Continuando o debate iniciado no post anterior, eis as considerações de Jeremy Waldron, ex-aluno e debatedor de Ronald Dworkin, sobre a conveniência do controle judicial de constitucionalidade. As ideias adiante sintetizadas são radicalmente contrárias às de Dworkin e serão melhor comparadas no post seguinte, o qual aborda a polêmica sobre qual Poder deve dar a última palavra sobre o aborto, se Legislativo ou Judiciário.
No debate norte-americano sobre a legitimidade democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade, o diálogo entre Ronald Dworkin e Jeremy Waldron se notabiliza à medida que, como dito, eles apresentam posições inteiramente opostas. Waldron sustenta a total ilegitimidade da revisão judicial, tendo respondido os argumentos de Dworkin sobre a leitura moral da Constituição especialmente no artigo “O judicial review e as condições da democracia”.[1]
No entanto, a abordagem do autor é muito mais profunda, não se resumindo a uma mera contra-argumentação da leitura moral. A preocupação primeira de Waldron é resgatar a dignidade da legislação, perquirindo porque essa atividade fruto da regra majoritária é tão mal vista, de um modo geral, até mesmo pelos pensadores do direito. Na verdade, a legislação sequer foi fruto de estudos mais aprofundados, não tendo os estudiosos se preocupado em fazer pelos legisladores ou pela lei algo parecido que Dowkin fez em relação aos juízes e a decisão judicial a partir de seu juiz Hércules.[2]
Desse modo, na obra “A dignidade da legislação”,[3] Waldron vai buscar as razões para a indignidade da legislação, apontando as principais críticas feitas a ela e buscando sua fonte de inspiração em filósofos não diretamente ligados à defesa da lei, tais como Locke, Aristóteles e Kant. Num primeiro momento, portanto, a tarefa de Waldron é colocar a lei no centro dos estudos da filosofia política. Fazendo isso, o autor começa sua investida contra Dworkin, atacando um dos pilares argumentativos deste: a valorização da decisão judicial como principal ato estatal que dispõe sobre direitos.
Em seguida, na obra “Law and disagreement”,[4] Waldron aponta que o direito e os desacordos andam juntos. Assim, a existência de desacordos não demonstra uma crise no direito, pois aqueles são da própria essência deste. Com tantos desacordos entre os homens, não sendo exagero dizer que se vive mesmo num mundo de desacordos, como rotulado no presente post, a legitimidade para dispor sobre eles só pode ser da legislação. Assim, Waldron coloca o direito à participação nas decisões públicas como o “direito dos direitos”, cabendo à lei decidir por último nos casos de discordância moral entre os membros da sociedade. Com essa segunda argumentação, Waldron confronta outra ideia base de Dworkin: a de que os Tribunais são as instâncias mais adequadas para resolver questões de desacordo moral, já que o debate legislativo tende a ser viciado.
Em seguida, a dignidade da legislação e os desacordos morais serão analisados, tendo como pano de fundo a tese acerca da ilegitimidade da revisão judicial.
1.1 A dignidade da legislação e a busca pelo consentimento
Na sua empreitada inicial, Waldron coloca, de maneira bem realista, o atual estágio da reputação da atividade legislativa, demonstrado seu descrédito popular:
As pessoas convenceram-se de há algo indecoroso em um sistema no qual uma legislatura eleita, dominada por partidos políticos e tomando suas decisões com base no governo da maioria, tem a palavra final em questões de direito e princípios. Parece que tal fórum é considerado indigno das questões mais graves e sérias dos direitos humanos que uma sociedade moderna enfrenta. O pensamento parece ser que os tribunais, com suas perucas e cerimônias, seus volumes encadernados em couro e seu relativo isolamento ante a política partidária, seja um local mais adequado para solucionar questões desse caráter.[5]
A crítica feita em torno da qualidade do debate legislativo e da participação popular na mesma será mais explorada, repita-se, quando da análise específica do debate que os autores travaram sobre o aborto. No momento, serão apontadas algumas razões levantadas por Waldron para justificar o referido status da legislação, a quem caberia somente discorrer sobre questões de política, pois as questões de princípios ou os direitos em si não poderiam ser protegidos pelo Poder Legislativo.
Waldron aponta, inicialmente, dois grandes obstáculos para o reconhecimento da dignidade da legislação e os confronta em seguida. Primeiramente, ter-se-ia a crítica corrente feita ao tamanho das assembleias legislativas, partindo-se da premissa de que um grande número de legisladores só faz diminuir a qualidade da legislação, uma vez que os jogos de poder, as negociatas e os acordos espúrios teriam ainda mais chance de se disseminar. Como a ampla maioria das assembleias contemporâneas apresenta-se numerosa, a crítica feita deve ser considerada e respondida corretamente.[6]
Para tal defesa, Waldron parte da leitura de Maquiavel, para quem a calma e a solenidade não são, necessariamente, a marca de uma boa política. No ponto, Waldron adota uma postura nada ortodoxa e, diz, claramente, que suas considerações no decorrer de sua obra seguirão conselho de Maquiavel, não sendo lícito pensar, portanto, que o barulho e o conflito são sintomas de patologia política.[7]
Uma segunda crítica feita à legislação, essa mais difundida, seria o caráter autoritário que a mesma ostentaria, pois, apesar de fruto da deliberação popular, seria derivada de uma mera contagem de cabeças, já que a regra da maioria é que a origina. Nesse sentido, não haveria nada de democrático na legislação, pois a premissa majoritária que a fundamenta pode ser muito bem utilizada por grupos de terroristas cuja divergência sobre qual seria seu próximo alvo demandaria o recurso à opção da maioria. Se levado ao extremo tal argumento, no entanto, o próprio direito constitucional americano não seria nada democrático, pois as decisões da Suprema Corte também são tomadas por maioria de votos.
Essa visão autoritária, então, deve ser desconstruída. Para tanto, Waldron busca analisar as relações entre a maioria e a minoria, partindo da busca pelo consentimento. Será que as deliberações majoritárias, necessariamente, oprimem a minoria? Essa questão, posta anteriormente e aprofundada adiante, serve para se buscar a legitimidade da regra da maioria.
Estudando tal relação, Waldron parte de três considerações, lendo John Locke e seu “Segundo tratado sobre o governo”. Em primeiro lugar, a deliberação pública numa sociedade civil deve buscar não só o respeito à regra da maioria, mas também a própria coesão e manutenção dessa sociedade. Assim, se uma decisão tomada pela maioria leva a uma revolta por parte da minoria a ponto de ela buscar uma separação, de nada adiantou se respeitar a regra majoritária. Em segundo lugar, a decisão fruto da deliberação pública será aquela que encontrar a adesão de mais pessoas, levando em conta somente as matérias que foram levadas ao debate, não se admitindo uma solução meio-termo ou vetorial, a menos que tal solução tenha sido também posta em votação. Finalmente, a regra da maioria pressupõe que todos os participantes tenham igual poder de voto, pois se uma minoria detém um voto qualificado, a decisão será fruto da deliberação destes, não da maioria.[8]
A primeira consideração em torno da coesão da sociedade é um dos argumentos mais fortes para justificar a dignidade da legislação. Através de tal coesão, está explicado porque as decisões da maioria não oprimem a minoria. O entendimento de tal explicação demanda uma análise do consentimento que os membros da sociedade civil manifestaram quando da criação dela.
Nesse momento, os indivíduos, além de abrir mão de parte de sua liberdade em prol de um sistema estatal que lhes assegurasse o bem comum, também consentiram em aceitar as deliberações públicas fruto da maioria. Esse consentimento original foi dado de maneira unânime, pois do contrário não haveria sequer o surgimento da sociedade civil. No entanto, requerer que as deliberações posteriores também fossem tomadas somente através de uma votação por unanimidade não se afigura razoável, tamanha as divergências existentes entre os homens.[9]
Desse modo, a regra da maioria, quando compreendida a partir desse consentimento original para a formação da sociedade civil, demanda uma dupla exortação para os membros da sociedade: 1) o respeito à regra da maioria; 2) a necessidade que essa minoria permanecer unida ao restante da sociedade. Tal necessidade de coesão é imprescindível para se assegurar a vitoria da maioria, pois o poder político desta depende da estabilidade social. Assim, há uma verdadeira simbiose entre a maioria e a minoria, pois aquela precisa desta.
Mas o que garante a compreensão da minoria e determina sua manutenção na sociedade? É justamente a ideia de que a derrota no processo majoritário é algo melhor que a desagregação. Nessa ponderação entre o que é pior ou menos pior é que a maioria desempenha um papel chave, buscando, na deliberação a qual se sagrou vitoriosa, instigar aos membros da minoria a escolha pela coesão. Sendo assim, a decisão majoritária não pode tudo, nem muito menos tende a oprimir a minoria, pois, se isso acontecer, a vitória alcançada não poderia ser fruída, ante a desagregação social. Como a maioria, evidentemente, deseja usufruir seus ganhos, ela deseja a manutenção da sociedade, o que só é possível com o respeito a um mínimo de direitos que garantam a coesão social por parte da minoria. Em suma: se a minoria se mantém unida, mesmo derrotada, ela não foi oprimida pela maioria.
Essa visão da decisão majoritária não garante uma decisão correta, mas sim uma decisão legítima, apta a respeitar direitos, não se preocupando somente com argumentos de política, pois, como visto, há uma preocupação com a continuidade e estabilidade sociais. Para Waldron, portanto, aquele consentimento original necessário para a formação da sociedade civil contribui para o argumento de defesa da decisão majoritária e, por conseguinte, para a dignidade da legislação.
1.2 Os desacordos morais e o direito de participação
Waldron inicia sua obra sobre direitos e desacordos apontado que o mundo está repleto de desacordos, a ponto de as pessoas divergirem sobre quais direitos devam constar numa Constituição, quais desses direitos são extensíveis a elas e, concretamente, qual o conteúdo de cada um desses direitos.[10] Para o autor, os filósofos do direito, de um modo geral, não contribuem para solucionar tais desacordos, pois as considerações deles partem do desacordo como algo patológico, que deve ser considerado somente como ponto de partida para suas considerações. Ora, os desacordos, como visto anteriormente, devem ser concebidos como algo da essência do próprio direito, sendo incompleta uma teorização que simplesmente os considere como ponto de partida, como um problema a ser superado.
Outro argumento relacionado ao pretenso autoritarismo da legislação é aquele que sustenta a parcialidade dos votantes, fazendo com que cada um, ao proferir sua manifestação de vontade, pense unicamente em seus próprios interesses. Se esses interesses são dominantes, os interesses minoritários não poderiam ser levados a sério. Waldron combate essa visão parcial da deliberação pública.
Para o autor, as pessoas bem intencionadas e de boa-fé, podem muito bem votar pensando no bem comum, apresentando uma imparcialidade que, assim, não seria encontrada somente nas Cortes. Para ele, as pessoas não podem ser consideradas como detentoras de certos direitos simplesmente porque assim alegam, como o fazem as minorias. Evidentemente, tal argumento só se sustenta quando se admite uma deliberação imparcial.[11]
Poder-se-ia objetar que essa concepção de Waldron guarda uma confiança excessiva na altivez do ser humano, já que este seria capaz de abstrair um interesse próprio em prol do bem comum. No entanto, o autor aponta que há um aspecto normativo na tua teoria, no sentido de que, se na prática tal estado de coisas não ocorre ou não ocorre a contento, cabe ao filosofo buscar o dever-ser além do ser.[12]
Sendo assim, se a legislação deve ser considerada como uma fonte digna de direitos e se o ato de votar pode ser considerado como um ato imparcial, por que não se pode admitir que os indivíduos, destinatários dos direitos, decidam sobre quais direitos eles têm? É a partir daí que Waldron vai sustentar o direito de participação como o “direito dos direitos”.
Numa situação como a descrita, considerando a respeitabilidade da legislação e da deliberação majoritária, o direito de participação seria suficiente para se garantir os direitos. Dizer que o direito a participação é o “direito dos direitos” não deve ser concebido numa situação de possível conflito com outros direitos, no sentido de, em havendo tal confronto, o direito a participação teria de prevalecer sobre os demais. Para Waldron, não se trata de uma colisão de direitos, mas sim de o exercício de um direito particularmente apropriado para situações nas quais pessoas razoáveis divergem sobre quais direitos elas têm.[13]
Desse modo, a participação nas deliberações públicas é uma imposição da própria democracia, que não se contenta com a mera participação popular desprovida da possibilidade de influenciar no debate público. O cidadão sabe que seu poder político, individualmente considerado, é pequeno, mas também sabe que a soma de diversos votos, através da contribuição da coletividade, pode fazer uma política voltada para o bem comum. Assim, o pequeno peso de um voto individualmente considerado não aflige o individuo, pois este sabe que não goza, sozinho, de um poder decisivo sobre o objeto da deliberação. O que afeta o indivíduo, portanto, é a falta de consideração e respeito sobre seu direito de participação. Uma postura como essas é inaceitável numa democracia.[14]
Voltando à pergunta anteriormente feita, o povo deve ser considerado apto a decidir sobre quais direitos tem, numa situação de desacordo, a partir do respeito ao seu direito de participação. Diz-se isso porque a participação envolve também questões sobre princípios, além de questões de política e, ao se admitir o indivíduo como um agente pensante capaz de deliberar moralmente e transcender a preocupação com seus próprios direitos, só mesmo os titulares dos direitos poderiam deliberar sobre eles.
Em síntese, os argumentos de Waldron contra a revisão judicial podem ser assim organizados: 1) a legislação e a regra majoritária são instrumentos respeitáveis e legítimos, porém pouco teorizados, cabendo ao filósofo do direito colocá-los no centro das discussões políticas; 2) admitida a respeitabilidade da legislação, esta também pode levar os direitos a sério; 3) admitida a possibilidade de os membros da sociedade votarem de maneira imparcial, estes é quem devem ser consultados para decidir sobre questões relacionadas a quais direitos lhes são atribuíveis; 4) com o confronto e superação das premissas acima apontadas, seguidas pelos defensores do controle judicial de constitucionalidade, ter-se-ia o direito de participação como o direito dos direitos, cabendo ao parlamento, e não aos Tribunais, dispor sobre as questões envolvendo desacordo moral.
[1] Waldron, Jeremy. O judicial review e as condições da democracia. Tradução de Julia Sichieri Moura. In.: Limites do controle de constitucionalidade. Coleção ANPR de direito e democracia. Antônio Carlos Alpino Bigonha e Luiz Moreira (Orgs.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p, 243-270.
[2] Dworkin assenta que, nos casos difíceis, ou seja, nos problemas cuja solução não seria claramente aferível pelo juiz partindo da análise das normas que regulam a controvérsia, a argumentação jurídica versa sobre conceitos contestados, como o conceito de propriedade ou contrato. Além disso, versa sobre conceitos como os de “intenção” ou “propósito” da lei, bem como sobre qual seria o conceito adequado dos princípios, fundamento das regras. Para o deslinde dos casos difíceis, o juiz deve alcançar a exata compreensão dessas duas dimensões, perquirindo a intenção da lei e o que se entende pelos princípios aplicáveis ao caso em análise. Nesse sentido, Dworkin cria a figura de um juiz extraordinário, cuja capacidade, sagacidade, paciência e sabedoria estariam além das qualidades humanas normais, e cuja função precípua seria desenvolver teorias aptas a resolver aqueles dois questionamentos mencionados, atinentes aos casos difíceis. Esse juiz aceita as concepções básicas sobre a necessidade de se seguir um precedente judicial antes firmado pelos outros juízes e tribunais, utilizando-o numa situação assemelhada, bem como o fato de a lei ter o poder de criar e extinguir direitos jurídicos. É compreensível a crítica de Waldron, pois mesmo sendo o juiz Hércules um ideal, algo como o “legislador Hércules” sequer é admitido na filosofia política contemporânea. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p, 164-166.
[3] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[4] WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999.
[5] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p, 5.
[6] Idem. p, 40-41.
[7] MAQUIAVEL. Discourses on Livy. livro 1, cap 6, 16. Apud WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p, 41.
[8] Idem. p, 159-160.
[9] Idem.p, 166.
[10] WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999. p, 11.
[11] “All of this assumes that people sometimes or often vote their considered and impartial opinions when they are addressing controversial issues of justice and rights; it assumes, as I said, that their votes and opinions are not always the reflex of their interests. The relation between opinions and interests is a complex one. I believe, however, that is true that true empirically that citizens and representatives often do vote on the basis of good faith and relatively impartial opinions about justice, rights, and the common good.” Idem. p, 14.
[12] Idem. p, 15.
[13] “Now, if participation is the right of rights, it looks as though the right to religious freedom is going to have to give way, in cases like this, in order to vindicate the right of participation. In this chapter, however, I shall argue that talk of conflict of rights is inappropriate in this sort of case. I shall argue that the special role of participation in a theory of rights is not a matter of its having moral priority over other rights. Instead it is the upshot of the fact that participation is a right whose exercise seems peculiarly appropriate in situations where reasonable right-bearers disagree about what rights they have”. Idem. p, 232.
[14] Idem.p, 235-236.