Continuando a postagem sobre criminologia, eis uma breve análise sobre o novo paradigma criminológico que pretende superar o modelo positivista e seu determinismo. Não há uma única criminologia crítica, é certo, mas, dentre suas diversas vertentes, é comum o elenco de argumentos contra a ideologia da defesa social, suplantada por uma nova ideologia, a da reação social.
As correntes criminológicas atacam o determinismo positivista em diversas frentes. Primeiramente, não reconhece o Estado como ente legitimado para fixar quem são os infratores do pacto social, pois, diferentemente do que supunha a doutrina positivista, não há igualdade de participação entre os cidadãos na confecção da lei. Sendo assim, esta anda longe de ser fruto de um pretenso consenso entre aqueles submetidos ao pacto social, pois, na verdade, foi elaborada somente por uma elite que pretende proteger somente os bens jurídicos que lhe são mais caros.
Para a criminologia crítica, não é somente uma parcela da sociedade que infringe o pacto social e comete delitos. Ao contrário, a maior parte dos cidadãos comente crimes, os quais, por diversas razões, não são investigados em sua totalidade.
Avançando, para uma conduta ser incluída no rol das disposições do Código Penal, não há de se perquirir sobre qualquer elemento determinista de ordem psicológica, social ou biológica em torno do delinquente. Na verdade, deve-se buscar quais as razões históricas para tal inclusão. Veja-se a seguinte hipótese: qual o motivo para a criminalização da conduta consistente na fuga da casa grande e constituição de quilombos, na aberrante página da história humana consistente na escravidão? É quase cômico supor que se tratava de algum tipo de determinismo em torno da cor da pele ou da origem nacional dos escravos. Na verdade, o que se buscava era a proteção de todo um modo de produção, que tinha como seus principais beneficiários a elite exploradora.
O fenômeno da criminalidade, nesse sentido, não pode fechar os olhos para perguntas como: 1) quem detém o poder para “etiquetar” os indivíduos como criminosos ou definir aquelas condutas que devem ser tipificadas? 2) qual o papel do direito penal, em geral, e daqueles órgãos responsáveis pela persecução penal, em especial, quando em contato com fatos definidos como crime?
Nesse ponto, a criminologia crítica sustenta que a tal igualdade penal preconizada pela escola positivista é meramente uma fachada. Não se nega a existência cada vez mais crescente de condutas a princípio tipificadas tendo em vista atos praticados pela elite econômica, como os crimes contra o sistema financeiro, o meio ambiente e o sistema tributário. No entanto, paralelo a isso, eis que a redação desses tipos é, propositadamente, aberta e vazada, a ponto de dificultar o enquadramento da conduta. O que se entende, por exemplo, por “gestão temerária” de instituição financeira? É certo que a jurisprudência busca fixar certos parâmetros, a fim de se evitar que o texto se torne letra morta. Mas o ponto é: há uma dificuldade adicional na persecução penal de tais delitos prévia e conscientemente criada por aqueles que, de acordo com a doutrina positivista, deveriam elaborar a lei de modo igual. Enquanto isso, os delitos de roubo e furto, praticados em sua maioria por pessoas pobres, encontram clara previsão legal.
A criminologia crítica aponta, nessa quadra de inflação do direito penal, a existência de verdadeiras “cifras negras”, a saber, diversas condutas criminosas que não são sequer alvo do conhecimento dos órgãos de segurança pública ou, quando o são, não alcançam a devida resposta através dos órgãos de persecução penal. A tese vai ao encontro da ideia de que a maioria da sociedade, até mesmo diante de tantos tipos penais, tende a cometer delitos, mas somente uma pequena quantidade deles são adequadamente enfrentados.
Nesse ponto, penso que merece reflexão aquele segundo componente das tais “cifras negras”, sobretudo quando há a notícia do crime e, após todas as diligências devidas, o membro do Ministério Público promove o arquivamento, pelas razões legalmente previstas, como: 1) inexistência de materialidade; 2) impossibilidade de se determinar autoria; 3) atipicidade, formal ou material; 4) manifesta causa excludente da antijuridicidade, etc.
Não se pode negar a existência de aspectos subjetivos e ideológicos na personalidade de cada um, seja Juiz ou membro do Ministério Público. Sendo assim, como garantir que uma promoção de arquivamento, mesmo fartamente fundamentada, não seja, na verdade, fruto de um pré-conceito? No fundo, tem-se um problema de argumentação jurídica de difícil elucidação.
A existência de uma instância revisional, no entanto, ajuda a contornar esses riscos de subjetivismos. No caso do Ministério Público Federal, por exemplo, tem-se uma Câmara de Coordenação e Revisão (2ª CCR) de composição colegiada, apta a, de modo independente, homologar ou não a promoção de arquivamento posta. Mesmo de acordo com o Código de Processo Penal, como se sabe, o arquivamento deve passar pelo crivo do Juiz.
Mas tal controle não esgota o problema: a fundamentação de tais decisões também pode ser insuficiente e esconder as reais intenções de seus prolatadores. Não sei como se pode alcançar esse nível satisfatório de fundamentação. Mas negar a existência desses aspectos subjetivos, além de perigoso, é de uma ingenuidade brutal. Talvez, este seja um bom início para uma adequada fundamentação: partindo-se da máxima “conhece-te a ti mesmo”, proveniente da filosofia clássica, caberia ao intérprete se perguntar quais seus pré-conceitos e, num rigoroso processo argumentativo, colocá-los à prova, seja para abandoná-los ou confirmá-los, mas nunca para neglicenciá-los.
Referência:
BARATTA, Alessandro. Criminología crítica y crítica del derecho penal. Instroducción a la sociología jurídico-penal. Tradução para espanhol: Álvaro Búnster. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2004.