AUTORITARISMO MASCARADO

setembro 14, 2013 — Deixe um comentário
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Máscara que retrata Guy Fawkes, a partir do traço de David Lloyd em “V de Vingança”, de Alan Moore.

Como se sabe, nesta semana foi sancionado Projeto de Lei nº 2405/2013 do Estado do Rio de Janeiro através do qual há a proibição de uso de máscaras por parte dos manifestantes de rua, sob o argumento de que a Constituição veda o anonimato. A finalidade mais evidente e declarada para tal proibição é facilitar a identificação daqueles pseudo manifestantes infiltrados nas multidões que, criminosamente, buscam se utilizar do direito de reunião alheio para praticar delitos contra o patrimônio ou, até mesmo, contra a integridade física.

O presente post tem por finalidade sustentar a inconstitucionalidade de tal Lei[1] e, mais que isso, demonstrar como a vedação ao anonimato foi utilizada como um argumento mascarado de autoritarismo. Vamos à introdução necessária.

A Constituição Federal de 1988, no art. 5º, inciso IV, aponta que é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. A razão de ser de tal vedação é clara: possibilitar a responsabilização daqueles que, a pretexto de se expressarem, violam direito alheio. Sabendo que a própria Constituição impõe como limite à liberdade de expressão o respeito à imagem e à honra (art. 5º, inciso X), nada mais justo que a previsão de meios para se identificar quem viola tais direitos.

A liberdade de reunião, por outro lado, está prevista no art. 5º, inciso XVI, prescrevendo que todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.

As manifestações de rua dos últimos tempos demonstram uma clara concorrência de direitos fundamentais[2]: os manifestantes tem sobre si a proteção do direito de reunião em si e também da liberdade de expressão, especialmente aqueles que, de acordo com suas convicções, entendem conveniente se reunirem usando uma máscara do personagem narrado por Alan Moore no “V de Vingança”. Pode-se gostar ou não de tais formas de expressão mascaradas, mas elas, em si, não afrontam qualquer direito alheio.

Eis o primeiro argumento: pressupor que algum manifestante mascarado, necessariamente, vai praticar delitos é uma presunção altamente contestável. O sujeito pode usar uma máscara somente porque, cansado de diversos políticos que mostram a cara (mesmo que seja uma cara mascarada, se é que me entendem) e estão pouco preocupados com o mandato que adquiriram do povo, melhor é manter-se anônimo. Evidentemente que tal linha de raciocínio pode ser criticada, mas ela, por si só, repita-se, não viola a honra e imagem de ninguém, muito menos o patrimônio e a integridade física.

Quem se reúne para fazer baderna, normalmente, usa máscaras, mas nem todos que as usam são baderneiros. Como solucionar a equação? Certamente não pelo caminho falacioso do “justo paga pelo pecador”. Ora, estamos falando de uma restrição a dois direitos fundamentais: a liberdade de expressão e de reunião. A carga argumentativa para justificar a restrição deve ser amplamente fundamentada, não podendo se basear unicamente numa premissa tão contestável como aquela vista cima.

Segundo argumento: o direito de reunião não comporta qualquer outra restrição que não aquelas previstas no próprio dispositivo constitucional, a saber: 1) caráter pacífico da reunião, a qual não pode conter armas; 2) prévio aviso à autoridade, somente para fins de organização e sem a necessidade de maiores formalidades.

É evidente que a Constituição deve ser lida sistematicamente e que a vedação ao anonimato está prevista naquele dispositivo que rege a liberdade de expressão. No entanto, tal vedação se refere especificamente a tal liberdade, não alcançando a liberdade de reunião. Nesse caso, o direito fundamental de reunião ganha prevalência sobre a liberdade de expressão, por ser menos restrito. A afirmação anterior se justifica ainda mais porque tal concorrência de direitos fundamentais é daquelas que a doutrina qualifica como autênticas, sendo assim chamadas porque não se pode estabelecer uma relação de especialidade entre os direitos envolvidos. Sobre o tema, Bodo Pieroth e Bernard Schlink sustentam que:

Se uma conduta cair nos âmbitos de proteção de dois direitos de liberdade, entre os quais não se verifica qualquer relação de especialidade (o chamado concurso ideal), a proteção da conduta determina-se em conformidade com ambos os direitos fundamentais. Se o efeito de proteção de ambos os direitos fundamentais tiver forças diferentes, a dupla proteção significa que uma ingerência só está justificada se puder ser justificada também pelo direito fundamental de proteção mais forte.[3] (sem destaques)

O direito fundamental com proteção mais forte no caso concreto é a liberdade de reunião, já que não contempla a cláusula que veda o anonimato. Em outras palavras: em reuniões, os manifestantes têm direito ao anonimato.

Percebe-se, portanto, como a vedação ao anonimato foi utilizada de maneira sorrateira e autoritária para se tentar restringir de modo inconstitucional o direito de reunião e de expressão. É claro que se deve coibir a baderna e ação imbecil e criminosa de uma minoria, mas tal finalidade deve ser buscada com inteligência, nunca ao custo dos direitos fundamentais.


[1] Há outras inconstitucionalidades nela, como, por exemplo, a exigência de comunicação prévia da manifestação à polícia (a Constituição não prevê qualquer exigência específica neste sentido), mas elas não serão abordadas no texto.

[2] Canotilho cita como exemplo de concorrência de direitos fundamentais justamente a liberdade de expressão com a liberdade de reunião: “Uma das formas de concorrência de direitos é, precisamente, aquele que resulta do cruzamento de direitos fundamentais: o mesmo comportamento de um titular é incluído no âmbito de proteção de vários direitos, liberdade e garantias. O conteúdo destes direitos tem, em certa medida e em certos sectores limitados, uma cobertura normativa igual. Exemplifiquemos: o direito de expressão e informação (art. 37º) está em contacto com a liberdade de imprensa (art. 38º), com o direito de antena (art. 40º) e com o direito de reunião e manifestação (art. 45º). Da mesma forma, o direito de formação de partidos políticos (art. 51º) está em contacto com a liberdade de associação (art. 46º) e com a liberdade de expressão e informação (art. 37º). (sem destaques no original). CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7a ed. Coimbra: Editora Almedina, 2003. p, 1268.

[3]PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. Tradução: Antônio Francisco de Sousa e Antônio Franco. São Paulo: Saraiva, 2012. p, 120. Percebe-se que os autores, no trecho transcrito, também analisam a segunda hipótese de concorrência proposta, apontando a mesma solução que Canotilho: prevalência do direito fundamental que tem a proteção mais forte.

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