ESTADO LIBERAL E COGNIÇÃO JUDICIAL

maio 3, 2014 — Deixe um comentário

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É muito enriquecedor estudar o desenvolvimento dos conceitos jurídicos a partir das concepções de Estado presentes na história das relações humanas. Iniciando-se pelo Estado Liberal até a evolução encontrada com o Estado Social e o contemporâneo Estado Democrático de Direito, percebe-se como a ideologia em torno de cada uma dessas formas de organização altera substancialmente o entendimento sobre os mais diversos direitos encontrados num dado ordenamento.

A doutrina faz tal evolução ao iniciar o estudo, por exemplo, dos direitos fundamentais, concebendo-os como direitos de primeira, segunda ou terceira dimensão. Mesmo certos direitos que, a princípio, surgiram sobre uma matriz liberal, sofrem visível transformação com o transcurso do tempo, como se tem com o direito de propriedade: liberal por essência, sua concepção absoluta ganha contornos sociais e relativizados sob a égide do Estado Social, ampliando-se ainda mais para uma perspectiva ambiental, de acordo com o ideário do Estado Democrático de Direito.

A teoria geral do processo não está imune a esta tipologia evolutiva, podendo-se traçar características marcantes e diferenciadas entre, por exemplo, o papel da jurisdição naqueles variados tipos de Estados. Luiz Guilherme Marinoni[1] faz esta evolução, concentrando-se especialmente nas características e limites da cognição judicial sob a égide do Estado Liberal. Seu intuito é demonstrar como a ideologia liberal não é compatível com a cognição judicial sumária, principalmente quando propicia decisões liminares sem ouvir a parte contrária.

A cognição judicial, como se sabe, pode ser sumária ou exauriente. Através da primeira, o juiz decide com base em juízo de verossimilhança, muitas vezes sem ouvir a parte contrária, a fim de evitar a concretização de um ilícito ou de remover os efeitos dele, exista ou não dano. Não há, nesta fase processual, uma ampla produção probatória, mas somente provas, na maioria das vezes documentais, pré-constituídas pelo autor. Por outro lado, a cognição exauriente é aquela típica das sentenças de mérito em que houve um amplo esgotamento da fase instrutória, com o exercício do contraditório e a produção das mais variadas provas. É evidente que a efetivação de tal cognição é mais demorada.

O Estado Liberal é aquele surgido logo após as revoluções burguesas, tendo a liberdade sob o aspecto formal como seu principal guia. Nesse sentido, a liberdade dos cidadãos frente ao Estado deveria ser protegida a todo custo, entendendo-se que era justamente tal ente que mais poderia violar os direitos fundamentais. Sendo o juiz uma manifestação do poder estatal, os juízes também poderiam ser os algozes de tais direitos.

Nesse ponto, é necessário esclarecer a origem desse receio acerca da atividade judicante. O desprezo da ideologia liberal em relação aos juízes foi mais fortemente encontrado na França, pois lá, à época do antigo regime absolutista, os juízes claramente apoiavam tais monarquias, sendo considerados aliados da nobreza e do clero. A burguesia, assim, tinha motivos para desconfiar do Poder Judiciário.

Não é também de se surpreender que o juiz, na feição liberal, fosse caracterizado como “boca da lei”, tendo a expressão o intuito de demonstrar que o juiz deve, unicamente, declarar o disposto naquele documento aprovado pelos representantes do povo. Tal formulação tinha o nítido intuito de buscar: 1) segurança jurídica, pois não se poderia admitir que os juízes expressassem opinião própria desvinculada do texto legal, no julgamento das questões postas; 2) a referida proteção do cidadão contra o arbítrio do Estado-Juiz, o qual poderia ser mais facilmente controlado se estritamente vinculado à lei.

O Estado Liberal, desse modo, proibia os juízos de verossimilhança porque acreditava que a mencionada segurança jurídica somente poderia advir após a prolação de uma única decisão no curso do processo, a qual deveria der baseada, necessariamente, na cognição exauriente. Admitia-se, assim, a prolação de uma sentença, não de uma decisão liminar. Este fundamento liga-se à defesa do cidadão contra o arbítrio do Estado Juiz: este somente pode ser controlado se for dada ao litigante a chance de se defender adequadamente, respeitando-se de modo absoluto o contraditório. Desse modo, este não poderia ser jamais diferido. A conclusão é fácil: uma modelo que não admita o diferimento do contraditório não pode mesmo chancelar juízos sumários e decisões liminares.

É certo que a simples constatação acrítica acerca da superação do paradigma do juiz como “boca da lei” não pode ser admitida, sob pena de se abrir caminhos para decisionismos. No entanto, sabe-se que o processo, na feição atual, não pode deixar de admitir a cognição sumária e os diversos mecanismos de tutela de urgência, tamanha as situações de risco vivenciadas no mundo contemporâneo, seja um ilícito ambiental ou ofensas ao direito à honra e à imagem, dentre tantas outras violações e ameaças aos direitos fundamentais.

Tais riscos são mais sentidos a partir da complexidade crescente das relações sociais existentes no mundo pós-revolução industrial e globalizado, eventos históricos sempre relacionados ao Estado Social e ao Estado Democrático de Direito. Mas isso é assunto para outro post!

 

 

 

[1] MARINONI, Luiz Guilherme. Processo Cautelar. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p, 44-62.

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