Tenho notado que diversos estudantes de Direito tem consultado o blog, de modo que esta postagem se destina àqueles que estão estudando o bê-a-bá jurídico. Seu objetivo básico é diferenciar as expressões acima postas, apontando a relação de gênero e espécie entre a jurisdição constitucional e o controle de constitucionalidade. Além disso, a postagem serve para inserir no blog o ponto central de suas reflexões, qual seja, a relação, nem sempre amistosa, entre o controle de constitucionalidade e a democracia. O texto parte das ideias de Kelsen, tendo-se optado por estudar as teses de seu oponente Carl Schmitt, autor do clássico “O guardião da Constituição”, em outro momento.
Sabe-se que a função jurisdicional do Estado caracteriza-se por ter como finalidade solucionar conflitos, substituindo as partes litigantes, mediante a provocação destas, aplicando o direito à espécie e estabilizando definitivamente as relações sociais através de uma decisão que, num certo momento, tornar-se-á imutável.[1] Essa conceituação abarca as clássicas características da jurisdição, como a substitutividade, a lide, a inércia, o escopo jurídico da aplicação do direito e a definitividade.
Com o desenvolvimento das relações humanas, notadamente após a Segunda Guerra Mundial, a aplicação da Constituição ganha contornos mais significativos, a ponto de se qualificar como jurisdição constitucional a função estatal voltada especificamente para a aplicação das normas constitucionais. Diga-se, no entanto, que mesmo antes do citado evento histórico, a jurisdição constitucional já ocupava os estudos de doutrinadores do quilate de Kelsen, apontado como seu criador, tendo em vista, principalmente, os estudos por ele desenvolvidos para a confecção da Constituição austríaca de 1920.
Inserindo a jurisdição constitucional como a forma mais propícia para a garantia da Constituição, Kelsen, no clássico “Jurisdição constitucional”[2], aborda a natureza superior da Constituição; sua rigidez; as questões em torno dos conceitos de legalidade e de inconstitucionalidade; a sanção aplicável à lei inconstitucional; a conveniência de um controle dos atos legislativos por um órgão fora desse poder; as linhas gerais em torno da composição das Cortes Constitucionais; o parâmetro e o objeto do controle de constitucionalidade; o processo do controle de constitucionalidade e os significados jurídicos e políticos da jurisdição constitucional. Percebe-se, portanto, como a referida obra clássica pautou (e ainda pauta) muitos dos debates sobre jurisdição constitucional e controle de constitucionalidade, pois seus conceitos básicos estão lá lançados.
A caracterização da jurisdição constitucional pode ser feita sob o aspecto formal ou material.
Sob o aspecto formal, a jurisdição constitucional é definida a partir do órgão que a exerce, ou seja, a partir das funções das Cortes Constitucionais ou das Supremas Cortes. Essa é a caracterização clássica da jurisdição constitucional, que deve, no entanto, ser adequadamente entendida, notadamente levando-se em conta as particularidades de cada ordem constitucional, em especial a brasileira.
Em suas origens históricas, partindo-se da já referida obra de Kelsen e da Constituição austríaca de 1920, a jurisdição constitucional era voltada, exclusivamente, para o controle de constitucionalidade. E mais: ao controle abstrato. Pode-se atribuir a essa origem as posteriores vacilações e confusões terminológicas daqueles que tratam como sinônimas as expressões controle de constitucionalidade e jurisdição constitucional.
O aspecto material, por outro lado, caracteriza a jurisdição constitucional a partir da aplicação das normas constitucionais para a solução das questões postas perante o Poder Judiciário, seja qual for o órgão que execute essa função.
Analisando sob outro aspecto, a jurisdição constitucional pode ser entendida em sentido amplo e estrito.
Em sentido amplo, ela compreende as diversas competências típicas das Cortes Constitucionais, como as atinentes: 1) ao controle de constitucionalidade; 2) ao julgamento de conflitos de competência entre certos órgãos de cúpula, previstos constitucionalmente; 3) à atuação como “Tribunal da Federação”, ao atuar perante os litígios envolvendo os entes políticos, como nas causas entre União e Estados-Membros; 4) à persecução penal dos ocupantes de certos cargos, como se tem com a responsabilização penal de Deputados ou Senadores; 5) à tutela dos direitos fundamentais; 6) à legitimidade de partidos políticos.
Em sentido estrito, por outro lado, a jurisdição constitucional confunde-se com o controle de constitucionalidade, sendo este, portanto, uma espécie do gênero jurisdição constitucional.[3] Com o surgimento de diversas normas constitucionais voltadas não só para a declaração de direitos, mas também para a proteção e concretização dos mesmos, com a criação de diversas ações tipicamente constitucionais, tem-se uma nova caracterização da jurisdição constitucional como função apta, por exemplo, para a defesa dos direitos fundamentais.
Nesse sentido, o adequado entendimento do tema leva à conclusão de que, no Brasil, a caracterização da jurisdição constitucional sob o aspecto meramente formal é inadequada, pois todo juiz pode aplicar a Constituição, notadamente levando-se em conta o controle difuso de constitucionalidade.[4]
Em síntese, pode-se concluir: a jurisdição constitucional pode ser compreendida em um aspecto formal e material; amplo e estrito. No aspecto formal, a importância maior é atribuída ao sujeito que exerce a jurisdição, enquanto no aspecto material basta o exercício em si da função de aplicar diretamente a Constituição. No aspecto amplo, a jurisdição constitucional abarca todas as competências constitucionalmente previstas para a atuação da Corte Constitucional, desde que diga respeito à aplicação da Constituição. No aspecto estrito, diz respeito somente ao controle de constitucionalidade. No Brasil, com a previsão do controle difuso de constitucionalidade, é correto dizer que a jurisdição constitucional (aspecto estrito e material) é exercida por qualquer juiz.
Esse controle, como se sabe, consiste em analisar a compatibilidade de uma lei ou outro ato normativo primário com a Constituição, invalidando-os, caso necessário. Essa atividade coloca, às vezes, a jurisdição constitucional em tensão com a democracia. Mas isso é tema para outro post.
[1] Na clássica conceituação de Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, tem-se que: “Da jurisdição, já delineada e em sua finalidade fundamental no cap. 2, podemos dizer que é uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça”. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p, 139. José Alfredo de Oliveira Baracho, por outro lado, enfatiza o caráter soberano da jurisdição, pois, quando o Estado a exerce, tem-se a manifestação da soberania deste: “A jurisdição é a função de declarar o direito aplicável aos fatos, bem como é causa final e específica da atividade do judiciário. Incumbindo de garantir à sociedade um ordenamento jurídico, ao exercer a atividade jurisdicional está o Estado manifestando a soberania que lhe é inerente. Muitos autores definem a jurisdição como função da soberania do Estado, que se consubstancia no poder de declarar o direito aplicável aos casos concretos.” BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p, 75.
[2] KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. Introdução e revisão técnica de Sérgio Sérvulo da Cunha. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p, 121-187.
[3] Nesse sentido, Cappelletti assenta, no início de seu clássico estudo comparado sobre o controle de constitucionalidade, que: “Na verdade, parece oportuno precisar, desde agora, que o tema do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis não pode, certamente, identificar-se com a jurisdição ou a justiça constitucional, a Verfassungsgerichtsbarkeit dos alemães. Ele, ao contrário, não representa senão um dos vários possíveis aspectos da assim chamada “justiça constitucional”, e, não obstante, um dos aspectos certamente mais importantes. (…) Não pretendo tratar, aqui, de outras manifestações da justiça constitucional, diversas do controle de constitucionalidade das leis: como, por exemplo, de todas aquelas manifestações que se concentram no Bundesverfassungsgericght, isto é, no Tribunal Constitucional Federal alemão, a saber, o controle sobre legitimidade constitucional dos partidos políticos, o julgamento das acusações do Bundestag ou do Bundesrat ou do Bundes-präsident, etc. (…)”. CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2ª ed. Porto Alegre: Safe, 1999. p, 23-26.
[4] Nesse mesmo sentido se manifesta Teori Zavascki: “Qualquer que seja o modo como se apresenta o fenômeno da inconstitucionalidade ou o seu agente causador, ele está sujeito a controle pelo Poder Judiciário. A atuação desse Poder do Estado na interpretação e aplicação da Constituição constitui o que se denomina jurisdição constitucional. É atividade que não se restringe, portanto, ao controle de constitucionalidade das leis e nem é exercida apenas pelo Supremo Tribunal Federal. Ela congrega todos os órgãos do Poder Judiciário e compreende o conjunto das atribuições jurisdicionais que digam respeito à salvaguarda e à efetividade das normas constitucionais.” ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p, 14.
Muito esclarecedor o texto. Grato.