Concluindo o Trabalho de Conclusão de Curso referente ao Curso de Ingresso e Vitaliciamento de Procuradores da República, escrevi um artigo sobre “As ruas e o Ministério Público – o papel do Parquet no diálogo entre sociedade e Estado através do direito de reunião”. Dentre os temas abordados, encontra-se a análise da liberdade de reunião a partir do princípio da máxima eficácia dos direitos fundamentais. Com isso, busquei demonstrar que diversas interpretações restritivas do âmbito de proteção de tal direito merecem ser rechaçadas. Eis um pequeno texto sobre o tema, o qual segue a orientação de George Marmelstein lançada aqui, no que tange à bibliografia sugerida.
Uma reunião é formada por uma pluralidade de pessoas, sendo necessária no mínimo duas pessoas para a própria expressão “reunião” ter algum significado (quem se reúne, obviamente, o faz com alguém).[1] Da mesma forma que não se pode limitar a liberdade de expressão a assuntos exclusivamente políticos, também não se pode assim proceder em relação à proteção da liberdade de reunião. Primeiramente, não há qualquer limitação constitucional nesse sentido, devendo-se, como dito acima, a norma fundamental ser interpretada em sua máxima eficácia. Além do mais, uma posição restritiva como aquela poderia ser utilizada facilmente como mecanismo de censura, não se admitindo a proteção constitucional para manifestações artísticas, culturais ou meramente recreativas pela arbitrária razão de que a autoridade de plantão não compartilharia os valores propagados por determinada parcela da sociedade.[2]
Prosseguindo, tem-se o elemento temporal da liberdade, sendo intuitivo supor que uma determinada manifestação tenha prazo razoável para se desenvolver. Nesse sentido, apesar de as autoridades públicas não poderem, a piori, estabelecer um prazo para o desenvolvimento do ato, é possível posterior restrição temporal em face de largo transcurso de tempo, se a reunião acaba por colidir com outros direitos fundamentais igualmente relevantes.
O caráter pacífico da reunião é garantido pela ausência de armas e pela postura não beligerante de seus participantes. O protesto sentado é considerado pela jurisprudência estrangeira[3], acertadamente, como pacífico. Ora, mesmo impedindo a passagem de outrem, tal manifestação corporal encontra proteção tanto na liberdade de expressão (protesto através de atos corporais) como na liberdade de reunião, havendo forte carga argumentativa a favor da proteção a tal conduta. Sem dúvidas há uma colisão de direitos fundamentais, entre tais direitos e a liberdade de ir e vir, como, de resto, ocorre em praticamente todas as situações em que ocorrem manifestações públicas. Vedar, simplesmente, a reunião sentada seria medida completamente desproporcional em sentido estrito, pois o custo para promover a liberdade de ir e vir seria a total aniquilação daquela outra liberdade. Compatibilizando os direitos em jogo, é possível se pensar numa restrição temporal, nos moldes apontados acima.
Uma reunião não deixa de ser pacífica se parte de seus integrantes começam a cometer atos de violência, devendo a autoridade policial identificar os baderneiros e retirá-los da reunião. Não se nega a dificuldade exacerbada em torno do exercício do poder de polícia em relação às multidões, mas não se pode admitir a dissolução de uma reunião em face de atos isolados de violência. A atuação policial nas manifestações públicas será abordada com mais profundidade na análise específica do papel do Ministério Público na proteção do direito de reunião.
Finalmente, como elemento dos mais caros à liberdade de reunião tem-se seu caráter espacial, o qual compreende as áreas abertas ao público. Com isso, evidentemente, não se quer vedar proteção às reuniões em locais privados, mas sim apontar que, nesses casos, a proteção será alcançada por outros direitos fundamentais, como o direito de propriedade, a proteção ao domicílio e inviolabilidade da vida privada.[4]
O elemento espacial é outro aspecto da liberdade de reunião que o coloca em posição de grande proximidade com o regime democrático. Reivindicar, protestar, sugerir novos rumos para a política e a coisa pública de um modo geral somente pode ter um mínimo de efeito prático quando tais atos se desenvolvem no espaço público, às claras. Historicamente, as praças são os locais de tais transformações.[5]
A importância da praça, como se pôde perceber, não autoriza supor que tal local público é o único destinado às manifestações. Ao protesto público e à liberdade de reunião em geral, devem ser garantidos o uso equânime e legítimo dos espaços públicos que são utilizados para os propósitos mais rotineiros, como o tráfego de pedestres e veículos. Isso quer dizer que mesmo rodovias podem ser utilizadas como palco das manifestações, como decidido, por exemplo, pela Suprema Corte de Israel em 1979, conforme noticiado no Guidelines on Freedom os Peaceful Assembly, da organização internacional OSCE – Office for Democratic Institutions and Human Rights (ODIHR).[6]
Finalmente, a Constituição coloca como elementos procedimentais do direito de reunião a necessidade de comunicar previamente às autoridades a realização da reunião, bem como a vedação para que ela não frustre outra manifestação anteriormente convocada para o mesmo local. O intuito de tais procedimentos são os seguintes: 1) possibilitar na prática a realização do direito; 2) informar às autoridades públicas para que estas tomem as medias de segurança e de controle do tráfego necessários para o bom andamento da manifestação; 3) estabelecer a ordem cronológica de preferência entre reuniões que ocorrerão, eventualmente, no mesmo local; 4) prevenir o público em geral acerca do local, momento e conteúdo da manifestação, para que, caso não se queira participar do evento (já que ninguém pode ser obrigado a se reunir) busquem-se rotas alternativas, afastando-se da reunião.
Com dito na introdução do presente texto, toda a análise do direito de reunião será pautada pelo princípio interpretativo da máxima eficácia dos direitos fundamentais. Sendo assim, os presentes limites procedimentais devem ser bem interpretados, não podendo consubstanciar fonte de argumentos arbitrários contra a liberdade de reunião.
Nesse sentido, não há que se falar em necessidade de autorização estatal para a manifestação, muito menos em dissolução da reunião em face da ausência do aviso prévio. Tal aviso, em verdade, sequer pode ser exigido nas reuniões espontâneas, a saber, aquelas formadas em oposição às reuniões convocadas por associações ou pessoas dotadas de maior representatividade. Além do mais, cabe ao Poder Público se aparelhar para receber adequadamente tal aviso prévio, devendo-se considerar como adimplida tal condição quando a manifestação for pública e notória, com ampla divulgação na mídia ou nas redes sociais.
A ausência de aviso prévio, assim, não torna lícita a dissolução da reunião, devendo as autoridades policias fazerem o possível, dentro da dificuldade criada pelos próprios organizadores do evento, para garantir o bom andamento da reunião. Sendo assim, a consequência da ausência de observância desse limite procedimental é o risco, para os próprios manifestantes, de a reunião não alcançar seus fins almejados, nunca, repita-se, a dissolução da mesma.
De acordo com o texto constitucional, uma reunião não pode frustrar outra anteriormente convocada para o mesmo local. Tal limite tem sua razão de ser na tentativa de garantir a fruição do direito de reunião por parte do grupo que primeiramente comunicou a convocação às autoridades. No entanto, mesmo este limite deve ser interpretado com cuidado, no sentido de que, em sendo possível, também a reunião convocada tardiamente deve merecer proteção, admitindo-se sua dissolução somente em último caso.
Partindo-se do princípio interpretativo da máxima eficácia dos direitos fundamentais, portanto, é possível concluir que: 1) o conceito de reunião pacífica alberga o protesto sentado; 2) uma reunião não se torna violenta pela ação de parte de seus participantes, devendo os agentes de segurança retirarem tais manifestantes, não dissolvendo a reunião; 3) uma reunião, apesar de precisar de um mínimo de coordenação, não precisa, necessariamente, ter uma finalidade política, merecendo proteção as manifestações culturais e artísticas, mesmo que não se concorde com seu conteúdo; 4) as rodovias, como importante espaço público, podem sim ser local de manifestação, mesmo que cause transtornos para motoristas, os quais não terão seu direito de ir e vir totalmente vedado, mas simplesmente restringido; 5) os limites ou elementos procedimentais a tal direito simplesmente servem para facilitar o exercício da liberdade de reunião; 6) sendo assim, eventual falta de aviso prévio às autoridades não torna a reunião ilícita, muito embora possa haver responsabilização do agente convocador, em casos de abusos; 7) mesmo as reuniões convocadas para o mesmo local devem ser protegidas na medida do possível, vedando-se a realização da reunião cronologicamente mais nova somente em último caso.
[1] Bodo Pieroth e Bernhard Schlink, ao conceituarem o termo “reunião”, apontam que: “Na questão do conceito de reunião, verifica-se um consenso no sentido de que não pode ser suficiente qualquer encontro de várias pessoas, sendo, pelo contrário, necessária uma ligação interna, assegurada pela prossecução de um fim comum. Por isso, não são reuniões, mas meros ajuntamentos, uma concentração de pessoas quando de um acidente de trânsito ou o público num concerto musical, em que todos prosseguem o mesmo fim, mas não um fim comum, visto que não precisam uns dos outros para prossecução desse fim. Todavia, também os meros ajuntamentos se podem transformar em reuniões, se vier a surgir a ligação interna que a princípio faltava”. PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. Tradução: Antônio Francisco de Sousa e Antônio Franco. São Paulo: Saraiva, 2012. p, 254.
[2] Nesse sentido, é possível criticar a decisão do Tribunal Federal Constitucional alemão no caso Loveparade. Segundo George Marmelstein: “O Loveparade é um festival de música tecno ao ar livre. Foi concebido originariamente como manifestação política pela paz através da música. Na sua primeira edição, em 1989, tinha apenas 150 participantes. Dez anos depois, passou a ser frequentado por mais de um milhão de pessoas. É considerado como a maior festa rave do mundo.” O evento ocorria numa área pública no centro de Berlim e em, 2001, por conta de transtornos causados pela multidão, teve sua realização proibida pelas autoridades. Quando o caso chegou ao Tribunal Federal Constitucional alemão, este negou proteção à reunião, usando, dentre outros fundamentos, o argumento de que “a liberdade de reunião, ainda que seja um dos direitos fundamentais mais importantes para a democracia, já que exerce uma função substancial na formação da opinião pública, não protege uma mera aglutinação de pessoas unidas por objetivos partilhados como a dança e a música, sendo indispensável um propósito de manifestar uma opinião, o que não ficou demonstrado no caso Loveparade”. Arrematando, o autor aponta as seguintes críticas a tal decisão: “Em primeiro lugar, o Loveparade, aparentemente, tem sim um intuito de divulgar uma ideia – seja a paz, seja o amor, seja a música tecno -, ainda que a forma de expressão não se amolde ao ‘mainstream’, ou seja, ao gosto cultural da maioria da população. Em segundo lugar, mesmo que não tivesse qualquer intuito ideológico por detrás do Loveparade, penso que a liberdade de reunião protege apenas reuniões ideológicas, mas qualquer tipo de reunião, desde que haja interesses comuns compartilhados, como ouvir e dançar uma música em praça pública”. MARMELSTEIN, George. A praça é do povo? A liberdade de reunião e o direito de manifestação popular em espaços públicos na visão dos tribunais. p, 22-24. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/41288960/Direito-de-Reuniao. Acessado em: 08/10/2013.
[3] Caso Sitzblockaden II (1995) – bloqueio sentado contra armas nucleares, julgado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão. MARMELSTEIN, George. Ob. cit. p, 20-21.
[4] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Ob. cit. p, 367.
[5] Nesse sentido, George Marmelstein aponta que: “A Ágora – símbolo maior da democracia grega – era a praça em que os cidadãos atenienses se reuniam para deliberarem sobre os assuntos da pólis. A liberdade dos antigos, para usar a conhecida expressão de Benjamin Constant, era justamente a liberdade de ‘deliberar em praça pública’ sobre os mais diversos assuntos: a guerra e a paz, os tratados com os estrangeiros, votar as leis, pronunciar as sentenças, examinar as contas, os atos, as gestões dos magistrados e tudo o mais que interessa ao povo. A democracia nasceu, portanto, dentro de uma praça. A praça também pode ser considerada como um ícone da liberdade dos modernos de que falava Constant. Foi na Place de la Bastille, em Paris, que se realizou pela primeira vez, em 14 de julho de 1790, a Fête de la Fédération (‘Festa da Federação’), para comemorar a Revolução Francesa que tinha se iniciado um ano antes naquele mesmo local, com a famosa queda da prisão da Bastilha, que simboliza o começo da modernidade. No Brasil, o movimento Diretas Já, que acelerou o fim da ditadura militar, teve como palco principal as praças das grandes cidades brasileiras: a Praça da Sé e a Praça Charles Müller, em São Paulo; Praça da Cinelândia e Praça da Candelária, no Rio de Janeiro; Praça Rio Branco, em Belo Horizonte; Praça do Bandeirante, em Goiânia; Praça Gentil Ferreira, em Natal; Praça XV de Novembro, em Florianópolis, entre várias outras. Muitas praças foram território de batalhas sangrentas pela liberdade no mundo todo. Em Pequim, na China, a Praça da Paz Celestial (Tian´anmen) presenciou um dos grandes atentados contra a liberdade da história contemporânea: o Massacre de 4 de junho de 1989, onde milhares de estudantes chineses, que protestavam pacificamente contra a repressão e a corrupção do governo chinês, foram mortos pelo exército sem qualquer respeito aos mais básicos direitos humanos”. MARMELSTEIN, George. Ob. cit. p, 35. Atualizando a rica lista lembrada pelo autor, poder-se-ia ainda citar o mais conhecido palco da chamada “primavera árabe”, qual seja, a praça Tahir, no Egito.
[6] Nesse sentido: “Participants in public assemblies have as much a claim to use such sites for a reasonable period as everyone else. Indeed, public protest, and freedom of assembly in general, should be regarded as an equally legitimate use of public space as the more routine purposes for which public space is used (such as pedestrian and vehicular traffi c). This principle was clearly stated in a decision of the Israeli Supreme Court in 1979: ‘… In exercising the ‘traffi c’ consideration, a balance must always be struck between the interests of citizens who wish to hold a meeting or procession and the interests of citizens whose right of passage is aff ected by that meeting or procession. Just as my right to demonstrate in the street of a city is restricted by the right of my fellow to free passage in that same street, his right of passage in the street of a city is restricted by my right to hold a meeting or procession. The highways and streets were meant for walking and driving, but this is not their only purpose. They were also meant for processions, parades, funerals and such events.’ OSCE – Office for Democratic Institutions and Human Rights (ODIHR). Guidelines on Freedom of Peaceful Assembly. Varsóvia: OSCE-ODIHR, 2007. Disponível em: http://www.osce.org/odihr/24523. Acessado: 08/10/2013.
Muito bom e proveitoso esse texto.Parabens e obrigado
Obrigado pela leitura!
Bom seria se os PM’s se comportassem desta forma. Parabéns pelo texto.