BATENDO O MARTELO OU VOTANDO A LEI: A POLÊMICA EM TORNO DE QUEM DEVE DECIDIR SOBRE O ABORTO

outubro 5, 2013 — Deixe um comentário

Finalizando essa série de postagens sobre controle de constitucionalidade e democracia, eis a última abordagem, a qual coloca em confronto direto ambos os autores anteriormente estudados, Ronald Dworkin e Jeremy Waldron. Apesar de eu, particularmente, ser a favor da descriminalização do aborto sob certas condições, o objeto do presente post não é explorar tal temática. Deixando as coisas bem claras, ele somente tem por finalidade apresentar a polêmica acerca de quem deve decidir sobre tal questão: o Poder Judiciário ou o Poder Legislativo.

Desse modo, este texto se justifica simplesmente como forma de ilustrar o debate até aqui apresentado, mostrando alguns dos argumentos de ambos os autores sobre o aborto no que tange, especificamente, à qualidade da deliberação pública no Parlamento e na Corte. Assim, busca-se tão somente investigar este problema: a maioria, necessariamente, tende a não respeitar o direito das minorias na aprovação de uma lei? Como nos Estados Unidos o direito ao aborto foi reconhecido pela Suprema Corte, não pelo Parlamento, o debate ganha contornos interessantes, ainda mais quando se constata que diversos países europeus tiverem o reconhecimento de tal direito garantido por lei, não por uma decisão judicial.

Como mencionado nos posts anteriores, um dos principais argumentos para a defesa da revisão judicial da lei é a má qualidade do debate parlamentar, constantemente influenciado por intrigas, jogos de poder e uma desconsideração, flagrante ou disfarçada, dos verdadeiros argumentos em jogo. Tais defeitos não seriam encontrados nas Cortes, que teriam mais condições de levar os direitos das pessoas a sério.

Ao analisar a possível ofensa que a leitura moral da Constituição poderia fazer àquele terceiro valor revolucionário, qual seja, a comunidade ou a fraternidade, Dworkin demonstra que não se deve pensar que o controle judicial de constitucionalidade, por se tratar de uma intervenção numa lei por parte de pessoas que não foram eleitas democraticamente, contribui para minimizar os laços de solidariedade que unem os indivíduos, pois também há participação popular no processo judicial. Na verdade, para Dworkin a participação é muito mais importante no interior do processo judicial que na própria deliberação legislativa, já que nesta a voz do indivíduo nem sempre é considerada. Na construção da decisão judicial, por outro lado, a manifestação da parte é determinante e exigida como forma de legitimar o resultado final do processo. Nesse sentido, o autor aponta que:

Alguns cidadãos, por meio de sua contribuição para a discussão pública do assunto, podem ter mais influência sobre uma decisão judicial do que teriam sobre uma decisão legislativa por meio de seu voto solitário. E, mais importante ainda, não existe um vínculo necessário entre o impacto ou a influência política de um cidadão e o benefício ético que ele garante para si através de sua participação na discussão ou deliberação pública. No debate público generalizado que precede ou sucede uma decisão judicial, a qualidade da discussão pode ser melhor e a contribuição do cidadão pode ser mais cuidadosa e mais genuinamente movida pela ideia de bem público do que na guerra política que culmina com uma votação do legislativo ou mesmo um plebiscito.[1]

É nesse contexto que o autor defende o acerto, por exemplo, da famosa decisão no caso Roe versus Wade, através da qual a Suprema Corte americana reconheceu a inconstitucionalidade da uma lei do Estado do Texas que criminalizava o aborto, salvo quando se tratasse de única alternativa possível para salvar a vida da mãe. Para Dworkin, o debate legislativo pode até apresentar algumas virtudes, mas, mesmo quando ele é esclarecedor, a regra majoritária estimula soluções meio-termo, que não consideram em primeiro plano as questões de princípio. Nesse sentido, uma discussão pública generalizada só pode mesmo ser fruto de um processo constitucional, como o travado no caso Roe versus Wade. Dworkin afirma categoricamente: se tal debate sobre o aborto tivesse sido travado no parlamento, a complexidade das questões morais envolvidas não teria sido seriamente considerada. [2]

Waldron não concorda com nada disso. Na verdade, o autor aponta que considerar como necessária a opressão da maioria sobre a minoria constitui uma falácia. Rebatendo tais argumentos, Waldron aponta que em países como a Nova Zelândia os direitos das pessoas foram levados a sério pelo parlamento:

Com base em minha experiência, verifico que o debate nacional a respeito do aborto é tão bem-informado e amplo em locais como a Nova Zelândia e no Reino Unido, nos quais não se trata de um assunto de âmbito constitucional, quanto o que ocorre nos Estados Unidos. Talvez seja até mais, pois nestes lugares o debate não está contaminado pelas discussões sobre como se deve analisar um documento do século XVIII.

É libertador poder discutir assuntos como aborto de forma direta, com base em princípios aplicáveis, em vez de ter de construir princípios que decorram de algum texto sagrado, no exercício tendencioso de caligrafia constitucional. (…) Sustentar que o público precisa de um debate moral interpretativo para que, somente depois desta etapa, este possa ser conduzido com dignidade e sofisticação é um mito.[3]

A acirrada polêmica em torno do aborto vivido pela sociedade americana, mesmo depois da decisão de Roe versus Wade e, para Waldron, justamente em razão dela, só poderia um dia ser apaziguada quando houvesse uma deliberação pública nos moldes ocorridos naqueles Países que decidiram o tema através do Parlamento. Com a conciliação política alcançada através da lei, os grupos pró-vida e os grupos feministas poderiam aprender a respeitar o ponto de vista oposto, mesmo que não concordassem com ele.

Dworkin não faz a mesma previsão otimista. O autor aponta que nos momentos em que se pensava que a decisão do caso Roe versus Wade fosse revista, alguns Estados como Lousiana e Utah promulgaram leis que se opunham frontalmente ao aborto, sem qualquer sinal de acordo ou conciliação, a ponto de sequer admitirem exceções no caso de estupro ou incesto.[4] O autor arremata assentando que, se a mencionada decisão fosse revista: “os Estados Unidos rapidamente se veriam divididos, como um tabuleiro de xadrez desigual, entre estados em que as forças antiaborto fossem poderosas e a proibição do aborto quase total, e estados em que a fragilidade dessas forças tornasse o aborto mais acessível”.[5]

Esse debate demonstra como o controle judicial de constitucionalidade, mesmo previsto numa dada constituição, merece reflexões e análises em torno de seus possíveis confrontos com a democracia. Waldron reconhece que a aceitação de suas teses nos Estados Unidos poderia ferir o orgulho americano, tendo em vista a consagração secular da revisão judicial. Assim, o autor escreve muito mais pensando na realidade do Reino Unido e na possível adoção de uma Carta de Direitos.[6] Dwokrin, por outro lado, aponta que a leitura moral não demanda, necessariamente, que a instituição a dar a ultima palavra seja a Corte. No entanto, como essa solução foi adota nos Estados Unidos desde 1803 e como o intérprete deve se limitar pela tradição, a tradição americana determina que os direitos sejam decididos por último pelo Poder Judiciário.[7]

Essas ideias podem nortear o debate no tema aqui no Brasil, quando o tabu em torno do mesmo for superado, algum dia.

 

[1] DWORKIN, Ronald. Direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p, 46.

[2] Idem.p, 47.

[3] Waldron, Jeremy. O judicial review e as condições da democracia. Tradução de Julia Sichieri Moura. In.: Limites do controle de constitucionalidade. Coleção ANPR de direito e democracia. Antônio Carlos Alpino Bigonha e Luiz Moreira (Orgs.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p, 249.

[4] DWORKIN, Ronald. Domínio da vida – aborto, eutanásia e liberdade individuais. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p, 10.

[5] Idem. p, 12.

[6] WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999. p, 16.

[7] DWORKIN, Ronald. Direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p, 7.

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