O presente texto continua a abordagem sobre o impacto das secas nos direitos humanos e fundamentais, buscando demonstrar como o meio ambiente tem status de direito humano. Tal constatação faz com que a Convenção de Combate à Desertificação da ONU, adotada em Paris, em 17 de Junho de 1994 e internalizada através do Decreto Legislativo nº 28, de 13 de junho de 1997, torne-se importante norte na superação desse fenômeno que constitui uma das causas da miséria no semiárido. As ideias ora postas terão continuidade, ainda, numa série de postagens sobre o tema feitas ano que vem.
O entendimento de que o meio ambiente deve ser protegido contra o homem é recente, complementando ou mesmo alterando a compreensão original que invertia as posições da relação ora em estudo, pela qual o homem é quem deveria ser protegido dos fenômenos naturais.[1] Numa sociedade de riscos como se apresenta o mundo globalizado, a busca por um meio ambiente equilibrado só pode ser minimamente eficaz se contar com a ajuda dos demais Estados, pois não é raro, por exemplo, que a poluição causada numa parte do globo gere efeitos em outro lugar. Já é possível antever como é sensível a responsabilidade internacional dos Estados diante do dano ambiental, ante a dificuldade em se descobrir, de fato, quem fora o poluidor.[2] Essa necessidade de cooperação já demonstra, em parte, como o direito ao meio ambiente se liga à solidariedade.
A natureza de direito humano conferida ao meio ambiente equilibrado não é tão evidente para autores como Malcolm N. Shaw. Traçando a linha evolutiva da consagração internacional de tal direito, o autor assenta que:
Já houve tem afirmasse que, entre os direitos humanos vigentes no direito internacional, existe agora o direito a um ambiente saudável. Certamente, há uma gama de dispositivos gerais de direitos humanos que podem aplicar-se ao campo da proteção ambiental, como o direito à vida, o direito a um padrão de vida adequado, o direito à saúde, o direito à alimentação e outros, mas as referências específicas ao direito das pessoas a um ambiente saudável são, de modo geral, poucas e ambíguas.[3]
O autor segue sua sustentação e, após analisar o preâmbulo da Declaração de Estocolmo sobre o meio ambiente humano de 1972[4], bem como o princípio primeiro da Declaração do Rio sobre o meio ambiente e desenvolvimento[5], reconhece que “os movimentos para associar as duas áreas do direito internacional estão progredindo paulatina e cautelosamente: [6]
Alcançou-se um novo e importante estágio com a adoção da Convenção de Aarhus sobre o Acesso à Informação, a Participação Pública na Tomada de Decisões e o Acesso à Justiça em Questões Ambientais, de 1998, que associa expressamente os direitos humanos ao meio ambiente e reconhece que a “devida proteção do meio ambiente é essencial ao bem-estar humano e ao gozo dos direitos humanos fundamentais, entre eles o próprio direito à vida”.[7]
Mesmo diante de tais reticências, Malcolm N. Shaw reconhece a especial proteção que o meio ambiente deve ter como garantidor de outros direitos fundamentais, nos termos da primeira transcrição acima posta. No entanto, não se pode concordar com afirmação no sentido de que as disposições sobre o meio ambiente como direito humano ainda se encontram “ambíguas”. Há um erro argumentativo na própria exposição do autor: para ele, houve evolução no reconhecimento do meio ambiente como direito humano a partir do dispositivo por ele citado referente à Convenção de Aarhus. Ora, a redação de tal dispositivo não é muito diferente das proclamações contidas na citada Declaração de Estocolmo sobre o meio ambiente humano de 1972, bem como com o princípio primeiro da Declaração do Rio sobre o meio ambiente e desenvolvimento, por ele criticadas. Veja-se, por exemplo, que a Declaração de Estocolmo também aponta, em seu preâmbulo, que o meio ambiente é essencial para o bem-estar e a vida humana, em moldes semelhantes à Convenção de Aarhus.
A interpretação mais adequada, portanto, é aquele que coloca o direito ao meio ambiente como direito humano desde a Declaração de Estocolmo, como o fazem, por exemplo, Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer.[8] Desse modo, ainda buscando justificar o direito ambiental como direito humano, tem-se que tal qualificação é uma decorrência do próprio princípio da dignidade da pessoa humana[9], a qual se redimensiona agora numa perspectiva ecológica:
A dignidade (da pessoa) humana constitui conceito submetido a permanente processo de reconstrução, cuidando-se de uma noção histórico-cultural em permanente transformação quanto ao seu sentido e alcance, o que implica sua permanente abertura aos desafios postos pela vida social, econômica, política e cultural, ainda mais em virtude do impacto da sociedade tecnológica e da informação. Atualmente, pelas razões já referidas, pode-se dizer que os valores ecológicos tomaram assento definitivo no conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana. Portanto, no contexto constitucional contemporâneo, consolida-se a formatação de uma dimensão ecológica-inclusiva – da dignidade humana, que abrange a ideia em torno de um bem estar ambiental (assim como de um bem estar social) indispensável a uma vida digna, saudável e segura. Dessa compreensão, pode-se conceber a indispensabilidade de um patamar mínimo de qualidade ambiental para a concretização da vida humana em níveis dignos. Aquém de tal padrão ecológico, a vida e a dignidade humana estariam sendo violadas no seu núcleo essencial. A qualidade (e segurança) ambiental, com base em tais considerações, passaria a figurar como elemento integrante do conteúdo normativo do princípio da dignidade da pessoa humana, sendo, portanto, fundamental ao desenvolvimento de todo o potencial humano num quadrante de completo bem-estar existencial.[10](destaques no original)
O bem estar existencial citado pelo autor seria o fim último de toda a proteção conferida ao meio ambiente. Nessa perspectiva, a Convenção de Combate à Desertificação da ONU ganha ares de supralegalidade, segundo o STF, abrindo caminho para o controle de convencionalidade dos diversos programas governamentais criados no contexto das secas. Mas isso é assunto para o ano que vem.
Feliz natal e próspero ano novo!
[1] VENTURA, Victor Alencar Mayer Feitosa. Direito humano ao meio ambiente sadio. Afirmação histórica e crítica jurídica. In.: Direitos humanos de solidariedade. FEITOSA, Maria Luiza Alencar Mayer; FRANCO, Fernanda Cristina Oliveira Franco; PETERKE, Sven; VENTURA, Victor Alencar Mayer Feitosa (Org.). Curitiba: Appris, 2013. p, 105.
[2] SHAW, Malcolm N. Direito internacional. Tradução de: Marcelo Brandão Cipolla, Lenita Ananias do Nascimento, Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p, 623.
[3] Idem. p, 624.
[4] “O homem é ao mesmo tempo obra e construtor do meio ambiente que o cerca, o qual lhe dá sustento material e lhe oferece oportunidade para desenvolver-se intelectual, moral, social e espiritualmente. Em larga e tortuosa evolução da raça humana neste planeta chegou-se a uma etapa em que, graças à rápida aceleração da ciência e da tecnologia, o homem adquiriu o poder de transformar, de inúmeras maneiras e em uma escala sem precedentes, tudo que o cerca. Os dois aspectos do meio ambiente humano, o natural e o artificial, são essenciais para o bem-estar do homem e para o gozo dos direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à vida mesma”.
[5] “1 – Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza”.
[6] Idem. p, 625.
[7] Idem. p, 626.
[8] SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional ambiental. Constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p, 38-39.
[9] Segundo Ingo Sarlet, entende-se por dignidade da pessoa humana: “a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venha a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 4ª Ed. Editora Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2006. p, 60.
[10] SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Ob. Cit. p, 40-41.