O SEMI-ÁRIDO BRASILEIRO E A CONVIVÊNCIA DO SERTANEJO COM A ESTIAGEM: SUPERAÇÃO DO PARADIGMA FRAGMENTÁRIO DO MERO “COMBATE ÀS SECAS”

janeiro 11, 2014 — Deixe um comentário

O semi-árido brasileiro recebeu especial atenção da Constituição de 1988, sendo-lhe garantida a metade dos recursos destinados à Região Nordeste, do total de 3% que essa região tem direito no âmbito da repartição das receitas tributárias, de acordo com o art. 159, I, “c” da Constituição.[1] Como esse dinheiro será gasto, bem como qual a melhor maneira de as políticas públicas enfrentarem o problema das secas e da desertificação são questões que demandam a análise de dois paradigmas sobre o problema: aquele que pretende combater as secas, como se esta fosse o único motivo para o subdesenvolvimento do semi-árido, em contraponto com o paradigma que determina a convivência do homem com as estiagens.

O paradigma do combate às secas, como dito, coloca em evidência as secas como única causa para o subdesenvolvimento do semiárido, esquecendo-se de que, mesmo na época das chuvas, o sertanejo vive no limite, dispondo de péssimas condições de saúde, educação, moradia, alimentação, etc. Roberto Marinho Alves da Silva aponta as características dessa abordagem do problema:

A intervenção governamental no Semi-árido brasilei­ro, em grande parte, tem sido orientada por três dimen­sões que se combinam no combate à seca e aos seus efeitos: a finalidade da exploração econômica; a visão fragmentada e tecnicista da realidade local; e o proveito político dos dois elementos anteriores em benefício das elites políticas e econômicas regionais.

(…)

Desde as primeiras iniciativas governamentais, pesaram os interesses políticos das oligarquias sertanejas no Nordeste, transformando o combate à seca em um grande negócio.

(…)

Outra característica da intervenção governamental no Semi-árido é o enfoque fragmentado e reducionista de que a seca, como falta de água, é o principal problema a ser enfrentado. Os relatos históricos mostram que os estudos técnicos e científicos foram incentivados e patrocinados pelo governo desde os fins do século XIX, buscando identificar as causas das secas e apontar as soluções para redução dos seus efeitos.[2]

O paradigma do combate às secas, assim, privilegia uma análise externa e principalmente econômica de tal questão, buscando resolver tal problema, principalmente, a partir da realização de obras de acumulação de corpos d´água (“solução hidráulica”). A crítica a tal modelo assenta-se na falta de participação das comunidades diretamente afetadas com as secas na formulação das políticas públicas, bem como na colocação da açudagem como exclusivo ou principal mecanismo para solução dos efeitos das estiagens prolongadas. Não é somente com disponibilização de água que o fenômeno das estiagens será vencido.

Buscando superar essa ideologia, o autor aponta a emergência de um novo paradigma, aquele que aponta a necessidade de convivência com o semi-árido. Por convivência com o semi-árido entende-se: “uma perspectiva cultural orientadora da promoção do desenvolvimento sustentável no Semi-árido, cuja finalidade é a melhoria das condições de vida e a promoção da cidadania, por meio de iniciativas socioeconômicas e tecnológicas apropriadas, compatíveis com a preservação e renovação dos recursos naturais.”[3]

Através desse novo ideário, as políticas públicas para desenvolvimento do semi-árido não mais devem considerar as secas, como fenômeno climático, o único fator que leva às péssimas condições de vida dos habitantes do semi-árido. Tais políticas públicas devem se preocupar também com as seguintes questões: sociais, como o combate à pobreza e falta de concretização dos demais direitos sociais; culturais, respeitando as populações tradicionais submetidas às secas e privilegiando as soluções desenvolvidas “de baixo para cima”, sempre com a participação dos diretamente afetados; econômicas, buscando não meramente beneficiar os empreendimentos econômicos que realizem obras no semi-árido, mas se voltando para a geração de trabalho e renda; ambientais, buscando-se a recuperação e conservação dos ecossistemas, com a necessidade de se proteger adequadamente o bioma caatinga; políticas, com o fortalecimento da sociedade civil e com a ampliação da participação desta.[4] O paradigma do mero “combate às secas”, em síntese, negligenciava todas essas questões.

Um exemplo de convivência com as secas pode ser retirado da obra clássica de Guimarães Duque, “O Nordeste e as lavouras xerófilas”[5], a qual aponta a necessidade de um especial fomento para a utilização e plantação de espécies xerófilas, ou seja, mais resistentes às secas, como: o algodão Mocó, a carnaubeira, a oiticica, o cajueiro, a cultura da palma, a goiabeira, a maniçoba, o umbuzeiro, os bosques de algaroba, o faveleiro ou o licuri.

É evidente a grandeza do desafio: qual a melhor forma de exploração de tais lavouras? O homem do campo está aparelhado tecnicamente para o cultivo delas? Como o Poder Público pode fomentar a utilização de tais espécies? Trata-se de um investimento cujo retorno poderá ser alcançado em quanto tempo?

Essas dificuldades, evidentemente, desautorizam o não enfrentamento inteligente da questão.


[1] Art. 159. A União entregará:

I – do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados quarenta e oito por cento na seguinte forma: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 55, de 2007)

c) três por cento, para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento, ficando assegurada ao semi-árido do Nordeste a metade dos recursos destinados à Região, na forma que a lei estabelecer;

[2] SILVA, Roberto Marinho Alves. Entre o combate à seca e a convivência com o semi-árido: políticas públicas e transição paradigmática. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 38, nº 3, jul-set,  2007. p, 471-473.  Disponível em: http://www.bnb.gov.br/projwebren/exec/artigoRenPDF.aspx?cd_artigo_ren=1042. Acessado em: 17/12/2013.

[3] SILVA, R. M. A. Entre o combate à seca e a convivência com o semi-árido: transições paradigmáticas e sustentabilidade do desenvolvimento. 2006. Tese (Doutorado em Desenvolvimento sustentável) – Universidade de Brasília. p, 272. Apud: SILVA, Roberto Marinho Alves. Ob. cit. p, 477.

[4] SILVA, Roberto Marinho Alves. Ob. cit. p, 477.

[5] DUQUE, José Guimarães. O nordeste e as lavouras xerófilas. Banco do Nordeste do Brasil: Fortaleza, 2004. p, 188-297. Disponível em: http://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/23261/1/livro1-O-Nordeste-e-as-Lavouras-Xerofilas.pdf

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