AS RUAS E O PODER JUDICIÁRIO – O POVO LEGITIMANTE DE FRIEDRICH MÜLLER

junho 30, 2013 — Deixe um comentário

É difícil fazer qualquer análise sobre as recentes, empolgantes e, em alguns casos, violentas manifestações populares que tem ocorrido em nosso País nas últimas semanas. Pelo que se pode perceber do noticiário, a insatisfação geral aparenta ser com o sistema político, o qual há muito tempo apresenta crise de representatividade, bem como com os serviços públicos, notadamente os de transporte. Educação, saúde e controle do gasto público com as gastanças da Copa do Mundo também pautam a irresignação da ampla maioria dos brasileiros.

O presente post busca analisar, levando em conta toda a dificuldade correspondente ao caráter extremamente recente das manifestações, a agenda dos manifestantes sobre o Poder Judiciário. Para tanto, partir-se-á da legitimidade que o povo atribui a tal poder não eleito: trata-se da análise do povo como instância global de atribuição de legitimidade, ou povo legitimante, na formulação de Friedrich Müller.

Pelo que se vê na TV e se lê nos jornais, a insatisfação popular como Poder Judiciário se centra, mais fortemente, na impunidade. É evidente que diversos aspectos fora do controle dos Juízes contribuem para tal estado de coisas, como, por exemplo, a fixação em abstrato de penas brandas que levam à prescrição, a existência de presídios que privam os apenados de sua dignidade (além da liberdade) ou a existência de um Código de Processo Penal ultrapassado, com a previsão de recursos e demais ações que podem protelar formidavelmente a tramitação de um feito. Tais problemas estão, em grande medida, longe do alcance dos magistrados: é uma tarefa do legislador aprimorar as leis e do administrador, precipuamente, tornar o sistema prisional mais humano.

Por outro lado, fixação em concreto de penas no mínimo legal, demora injustificada no julgamento de feitos e utilização de fundamentos ultragarantistas na valoração da prova (o Juiz do caso Lalau, por exemplo, chegou a absolvê-lo por falta de provas, tendo sua sentença sido reformada posteriormente), fazem com que alguns réus escapem de uma pena justa, o que, para o povo, afigura-se, corretamente, como inaceitável.

Qual a legitimidade de um poder que não tem seus membros eleitos pelo povo? Como o povo pode admitir ser alvo de prescrições emanadas por Juízes? Essas interessantes questões são abordadas na obra “Quem é o povo? A questão fundamental da democracia”[1], de Friedrich Müller.

Prof. Müller, na ESMEC, em Fortaleza (2009).

Para quem não sabe, Friedrich Müller é um dos grandes pensadores da Constituição ainda vivos, um alemão que faz questão de palestrar no Brasil falando português. A foto ao lado foi tirada após sua palestra sobre Direitos Humanos e Democracia na ESMEC, em Fortaleza. O autor da teoria normativo-estruturante, na obra acima citada, pesquisa diversas concepções de povo, a fim de entender o que faz a democracia um regime do povo, pelo povo e para o povo.

Concepções de povo ativo, de povo como ícone, de povo como destinatário de prestações do Estado ou de povo participante permeiam tal obra, sendo, no entanto, a concepção de povo como instância global de atribuição de legitimidade, o povo legitimante, que mais diz respeito à relação entre o povo e os Juízes.

Como se sabe, é lição básica a de que os Juízes não são eleitos, não retirando sua legitimidade a partir do voto popular, mas sim da fundamentação racional de suas decisões. O povo legitimante é aquele que, após eleger democraticamente seus representantes, admite que certas decisões que lhes atinjam sejam tomadas por um corpo de agentes públicos não escolhidos diretamente por eles. O povo, com tal postura, atribui legitimidade global ao sistema no momento em que não se revolta contra ele. Nesse sentido, é essencial ler o seguinte trecho do autor, nestes termos:

O povo não é apenas – de forma indireta – a fonte ativa da instituição de normas por meio de eleições bem como – de forma direta – por meio de referendos legislativos; ele é de qualquer modo destinatário das prescrições, em conexão com deveres, direitos e funções de proteção. E ele justifica esse ordenamento jurídico num sentido mais amplo como ordenamento democrático, à medida que o aceita globalmente, não se revoltando contra o mesmo.[2]

Eis o ponto central do debate: o povo, o qual já não tolerava há muito tempo a impunidade, ao ir para as ruas, revoltou-se e fez ruir por completo qualquer resquício de legitimação anteriormente atribuída por ele ao Poder Judiciário no ponto específico. Em outras palavras: há necessidade de nova legitimação do povo aos nossos juízes, repita-se, especialmente no que tange à impunidade.

E qual o papel do Poder Judiciário nesse novo processo de legitimação popular? De modo otimista, digo que nossos juízes já ouviram as vozes das ruas em outros momentos, quando, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou constitucional a Lei da Ficha Limpa. Mais recentemente, na última quarta-feira, o mesmo STF, pela primeira vez na história, expediu ordem de prisão contra o Deputado Federal Natan Donadon, condenado a 13 anos e 4 meses de prisão.

O cenário, portanto, não é caótico. A democracia se constrói em passos lentos, com idas e vindas, não se podendo admitir rupturas autoritárias. O povo nas ruas demonstra uma insatisfação legítima com temas como a impunidade, cabendo às instituições, como o STF, saber ouvir tais pleitos e, no âmbito de sua independência, dar respostas adequadas.

Sem dúvidas, o resultado final do julgamento do mensalão contribuirá para o andamento dessa nova legitimação popular do Poder Judiciário brasileiro.

[1] MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann. 6ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

[2] Idem. p, 55.

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