia, economia ou medicina, cedo ou tarde objeto da legislação.
Hoje em dia é recorrente criticar de modo aberto o sistema representativo, apontando suas deficiências no que tange ao distanciamento entre candidatos e eleitores. De um modo geral, o sistema eleitoral, no mundo e no Brasil, é alvo de diversas impugnações como a mencionada, quase fazendo ressurgir o ideário do mandato imperativo como forma de superação dos problemas da representação. O mandato imperativo, a saber, aquele que preconiza a condição do eleito como verdadeiro fantoche do eleitor, cuja vontade é àquele vinculativamente imposta, pode ser alvo de diversas reservas, tais como: 1) a ofensa à independência do eleito, o qual não ascendeu ao cargo eletivo para representar somente um eleitor; 2) a existência, dentro dos eleitores de certo candidato, de forte heterogeneidade de ideias, pelo menos em pontos específicos dos temas gerais defendidos. Ora, num quadro desse tipo, deve-se mesmo privilegiar a independência do eleito, o qual cabe buscar, a seu juízo, a melhor forma de representar os interesses gerais de seus eleitores.
Isso não quer dizer, evidentemente, que não se deve buscar mais participação e mais deliberação ética na política. Mas isso é assunto para outro momento.
[1] BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p, 370.