Na tipologia clássica das formas de governo proposta por Aristóteles na obra Política[1], tem-se a monarquia como governo de um soberano, algo que não seria ruim em si, mas que poderia se transformar numa forma corrompida, a tirania, essa sim nefasta para os homens. Na sua análise, a aristocracia (governo dos mais preparados, como os sábios) e democracia (um governo do povo, com todas as limitações históricas com termo possui) completariam os quadros atinentes às formas típicas de governo, sendo que também estas duas últimas poderiam se corromper, originando a plutocracia e a demagogia, respectivamente.
Autores como Políbio[2], na obra História, tem uma visão pessimista e, necessariamente, trágica sobre o caminho de todas essas as formas virtuosas de governo: inevitavelmente, elas tendem sim à degeneração, perfazendo um círculo vicioso entre o apogeu da monarquia, da aristocracia e da democracia e a devassidão da tirania, plutocracia e demagogia. O autor sustenta que a superação desse estado de coisas poderia ocorrer com uma Constituição mista, como a romana, a qual internalizava as três formas de governo virtuosas em suas instituições, fazendo com que se impedisse a degradação delas, quebrando-se esse círculo vicioso.
Nas concepções clássicas dos autores citados, assim, não há uma clara percepção no sentido de que a monarquia, em si mesma, já é uma forma de governo completamente aberrante. A tirania, na verdade, é o agravamento de uma já nefasta corrente de ideias, que exalta: 1) os privilégios de nascimento; 2) a consequente transmissão hereditária do poder; 3) a vitaliciedade no exercício do poder; 4) desprezo pela meritocracia.
Buscando superar esses valores, a República é normalmente associada a ideias como: 1) igualdade entre os cidadãos, não se admitindo privilégios de classe; 2) aquisição de poder, pelos agentes estatais, através de eleições ou concursos públicos; 3) alternância no poder; 4) respeito à meritocracia. O republicanismo, no entanto, vai além dessas corretas formulações, estipulando que o cidadão detém deveres em relação à sociedade, além dos direitos já consagrados nas leis e na Constituição.
Esses deveres republicanos impõem uma maior participação do cidadão na vida pública, servindo para justificar, por exemplo, porque o voto em nosso País ainda é obrigatório. Além disso, não é qualquer participação que contenta o republicanismo, mas sim uma participação não somente voltada para os interesses pessoais, mas também gerais.[3]
O Ministério Público é uma das instituições vocacionadas para a promoção e proteção daqueles valores republicanos antes citados. Não é a única, mas, tendo em vista a configuração constitucional dada a seus membros, é, sem dúvidas, a mais importante em aspectos de repressão. Nessa seara, seja através de ações de improbidade administrativa, seja através de ações penais, o Ministério Público exerce parcela de poder na tentativa de reprimir: 1) a institucionalização do “jeitinho” brasileiro; 2) a confusão entre público e privado; 3) a perpetuação de sujeitos que, em face do poder político ou econômico que eventualmente possuam, supõem serem soberanos, inimputáveis em face da força da suposta tradição de seus nomes.
Todos aqueles que, no seu cotidiano, baseiam suas condutas em valores monárquicos, sempre buscando levar qualquer tipo de vantagem nas relações sociais ou impor sua vontade particular aos espaços estatais de deliberação, que devem visar ao interesse público, são verdadeiros representantes, ainda hoje, das Monarquias. Esses procuradores da Monarquia sentem-se acima das leis e da Justiça, e agem autoritariamente sempre que demandados pelo Ministério Público. É evidente que o Ministério Público pode abusar de suas funções. Quem busca reparação judicial contra tal tipo de arbitrariedade, logicamente, não está se esquivando de seus deveres republicanos. No entanto quem: 1) ameaça membros do Ministério Público em face de sua função; 2) ameaça testemunhas; 3) busca impedir, através de habeas corpus, investigação lícita e com justa causa; 4) captura agentes públicos através da corrupção; 5) pretende se perpetuar no poder através de interpostas pessoas, como prefeitos que são meramente marionetes de seus antecessores; 6) quem financia campanha eleitoral para, com a vitória do beneficiário do investimento, cobrar a conta através de contratos administrativos normalmente precedidos de licitações fraudadas; 7) privilegia seus parentes ou partidários por simples interesse ideológico, em detrimento de escolhas técnicas; certamente sentem-se reis absolutistas.
A conduta desses usurpadores não encontra respaldo na ampla maioria da sociedade brasileira. Sendo certo que o “jeitinho brasileiro” ainda, infelizmente, subsiste, é igualmente incontroverso que parcela significativa do povo brasileiro converte-se em verdadeiros procuradores da República: eles simplesmente não admitem as práticas descritas no parágrafo anterior e querem a proscrição total das mesmas. Desde junho do ano passado o Brasil viu uma clara manifestação a favor de mais participação, com temas de interesse público em pauta, com educação, transporte e combate á corrupção. É mais um exemplo de vivência, por parte da sociedade, desses valores republicanos.
Os Procuradores da República oficiais e demais membros do Ministério Público não diferem, essencialmente, em nada dessa parte da sociedade brasileira. A diferença é formal, tendo em vista simplesmente a investidura em cargo público. Um dos grandes desafios em fazer parte do Ministério Público é saber que, quando se denuncia tais práticas monárquicas, a reação é, normalmente, explosiva: afinal, os soberanos, quando começam a ser enquadrados na Lei, não admitem perder a majestade.
Havendo justa causa, no entanto, o jogo em prol da República começa a ser virado. Após a instrução processual e a confirmação de provas que se espera produzidas pela acusação, é possível a condenação por parte do Poder Judiciário, fazendo com que a corrupção de nossa democracia, tal qual ocorria nas clássicas formas de governo, seja impedida.
É uma honra poder contribuir, nos estritos termos da Constituição, para que tais finalidades sejam alcançadas. É emocionante estar no Ministério Público Federal há um ano.
[1] Aristóteles. A política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. São Paulo: Lafonte, 2012.
[2] POLÍBIO. História. Brasília:Unb, 1996.
[3] SARMENTO, Daniel; NETO, Cláudio Pereira de Souza. Direito constitucional – teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2012. Pos. 7769, Kindle Edition.