PERSECUÇÃO PENAL, EXAME DE DNA COMPULSÓRIO E DEVERES REPUBLICANOS

abril 17, 2014 — Deixe um comentário

 

Ontem assisti a uma reportagem (a notícia correspondente pode ser lida aqui) que noticiava uma drástica medida adotada pela polícia francesa para solucionar um caso de estupro numa escola. Diante da impossibilidade de a vítima identificar o autor do delito, já que fora atacada em local escuro, decidiu-se realizar exame de DNA compulsório em todos os homens que estavam no recinto na data do fato, os quais contabilizavam mais de quinhentos.

Ou se fazia isso ou o caso entraria na triste lista de arquivamentos em face da impossibilidade de se determinar autoria, deixando a vítima sem qualquer resposta estatal a essa grave e revoltante afronta a seus direitos fundamentais.

Aqui no Brasil, caso semelhante ocorreu com a cantora Glória Trevi, a qual alegava ter sido estuprada na sede da polícia federal, quando lá custodiada enquanto aguardava seu processo de extradição perante o STF. A fim de elucidar os fatos, os quais punham em risco até mesmo a respeitabilidade e honra dos policiais federais que lá trabalhavam, coube ao STF decidir (Reclamação nº 2040) se um exame de DNA a partir da placenta da extraditanda poderia ser efetivado, mesmo contra a vontade dela.

Numa democracia, é justificável o Estado obrigar indivíduos a se submeterem a exame de DNA?

A resposta a essa indagação varia conforme a corrente filosófica sobre o papel que os direitos fundamentais devem ostentar num Estado Democrático de Direito. Certamente, para um liberal, ou seja, para aquele que defende que direitos fundamentais são meramente os direitos civis ou de liberdade, não há qualquer justificativa para uma intervenção desse tipo na integridade física e na autodeterminação individual do ser humano. Nem mesmo o interesse público na solução de um delito desse tipo poderia justificar um exame de DNA compulsório, cabendo à vítima levar adiante por toda sua vida o fardo da impunidade, sendo esse, diriam eles, um dos preços de se viver numa democracia liberal.

Uma outra abordagem, por outro lado, pode ser fornecida pelo ideário do republicanismo. Através dele, tem-se que a vida em sociedade demanda também a assunção de certos deveres, para além dos direitos amplamente consagrados. Tais obrigações tem um aspecto de participação na vida pública, participação esta que não seria meramente formal, através do voto, nem se contentaria unicamente com a defesa de interesses próprios: um republicano, assim, deve tomar decisões baseadas no interesse público.

No plano constitucional, apesar da consagração de diversos direitos individuais, a Constituição de 1988 não é, evidentemente, uma Constituição liberal, não sendo novidade alguma apontar que, desde 1934, o constitucionalismo brasileiro se abriu para os direitos sociais. Avançou-se, principalmente com a atual Constituição, nas disposições solidárias e republicanas que determinam diversos deveres para a sociedade em áreas como: segurança pública, educação, saúde, defesa da criança e do adolescente.

Dito isso, uma medida como a adotada pela polícia francesa é plenamente justificável, partindo-se da premissa de que, realmente, é possível identificar previamente todos os homens que estavam no local do crime na data em que este ocorrera. Levando em conta o interesse público na elucidação desse grave delito, bem como na punição do infrator, não é razoável admitir a facultatividade do exame. Os mencionados deveres republicanos apontam em sentido diverso: como dito, cabe a cada um dispor de seus direitos não meramente de maneira individual ou egoística, mas também tendo em vista o bem comum, o qual se mostra, nesse caso, a partir da necessidade em se descobrir a autoria delitiva.

Para o republicanismo, assim, fazer o exame de DNA, numa hipótese como a ora em análise, é um dever cívico. É conhecida a crítica aos exageros do republicanismo, quando o Estado quer impor aos seus cidadãos que estes participem mais na vida pública, contra a vontade destes. No presente caso, no entanto, essa crítica não procede.

Para rebater essa ponderação, usarei um pouco da própria argumentação do STF no caso Glória Trevi acima descrito, o qual fora julgado na citada Reclamação nº 2040. O STF admitiu a realização do exame de DNA compulsório, tendo em vista, dentre outros aspectos, a baixíssima ofensividade da medida, a qual seria efetivada na placenta da extraditanda. Tal material, segundo a própria perícia juntada aos autos, já poderia ser classificada como mero “refugo hospitalar” (fl. 179 do Acórdão).

Parece, assim, ser abusivo o exercício de um pretenso direito à intimidade que chegue ao ponto de não admitir a realização do exame. No caso Glória Trevi, outros argumentos foram lançados a favor do teste, como, por exemplo, a moralidade administrativa, a eficiência da persecução penal e a imagem dos policiais federais sob suspeita.

Caso se queira utilizar o princípio da proporcionalidade, mesmo sob o risco de ser tachado de decisionista por alguns, outra também não seria a solução. O exame de DNA compulsório é medida adequada para se alcançar o fim visado, qual seja, a identificação do agente criminoso. Não há nenhuma outra medida menos invasiva com o mesmo grau de eficácia para se alcançar tal fim: não há testemunhas ou quaisquer documentos que apontem para a autoria. No caso ocorrido na França, sequer foi possível coletar um depoimento pessoal mais detalhado da vítima, sendo este, normalmente, a fonte de prova a que se deve dar mais atenção em crimes desse tipo, ante a ausência de outras provas. Por outro lado, não se poderia admitir, para fins penais, eventual presunção de autoria para o sujeito que recusasse se submeter ao exame, caso este fosse facultativo, ante a proscrição da responsabilidade penal objetiva, além do respeito ao princípio do in dubio pro reo. Por tudo isso, é fácil constatar: não há mesmo outra medida menos invasiva.

Finalmente, no confronto entre a interesse público na solução do delito e o direito fundamental à imagem, este deve ceder em tais hipóteses, por todas as razões antes apontadas: 1) a Constituição de 1988 não consagra unicamente direitos de liberdade, não sendo, em hipótese alguma, um texto liberal ou mesmo libertário; 2) deveres republicanos impõem ao cidadão esse papel ativo, sendo este também interessado na solução do caso; 3) há mínima ofensividade nos exames de DNA hodiernamente realizados, havendo uma múltipla forma de coleta de materiais que não trazem qualquer prejuízo para o indivíduo.

Os argumentos republicanos aqui lançados entram no debate a partir do interesse público na elucidação de um crime. Eles não poderiam ser invocados, portanto, para se tentar superar o entendimento que sustenta a facultatividade do exame de DNA em casos de investigação de paternidade. Neste caso, restaria a fundamentação acerca da baixa ofensividade do exame, bem como a insuficiência em torno da mera presunção da paternidade gerada com a recusa na efetivação daquele.

 

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