Uma interessante e poderosa faceta do direito fundamental à reunião é aquela cujo exercício apresenta finalidades políticas. Ontem Brasília presenciou uma manifestação nesse sentido, a partir da grande mobilização nacional contra essa excrescência que é a PEC-37.
Muito já foi escrito e debatido sobre esse projeto de emenda constitucional e como ele não se sustenta sob a perspectiva constitucional. Os frágeis argumentos de seus defensores podem ser vistos, por exemplo, no debate entre a Dra. Janice Ascari (Procuradora Regional da República na 3ª Região) e o Dr. Carlos Eduardo Miguel Sobral (Delegado de Polícia Federal), no programa Entre Aspas, na Globo News, o qual pode ser visto aqui. Faço questão de relembrar esse debate em especial porque a Dra. Janice, de modo extremamente elegante, simplesmente massacrou argumentativamente seu interlocutor. Seguindo a ética do discurso, quando um dos debatedores não encontra argumentos contrários ao seu ponto de vista, após refletir sobre o tema, certamente é o caso de ele repensar sua tese inicial. Insistir, deliberadamente, no erro é uma brutal desonestidade intelectual.
Mas o presente post não pretende analisar a PEC-37. Muito mais que teorizar sobre o tema, este texto busca demonstrar como o engajamento político – não partidário, no caso do Ministério Público (MP), por expressa vedação constitucional – é essencial para as transformações políticas. No caso ora em exame, tal mecanismo de participação somente foi possível a partir do direito fundamental à reunião.
O direito de reunião, como se sabe, é uma das liberdades mais intimamente ligadas à democracia, e o modo que se exercita e se regulamenta tal direito diz muito sobre a maturidade institucional de cada país. Nossa Constituição já coloca diversas restrições diretamente a tal direito, quando, no art. 5º, inciso XVI, garante a prerrogativa de todos se reunirem, pacificamente e sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de prévia autorização, desde que não se frustre outra reunião previamente marcada.
Percebe-se, assim, como o direito de reunião pode ser utilizado para as mais variadas finalidades, todas lícitas e merecedoras de proteção constitucional. Um grupo em praça pública que assiste, por exemplo, à apresentação de artistas de rua usa seu direito de reunião para fins culturais. A mobilização nacional contra a PEC-37, por outro lado, tem um nítido intuito político: impedir a aprovação desse projeto a partir da tentativa de convencimento dos parlamentares.
Ontem eu me senti parte de uma grande engrenagem. Um pequeno apêndice num grande plano que interessa à sociedade brasileira como um todo. Não tenho dúvidas que tal sensação pode ser também atribuída a todos os colegas que estavam presentes nessa manifestação. Essa sensação é fruto do exercício da cidadania em seu estado puro: com o exercício da minha (e da nossa) liberdade de reunião, os membros do Ministério Público brasileiro tentaram, de acordo com as regras democráticas, impedir que o Congresso Nacional cometesse um de seus maiores erros na história da República.
Pode parecer inocente ou ingênuo, mas ainda acredito no poder do convencimento racional, a partir do livre debate de ideias e das manifestações públicas, mesmo que o público alvo seja um parlamentar. É nesse campo de luta que o cidadão, ao não se furtar de desempenhar uma atuação ativa, indo às ruas de modo efetivo, mais se aproxima do poder.
Para todos aqueles que estão nas carreiras de Estado, há uma tentação imensa e cada vez mais crescente no sentido da acomodação. Fala-se, escreve-se e se critica muito, mas lutar ativamente pelos direitos, não. Em relação à PEC-37, no entanto, o Ministério Público tem ido muito além. Nesse sentido, é motivo de orgulho a tentativa largamente empreendida por essa instituição de, através de legítimos mecanismos de pressão, manter seu poder investigatório.
A sociedade não pode cair na armadilha de pensar que tal luta é corporativa e não lhe interessa. Os poderes constituídos apresentam certas demandas que compõem uma verdadeira agenda comum entre o Estado e a sociedade. Quando o Poder Judiciário, por exemplo, pleiteia mais garantias específicas para a proteção de juízes ameaçados, essa nova prerrogativa não interessa somente aos magistrados. Toda a sociedade tem interesse em não ter juízes amedrontados.
No mesmo sentido, quando o Ministério Público sustenta a manutenção de seu poder investigatório, é a sociedade brasileira quem ganha, pois sabe que pode confiar num órgão independente para levar a cabo a investigação e o posterior processamento daqueles que violam nossos mais importantes bens e valores.
Uma mega reunião é suficiente para alcançar uma finalidade política tão sensível como impedir a aprovação de uma emenda constitucional?
Se nossos parlamentares fossem mais sensíveis às demandas sociais, formando seu convencimento político a partir de ideias e não de mera politicagem, não teria dúvidas em dizer um “sim” efusivo. No entanto, também não respondo com um sonoro “não”. Levando em conta as diversas manifestações da opinião pública, (também da publicada), e demais atos do Ministério Público espalhados por todo o País, é possível acreditar na não aprovação daquele texto. A situação já esteve pior.
Numa democracia se luta com as armas legitimamente postas.[1] A solidariedade ínsita ao direito de reunião, no melhor estilo “a união faz a força” consubstancia um poder formidável do cidadão ativo, a saber, daquele que busca seus direitos na “raça”, ganhando o jogo “na bola”.
Muito melhor que escrever teorizações sobre o direito de reunião é senti-lo. Nesta quarta-feira, como mencionei antes, senti-me um pequeno componente num plano grandioso. Plano que demonstra como certas lutas valem a pena.
Caso a PEC-37 seja aprovada, o Poder Legislativo não terá motivos de orgulho. Interessa a todos os parlamentares serem os cultores da impunidade?
[1] Não vamos ser hipócritas: para um grande número de invisíveis, a saber, minorias historicamente estigmatizadas e excluídas, a democracia (não só a brasileira) ainda não chegou efetivamente, levando em conta sua acepção material. Para estes grupos, é difícil jogar o jogo sem cometer algumas faltas. Tal situação, evidentemente, não é a do MP.
Emanuel, excelente seu texto! Vc tocou num ponto essencial para o entendimento da questão, qual seja, o embate propiciado por essa PEC 37 não é corporativista (muito embora seja essa a impressão que se passa com as discurssões que têm sido ventiladas). Na verdade, o embate é da aludida PEC com a sociedade, que só perderá na eventual aprovação desse ‘absurdo democrático’.
Estou com uma idéia de conclamar os colegas, sobretudo os que entraram no MPF conosco, a redigir uma espécie de manifesto de repúdio à PEC 37. Tal manifesto abordaria vários aspectos, inclusive os jurídicos, mas seu enfoque seria o direcionamento à sociedade. Utilizariamos as redes sociais. Vc topa?
Abção!
Camões
Sem dúvidas, meu caro!!!!!!