É conhecida a obra do professor norte-americano Mark Tushnet titulada “Taking the Constitution away from the courts”[1] (algo como “Levando a Constituição para longe dos Tribunais”) através da qual o autor sustenta a necessidade de superação e até mesmo a extinção do controle judicial de constitucionalidade das leis. Nos Estados Unidos o tema acerca da legitimidade democrática do controle de constitucionalidade sempre marcou candente polêmica, principalmente porque foi o próprio Poder Judiciário que construiu tal mecanismo, não expressa e claramente previsto na Constituição de 1787.
O presente post faz um trocadilho com o título de tal obra, sustentando a necessidade de os membros do Ministério Público (MP), de um modo geral, e do Ministério Público Federal (MPF), de um modo especial, buscarem cada vez mais a efetividade da atuação extrajudicial (não é, portanto, uma crítica contra a regra do quinto constitucional, como o título poderia supor! hehehe). A fundamentação de tal ideia, no entanto, não está ligada à falta de legitimidade democrática do Poder Judiciário, mas sim a aspectos relacionados à efetividade dos direitos fundamentais, os quais, nem sempre, precisam da atuação judicial para serem devidamente vivenciados pela sociedade.
Quando iniciei no MPF há pouco mais de um ano, não tinha ainda ideia dos amplos poderes extrajudiciais que tal instituição dispõe para buscar o cumprimento de sua missão constitucional. É claro que, formalmente, era fácil conceituar as recomendações ou as audiências públicas, mas supor que, através delas, fosse possível alcançar algum efeito prático na efetivação de direitos me parecia algo inocente. A cultura processual brasileira, fortemente demandista e litigiosa, ajuda a influir profundamente nas concepções acerca das soluções de conflitos existentes na sociedade, fazendo aparecer como primeira opção de pacificação, quase sempre, a prolação de uma decisão judicial.
Certo dia estava conversando com meu amigo Ciro Benigno Porto, Juiz Federal em Limoeiro do Norte-CE e ele me relatara algo semelhante: quando estava em seu curso de formação na Magistratura Federal, sua primeira intenção ao analisar as ações civis públicas propostas para estudo consistia, tão logo fosse possível, em proferir alguma decisão enfrentando o mérito proposto, não abrindo antes qualquer espaço para negociação.
Passei por algo parecido quando cheguei em Assu, nos autos de ação judicial proposta pelo citado Município contra embargo ao abatedouro público municipal lavrado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio): após uma inspeção judicial envolvendo o impacto ambiental de tal empreendimento na Floresta Nacional do Assu, unidade de conservação federal, preparei-me para a instrução processual sequer cogitando acerca da viabilidade de qualquer forma de acordo. Qual não foi minha surpresa quando o Juiz Federal da causa, Dr. Fábio Bezerra, numa verdadeira aula de como solucionar conflitos de modo eficaz, concitou as partes a efetivarem acordo nos autos, compensando os danos ambientais causados e alterando a localização do matadouro, num prazo razoável. Resultado: o acordo foi efetivado, a ação transitou em julgado e o acordo está sendo cumprido normalmente pelo Município, o qual até já dispõe de nova área para instalação do empreendimento.
Já pensaram em quanto tempo esse resultado prático seria obtido caso os trâmites processuais normais, até Brasília, fossem cumpridos?
Pois bem: o Ministério Público também pode alcançar tais resultados ainda com mais velocidade, se sequer ajuizar demandas as quais possam ser consensualmente solucionadas. E tais demandas existem.
O tema ora analisado, em verdade, acaba por estudar pelo menos dois modelos de procuradores da República: 1) um exclusivamente demandista; 2) outro que busca, antes de ajuizar uma ação, explorar seus poderes extraprocessuais à exaustão. Entendo que é incorreto ajuizar qualquer demanda sem antes perquirir, de modo efetivo, se há possibilidade de composição extrajudicial do litígio, por diversas razões, já que tal postura: 1) propicia perda de protagonismo por parte do MPF, o que, por sua vez, gera falta de reconhecimento social do relevante papel de tal instituição; 2) contribui para o acúmulo de ações no Poder Judiciário; 3) não protege adequadamente os direitos fundamentais, ante a demora na efetivação destes; 4) abre espaço para enfraquecimento institucional à medida que, como se sabe, não há vácuo no poder e o não exercício dos poderes extraprocessuais pelo MP logo será exercido por outrem.
Um exemplo de perda de protagonismo: naquele caso do abatedouro, o MPF dispunha de inquérito civil instaurado sobre o assunto. Com a composição judicial, não restou outra alternativa a não ser promover o arquivamento de tais autos, promoção que foi devidamente homologada pela 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. Não teria sido bem melhor para o MPF e para a sociedade a assinatura de um TAC, antecipando-se ao ajuizamento da ação por parte do Município?
Mesmo a atuação na área penal ou nas improbidades administrativas pode ser aprofundada com uma maior participação do membro do MP na fase investigatória, consistente na: 1) oitiva de testemunhas; 2) oitiva do investigado; 3) condução direta das investigações com a requisição específica de diligências a serem efetivadas. Sem dúvidas que uma ação de improbidade administrativa ou uma ação penal terão muito mais qualidade quando ajuizadas com um maior contato direito do MP com a investigação em si.
É claro que diversos fatores podem levar à necessidade de ajuizamento imediato de ações, como: 1) situações urgentes; 2) pretensões prestes a prescrever, as quais não podem esperar a efetivação das mencionadas medidas instrutórias prévias; 3) manifesto desinteresse das partes envolvidas em qualquer tipo de acordo. Em casos desse tipo, logicamente, outra saída não há senão, logo num primeiro momento, cogitar-se o ajuizamento de ações sem a utilização de quaisquer daqueles poderes extraprocessuais.
Em não sendo o caso das hipóteses mencionadas no parágrafo anterior, no entanto, é possível sim alcançar a efetivação de diversos direitos fundamentais a partir da atuação extrajudicial. Em post anterior, mencionei como através de uma simples conversa foi possível fazer com que parte de uma área de preservação permanente fosse protegida, como se pode ser aqui. Igualmente, através de uma singela reunião é possível convencer um grande empreendedor da necessidade de este iniciar a regularização de seu empreendimento perante o ente ambiental competente, devendo este estipular medidas compensatórias em face dos danos provenientes de anos de funcionamento sem a devida licença ambiental.
Concluindo e frisando, para deixar bem claro: é evidente que há conflitos cuja solução somente poderá ser alcançada perante o Poder Judiciário. Crimes e improbidades, por excelência, são fatos que demandam a provocação necessária da jurisdição. Mesmo nesses casos, é possível mais protagonismo do MP, como descrito acima. Além disso, situações em que, manifestamente, não se pode alcançar qualquer tipo de acordo, não terão outro desfecho a não ser o ajuizamento de ações judiciais.
Fora desses casos, a falta de tentativa de solução de extrajudicial de conflitos por parte do MP só leva ao enfraquecimento dessa notável instituição. Sendo assim, concretiza mais os direitos fundamentais aquela atuação que busca o protagonismo do MP na pacificação social. Os resultados são notáveis e espero continuar atingindo-os por muito tempo aqui em Mossoró, cidade para a qual acabei de ser removido!
[1] TUSHNET, Mark. Taking the Constitution away from the courts. New Jersey: Princeton University Press, 1999.
Parabens pelos POST e muito obrigado,tambem,pelos ensinamentos.Boa sorte e sucesso em nossa cidade escaldante,mas acolhedora.
Date: Fri, 9 May 2014 05:16:38 +0000 To: simone_cred@hotmail.com
Parabens pelo blog. Textos muito bons!