FEDERALISMO E PONDERAÇÃO: O CASO DO AMIANTO

julho 14, 2013 — Deixe um comentário

A evolução das tipologias de Estado coloca em comparação a forma unitária e federal, sendo esta, como se sabe, a forma adotada pelo Estado brasileiro desde 15 de novembro de 1889 através do Decreto nº 1, posteriormente confirmado na primeira Constituição republicana, datada de 1891. Na forma federal, especialmente destinada para amparar Estados com grandes territórios e certas diferenças culturais entre seus povos, busca-se proteger os direitos fundamentais destes através de complexos sistemas de distribuição de competência entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

O federalismo clássico, na forma como concebida pelos federalistas norte-americanos, estabelecia uma estanque e dualista distribuição de funções entre a União e os Estados, não prevendo maiores regras cooperativas entre eles. O modelo brasileiro, por sua vez, consagra o federalismo cooperativo, compreendido como aquele que, a partir do reconhecimento de competências comuns e concorrentes, persegue-se uma atuação conjunta e coordenada entre aqueles entes, seja a partir de uma legislação suplementar dos Estados e Municípios em face de legislação geral da União ou a partir da atuação administrativa comum desses entres em prol, por exemplo, da proteção do meio ambiente.

O terreno, portanto, é fértil para sobreposições, havendo mesmo a necessidade de leis complementares disciplinarem a atuação de cada unidade da federação tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. Mesmo com elas, no entanto, é forte a possibilidade de conflito federativo, seja na seara administrativa ou mesmo legislativa.

No sistema de divisão de competências legislativas concorrentes, cabe à União a edição de leis gerais, podendo os demais entes suplementá-las ou, ante a inexistência daquelas normas gerais, legislar plenamente. Havendo lei geral, no entanto, a suplementação deve se ater somente a questões específicas, de acordo com os interesses regionais e locais de Estados e Municípios, respectivamente.

Nesse sentido, indaga-se: é admissível que uma lei estadual ou municipal vá contra uma lei geral federal, caso aquelas protejam mais efetivamente os direitos fundamentais? Eis uma questão interessante envolvendo ponderação e federalismo, analisada pelo Supremo Tribunal Federal, por exemplo, nos casos envolvendo a utilização de amianto.

De acordo com a definição constante no sítio eletrônico do Instituto Nacional do Câncer (INCA), tem-se que:

“Amianto (latim) ou asbesto (grego) são nomes genéricos de uma família de minérios encontrados profusamente na natureza e muito utilizados pelo setor industrial no último século.

 As rochas de amianto se dividem em dois grupos: as serpentinas e os anfibólios. As serpentinas têm como principal variedade a crisotila ou “amianto branco”, que apresenta fibras curvas e maleáveis. Os anfibólios, que representam menos de 5% de todo o amianto explorado e consumido no mundo, estão banidos da maior parte do planeta”.[1] (destaques no original)

Apesar do grande número de estudos apontando que quaisquer modalidades de amianto são nocivos à saúde humana, a lei federal nº 9.055/95 admite a utilização do amianto na modalidade crisotila. Leis estaduais, como, por exemplo, a Lei nº 11.643/2001 do Estado do Rio Grande do Sul, proíbe totalmente a utilização de tal substância, inclusive na variante crisotila. O Estado do Rio Grande do Sul agiu de modo inconstitucional, editando uma norma geral, de competência, portanto, da União?

De acordo com a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal nas ADI´s 2396 e 2656, sim. O raciocínio era formal e simples: no âmbito da proteção à saúde e ao meio ambiente, temas caros à exploração do amianto, especialmente no tocante aos trabalhadores envolvidos em tais empresas, o pacto federativo brasileiro determinava que normas gerais seriam editadas pela União, cabendo aos Estados, como visto, somente suplementá-las de acordo com suas peculiaridades. Ao proibir totalmente a utilização do amianto, leis estaduais iriam completamente de encontro à norma geral federal, sendo aquelas, portanto, formalmente inconstitucionais. Não se analisava, portanto, se os dispositivos estaduais estavam em mais sintonia com os direitos fundamentais consagrados na Constituição.

Essa postura é classicamente adotada pela Corte quando da análise da iniciativa de leis com o regime de repartição de competências fixado na Constituição. Trata-se de uma análise estritamente formal, independentemente do conteúdo de tais dispositivos. Tal modo de agir não deixa de causar certos constrangimentos, como confessado pelo Ministro Carlos Ayres Britto quando da declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 1.314/2004 do Estado de Rondônia, a qual impunha às empresa de construção civil, com obras no Estado, a obrigação de fornecer leite, café e pão com manteiga aos trabalhadores que comparecessem com antecedência mínima de quinze minutos ao seu primeiro turno de trabalho (ADI 3251). O fundamento foi formal: violação à competência privativa da União de legislar sobre direito do trabalho (art. 22, I da Constituição). Nem sequer se discutiu se a norma estadual visaria à melhoria da condição social do trabalhador, nos termos do art. 7º da Constituição.

Tal jurisprudência pode sofrer alteração dramática com o término do julgamento da ADI nº 3.357, proposta contra a referida Lei nº Lei nº 11.643/2001 do Estado do Rio Grande do Sul. Nesse caso, há voto do Ministro Ayres Britto apontando a prevalência da lei estadual em face da federal, pois aquela, no seu entendimento, protegeria muito mais o direito à saúde e ao meio ambiente equilibrado do que a mencionada Lei federal nº 9.055/95.

É certo que um dos fundamentos marcantes para tal tese é o status supralegal da Convenção 162 da Organização Internacional do Trabalho, a qual concita os Estados partes a, progressivamente, excluírem de suas legislações qualquer uso do amianto, em face de seus comprovados malefícios para a vida humana. Tendo tal qualidade supralegal, como se sabe, a Lei Federal estaria em confronto com a Convenção, fazendo com que, após o controle de convencionalidade, a Lei Federal restasse inaplicável. É igualmente incontroverso, no entanto, que este não foi o único fundamento utilizado no voto ora em comento, servindo, na verdade, como reforço para a tese central lá defendida: a de que, em confrontos de leis federais e estaduais envolvendo direitos fundamentais, deve-se dar prevalência àquela que mais os promovam.[2]

É evidente que tal ponderação envolve todos os riscos de subjetivismos tão conhecidos e propagados pelos seus críticos, os quais podem ser superados pela argumentação jurídica rigorosa através do princípio da proporcionalidade. A federação brasileira sairia fortalecida se a tese do Ministro Britto restasse vencedora (hoje o caso se encontra empatado com voto divergente, como de costume, do Ministro Marco Aurélio[3]), pois não se vedaria, através de mera análise formal, a criatividade das demais entidades da federação no desenvolvimento dos direitos fundamentais.

No dia em que as instituições federais reconhecerem que uma lei estadual é mais avançada que uma lei federal em matéria de proteção de direitos fundamentais e efetivar a alteração desta, quem sai ganhando é a federação. Cabe ao STF, portanto, propiciar essa autocrítica, não vedando, pura, simples e formalmente, o papel criador dos Estados e Municípios.


[1] Disponível em: http://www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?id=15. Acessado em: 14/07/2013.

[2] O seguinte trecho do Voto é elucidativo: “Mas cogitando-se dos bens jurídicos aqui especificamente versados, parece-nos claro que eventual colisão normativa há de ser compreendida em termos de proteção e defesa; isto é, o exame das duas tipologias de leis passa pela aferição do maior ou menor teor de favorecimento de tais bens ou pela verificação de algo também passível de ocorrer: as normas suplementares de matriz federativamente periférica a veicular as sobreditas proteção e defesa, enquanto a norma geral de fonte legislativa federal, traindo sua destinação constitucional, deixa de fazê-lo. Ou, se não deixa totalmente de fazê-lo, labora em nítida insuficiência protetiva e de defesa”. (destaques no original). O voto pode ser acessado aqui.

[3] O qual também pode ser lido aqui.

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