O blog não morreu! As últimas semanas têm sido intensas, com audiências, ações penais, improbidades administrativas e complexos temas ambientais em torno do Rio Piranhas-Assu e da Floresta Nacional do Assu, mas sempre que a PRM me permitir, estarei postando por aqui. Hoje, por exemplo, segue pequeno texto sobre a liberdade de expressão na visão de um dos mais ilustres teóricos do controle de constitucionalidade nos Estados Unidos, John Hart Ely, autor do clássico “Democracia e desconfiança – uma teoria do controle de constitucionalidade”.
O debate em torno da legitimidade democrática do controle de constitucionalidade polariza, como se sabe, posições ditas procedimentalistas e substancialistas. Através da primeira, o Poder Judiciário somente deveria invalidar uma lei quando esta colocasse em cheque procedimentos específicos para a democracia, como uma ofensa à livre circulação de ideias. A segunda concepção, por outro lado, admite o controle judicial de constitucionalidade não somente para a proteção de procedimentos, mas também ante a ofensa a valores substantivos ou direitos fundamentais não procedimentais previstos na Constituição.
Não é objeto do presente texto uma investigação específica sobre o tema. No entanto, dada a especial ligação da liberdade de expressão com a democracia, sua análise como parâmetro para o controle de constitucionalidade de atos emanados do Poder Legislativo se impõe na medida em que aquele direito justifica o controle de constitucionalidade tanto para procedimentalistas como para substancialistas. Essa vertente da liberdade de expressão, que a torna especialmente protegida, tem íntima relação com seu aspecto instrumental e sua relação com a democracia, com dito. Nesse sentido, a influente tese de John Hart Ely sobre a teoria do controle de constitucionalidade, lançada na clássica obra citada, servirá como referencial teórico para a análise do seguinte problema: a tese procedimentalista protege a liberdade de expressão unicamente em seu viés instrumental, a saber, aquele que abrange unicamente as expressões políticas?
Robert Dahl aponta que um regime político, para se classificar como realmente democrático, precisa acumular as seguintes instituições e direitos: 1) funcionários livres; 2) eleições livres, justas e frequentes; 3) liberdade de expressão; 4) fontes de informação diversificadas; 5) autonomia para as associações; 6) cidadania inclusiva.[1]
Tal sustentação da liberdade de expressão certamente impressiona autores como John Hart Ely, o qual, mesmo limitando o controle de constitucionalidade, defende a validade deste quando diante de ofensas à liberdade de expressão. O autor, na obra mencionada, busca superar o debate entre interpretativistas e não-interpretativistas na teoria constitucional norte-americana.
Tais posições são originárias do direito norte-americano, sendo decorrência direta do fato de aquele País apresentar uma única Constituição (pelo menos formalmente) durante toda sua história. Partindo-se dessa constatação, há aqueles que defendem uma posição não ativista, devendo o interprete constitucional buscar a intenção dos Pais Fundadores daquela nação. Essa é a posição interpretativista. O não-interpretativismo rechaça essa ideia, partindo, principalmente, da premissa que os valores cultuados há 200 anos, como a escravidão, não mais subsistem.
Para tanto, o autor parte da seguinte premissa: a natureza da Constituição dos Estados Unidos da América não é substantiva, mas sim procedimental. Com isso, o autor não quer dizer que não existam valores substantivos em seu texto, mas sim que eles não são predominantes. Como um dos poucos valores implícita e constrangedoramente protegidos na concepção original de tal documento tem-se, por exemplo, a escravidão.[2] Ora, em sendo correta tal premissa, por que deveria se admitir que juízes, não eleitos, impusessem seus valores morais sobre determinada legislação quando nem mesmo a Constituição, salvo raras exceções, o fez?[3]
Uma dessas exceções é, justamente, a proteção dada pela primeira emenda à Constituição norte-americana, na medida em que protege a liberdade de expressão ao vedar que o Congresso Nacional edite qualquer lei com intuito de restringir tal direito. Ely reconhece que, quando originariamente pensado pelos constituintes, tal direito seguia aquele viés estritamente instrumental, buscando a proteção somente da expressão política. Para ele, no entanto, a linguagem da emenda autoriza sua interpretação de modo a que a proteção não se limite unicamente àquele tipo de discurso.[4]
Em diversas passagens de sua obra, Ely critica decisões da Suprema Corte americana que, a pretexto de salvar a sociedade de um “perigo certo e iminente”, simplesmente aniquilou a liberdade de expressão de grupos comunistas nos Estados Unidos, unicamente em face de manifestações de opiniões tidas por ofensivas em tempos de crise, como durante o período entre as duas grandes guerras mundiais.[5]
Para o autor, o critério do “perigo certo e iminente” somente pode ser utilizado para se analisar não o conteúdo da mensagem veiculada, mas sim a forma como ela é exteriorizada. Dependo da maneira da expressão, assim, a liberdade pode ser limitada, se diante de um possível perigo real e iminente. É o caso de se negar proteção, por exemplo, a um carro de som veiculando propaganda eleitoral nas proximidades de um hospital.[6] Perceba-se que, em situações como esta, o problema não é o conteúdo da mensagem, mas sim como ela é exteriorizada.
Nesse sentido, é possível concluir que o procedimentalismo, no viés aqui exposto, promove uma adequada proteção da liberdade de expressão, não se contentando com a dimensão meramente instrumental dela.[7]
[1] DAHL, Robert. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Editoria Universidade de Brasília, 2009. p, 99. Os elementos propostos compõem o famoso conceito de poliarquia desenvolvido pelo autor, o qual pode ser objeto de crítica no tocante à quase completa falta de preocupação com direitos sociais. A tímida referência à cidadania inclusiva não afasta tal crítica, consistindo tal definição, na verdade, num conceito de democracia liberal. Sobre a liberdade de expressão, o autor aponta que ela é necessária para a democracia pelas seguintes razões:
“Para começar, a liberdade de expressão é requisito para que os cidadãos realmente participem da vida política. Como poderão eles tornar conhecidos seus pontos de vista e persuadir seus camaradas e seus representantes a adotá-los, a não ser expressando-se livremente sobre todas as questões relacionadas à conduta do governo? Se tiverem de levar em conta as ideias de outros, será preciso escutar o que esses outros tenham a dizer. A livre expressão não significa apenas ter o direito de ser ouvido, mas ter também o direito de ouvir o que os outros têm a dizer.
Para adquirir uma compreensão esclarecida de possíveis atos e políticas do governo, também preciso a liberdade de expressão. Para adquirir a competência cívica, os cidadãos precisam de oportunidades para expressar seus pontos de vista, aprender uns com os outros, discutir e deliberar, ler, escutar e questionar especialistas, candidatos políticos e pessoas em cujas opiniões confiem – e aprender de outras maneiras que dependem da liberdade de expressão.
Por fim, sem a liberdade de expressão, os cidadãos logo perderiam sua capacidade de influenciar o programa de planejamento das decisões de governo. Cidadãos silenciosos podem ser perfeitos para um governante autoritário, mas seriam desastrosos para uma democracia. (destaques no original)”
[2] ELY, John Hart. Democracia e desconfiança – uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. Tradução de Juliana Lemos. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p, 131.
[3] Cass Sunstein classifica como insincera com a estrutura constitucional original ou com o direito atual norte-americano essa abordagem de John Hart Ely. Como não é objeto deste ponto a compatibilidade da tese do autor com a ordem constitucional americana, tal problematização não será enfrentada. SUNSTEIN, Cass. R. A Constituição parcial. Tradução de Manassés Teixeira Martins e Rafael Tringinelli. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p, 33, nota de rodapé nº 23.
[4] Idem. p, 124.
[5] Caso Schenck x United States, 249 U.S 47 (1919). Idem. p, 143.
[6] Idem. p, 147-148.
[7] Não se pode, no entanto, esquecer da advertência de Lenio Streck a respeito da adoção automática de tais teses procedimentalistas no direito brasileiro. O autor, partindo da análise da teoria de Habermas, entende que tal concepção é completamente inadequada para Países como o Brasil, de modernidade tardia e que apresentam, nas suas respectivas Constituições, um rol de direitos sociais a serem efetivados pelos Poderes Públicos. Na medida em que se admite a possibilidade de o Poder Judiciário, diante da omissão dos demais poderes, concretizar tais direitos, deve-se reconhecer a insuficiência das teses procedimentalistas. Veja-se que a premissa adotada por John Hart Ely, no sentido de a Constituição norte americana não apresentar valores substantivos, é completamente inadequada à realidade brasileira, como visto, repita-se, a partir da consagração de direitos sociais. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso – Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012. p, 86.