Semana passada, através de uma rápida troca de e-mails com a Dra. Deborah Duprat, pedi a ela que, se possível, fizesse a leitura de um artigo intitulado “O reconhecimento do direito à terra dos quilombolas a partir do multiculturalismo dos direitos humanos” e, caso ele parecesse satisfatório, que se publicasse no sítio eletrônico da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão. Ela, gentilmente, elogiou o texto e, no dia seguinte, já constava naquele meio eletrônico, mais especificamente aqui. Novamente, eu me senti acolhido, em face do livre convencimento de ideias, por essa instituição que cada vez mais admiro.
Evidentemente que aquele texto não apresentada nada de muito novo, tendo como referenciais, dentre outros, textos de Daniel Sarmento e Walter Claudius Rothenburg, esses sim Mestres no assunto. De todo modo, busquei sintetizar a concepção multicultural dos direitos humanos de Boaventura de Sousa Santos, partindo-se da hermenêutica diatópica por ele proposta como caminho, a partir da auto-atribuição, para se alcançar um diálogo intercultural. É precisamente sobre esse tema que se desenvolve o presente post.
É conhecido o texto básico daquele autor sobre o tema, intitulado “Uma concepção multicultural de direitos humanos”, através do qual ele busca superar os entraves entre relativismo e universalismo dos direitos humanos partindo da seguinte indagação: levando em conta o vácuo deixado pelo socialismo, no caminho para a emancipação do ser humano, seria possível a utilização dos direitos humanos como ferramenta para se alcançar tal fim? Sua resposta é um “sim muito condicional”.[1]
No mencionado estudo, o autor, inicialmente, desenvolve suas ideias sobre globalização, seguindo na sustentação sobre as condições e possibilidades dos direitos humanos enquanto guias emancipatórios, finalizando com a construção de uma hermenêutica voltada para o multiculturalismo, a hermenêutica diatópica. O desenvolvimento do trabalho parte do reconhecimento de três tensões dialéticas vividas no mundo contemporâneo: 1) o confronto entre regulação e emancipação social; 2) entre sociedade civil e Estado; 3) entre o Estado-nação e a globalização. As questões culturais envolvendo os direitos humanos são intensificadas no contexto da globalização, razão pela qual o autor aprofunda suas ideias a partir da análise desse fenômeno.[2]
Analisando criticamente o início de seu texto, já é possível perceber a riqueza do mesmo no que tange a essa análise sobre a globalização. Boaventura não se limita a fazer um estudo de tal fenômeno unicamente sobre o prisma econômico, voltado para a transnacionalização da economia e do mercado financeiro, como normalmente ocorre. O autor não se contenta com essa ideia, partindo para uma análise da globalização sobre o prisma social, político e cultural. Para o autor, não existe uma única globalização, mas sim diversas formas de globalização, a justificar a leitura da expressão no plural.
Procurando defini-la, tem-se a globalização como “processo pelo qual determinada condição ou entidade local consegue estender a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival”.[3] Há uma relação, assim, entre localização e globalização, no sentido de que, por exemplo, a globalização do fast food americano leva, necessariamente, à localização da feijoada brasileira, a ponto de torná-la cada vez mais um particularismo da nossa cultura.
A globalização não é, necessariamente, uma forma de neocolonialismo. Boaventura diferencia quatro formas de globalização: 1) o localismo globalizado, pelo qual uma prática local consegue se expandir pelo resto do mundo, localizando sua antagonista; 2) o globalismo localizado, que é a imposição de certas práticas pelos Países mais ricos aos mais pobres, como, por exemplo, o dumping ecológico; 3) o cosmopolitismo, consistente na reunião de pessoas ou ideias, a nível global, sem intermediação estatal necessária, voltada para a difusão de práticas não hegemônicas, como se vê em ONG´s e organizações transnacionais de direitos humanos; 4) o patrimônio comum da humanidade, ou seja, temas que, pela própria natureza, são globais, como o próprio planeta, os fundos marinhos ou a preservação da Amazônia. As duas primeiras formas de globalização são hegemônicas ou “de-cima-para-baixo”, enquanto as duas últimas são contra-hegemônicas ou “de-baixo-para-cima”.[4]
A fim de se admitir os direitos humanos como instrumento para o cosmopolitismo, afastando-o de seu uso hegemônico, o autor propõe o preenchimento de cinco condições. Inicialmente, deve-se superar do debate entre universalismo e relativismo cultural. Para ele:
Trata-se de debate intrinsecamente falso, cujos conceitos polares são igualmente prejudiciais para uma concepção emancipatória de direitos humanos. Todas as cultuas são relativas, mas o relativismo cultural enquanto atitude filosófica é incorreto. Todas as culturas aspiram preocupações e valores universais, mas o universalismo cultural, enquanto atitude filosófica, é incorreto. Contra o universalismo, há que propor diálogos interculturais sobre preocupações isomórficas. Contra o relativismo, há que desenvolver critérios políticos para distinguir política progressista de política conservadora, capacitação de desarme, emancipação de regulação.[5]
Em segundo lugar, deve-se reconhecer que todas as culturas apresentam concepções de dignidade da pessoa humana, mas nem todas no contexto dos direitos humanos. A terceira e quarta premissa também estão diretamente relacionadas com a dignidade da pessoa humana: deve-se entender que todas as culturas são incompletas e, portanto, apresentam noções incompletas de dignidade da pessoa humana (terceira premissa); essas diferentes percepções de dignidade da pessoa humana apresentam grau de reciprocidade diferenciado, devendo-se preferir aquela que apresenta um círculo mais alargado de reconhecimento de direitos (quarta premissa). Finalmente, a quinta premissa diz repeito ao reconhecimento da diferença e da igualdade entre os homens, concepções essas (diferença e igualdade) tão variáveis conforme a cultura.
O autor não tergiversa, quando, ao analisar a hermenêutica diatópica, retoma a análise dessas duas últimas condições para sustentar que a concepção cultural que mais atribui direitos aos homens, ampliando o círculo de reciprocidade, é a concepção marxista de direitos humanos, pois leva a igualdade para além do mero aspecto político, albergando o domínio social e econômico. Além disso, as questões interculturais envolvendo igualdade e diferença entre os homens devem ser resolvidas a partir da seguinte construção, a qual já se constitui passagem clássica em qualquer análise sobre o direito à igualdade: “uma vez que todas as culturas tendem a distribuir pessoas e grupos de acordo com dois princípios concorrentes de igualdade e diferença, as pessoas e os grupos sociais têm o direito de ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”.[6]
Essa compreensão de diversidade e diferenças entre as culturas somente é possível a partir de uma interpretação dos fenômenos envolvidos que siga um método hermenêutico diatópico. A hermenêutica diatópica normatiza a interpretação no contexto do diálogo intercultural, levando em conta, seriamente, as diferenças e semelhanças entre as culturas. No entanto, o papel desse método não é busca a igualdade, mas sim frisar as desigualdades entre as culturas. Assim está caracterizado esse procedimento:
A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível do interior dessa cultura, uma vez a que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objectivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude – um objectivo inatingível – mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra. Nisso reside o seu caráter diatópico.[7]
Boaventura tem plena consciência de que a hermenêutica diatópica pode ser utilizada para fins hegemônicos ou de flagrante violação dos direitos humanos, escudando-o através do rótulo do multiculturalismo. Para evitar tal manipulação, o autor propõe um acordo multicultural prévio, estampado em dois imperativos multiculturais. Esses imperativos, conforme mencionado anteriormente são: 1) preferência pela cultura que mais amplie o círculo de reciprocidade de direitos, destinando-os a um maior número de pessoas; 2) no contexto do direito à igualdade, a admissão desta, quando a diferença inferiorize as pessoas, e o reconhecimento da diferença, quando a igualdade as descaracterize.
Esse diálogo intercultural, se cumpridas as premissas emancipatórias dos direitos humanos e os imperativos interculturais da hermenêutica diatópica, servem para justificar, por exemplo, o critério da auto-atribuição no contexto da identificação dos remanescentes das comunidades de quilombos.
Mas isso é tema para outro post!
[1] SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. In.: Contexto Internacional, nº 23. p, 7-34. Disponível em: http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Concepcao_multicultural_direitos_humanos_ContextoInternacional01.PDF. p, 8.
[2] “A política de direitos humanos é basicamente uma política cultural. Tanto assim é que poderemos mesmo pensar os direitos humanos como sinal do regresso do cultural, e até mesmo do religioso, em finais de século. Ora, falar de cultura e de religião é falar de diferença, de fronteiras, de particularismos. Como poderão os direitos humanos ser uma política simultaneamente cultural e global?” Idem. p, 9.
[3] Idem. p, 10.
[4] Idem. p, 13-15.
[5] Idem. p, 18.
[6] Idem. p, 28. O autor nomeia essas duas construções como imperativos interculturais, estudando-as no contexto da hermenêutica diatópica, como premissa básica para que este modelo interpretativo seja utilizado, de fato, com finalidade emancipatória e não como uma fraude hegemônica.
[7] Idem. p, 21. Os topoi são “os lugares comuns retóricos mais abranges de uma determinada cultura”. O autor aponta, ainda, que: “compreender determinada cultura a partir dos topoi de outra cultura pode revelar-se muito difícil, se não mesmo impossível”. Idem. p, 20.
Meu caro emanuel de Melo, movimentando seu blog aqui! Cara, interessante a proposta de superar o relativismo cultural através dessa “hermenêutica diatópica”. Acho válida qualquer idéia que fomente o diálogo intercultural. Mas, já venho com um questionamento, considerando as premissas levantas: “1) preferência pela cultura que mais amplie o círculo de reciprocidade de direitos, destinando-os a um maior número de pessoas; 2) no contexto do direito à igualdade, a admissão desta, quando a diferença inferiorize as pessoas, e o reconhecimento da diferença, quando a igualdade as descaracterize”.
Você não acha que tais premissas – também em tese, mas sobretudo na prática – parte e partirão de uma ótica ocidental dos direitos humanos (dignidade ligada à igualdade material e à extensao e reciprocidade de direitos), e, dessa forma, cairíamos em um sofisma, haja vista que aqui tenderíamos mais uma vez a universalizar a cultura ocidental?
Penso que em matéria de direitos humanos precisamos inevitavelmente de uma determinada dose de consenso mesmo. Por isso tenho dificuldade de compreender qualquer forma de superação do multiculturalismo que não passe pelo consenso, ou seja, pelo universalismo. E não acho que isso seja abominável, desde que com isso não se vise à exterminar o multiculturalismo saudável.
Bom, vc que leu a obra por inteiro e que vem se tornando um expert no assunto, aponte onde estou errado.
Gde abraço!
Samuel,
Você já se mostra meu principal interlocutor, valeu!hehehe
É justamente o contrário, cara! Boaventura não quer essa visão ocidental dos direitos humanos, absolutamente! Ele critica abertamente qualquer visão maniqueísta desses direitos e, para ele, a visão única, seja ocidental ou oriental, acarreta o uso seletivo e o consequente enfraquecimento desses direitos.
É justamente para evitar essa universalização da cultura ocidental que Boaventura utiliza a hermenêutica diatópica, como descrito no texto.
O problema é que tanto o relativismo com o universalismo, de fato, não levam à sério as diferenças culturais. Por isso o autor propõe o multiculturalismo, não para buscar uma cultura única, mas para deixar bem claro que as diferenças existem e devem ser levadas em conta.
Vale a pena ler o artigo do cara, fica tudo muito mais claro!
Abraço!
Cara, li agora o texto inteiro, e de fato a idéia dele ficou mais clara. Contudo, tu não achas que a concepção multicultural através do diálogo intercultural que ele propõe teria por escopo o consenso – e daí ele também se tornaria partidário de uma universalismo, ainda que de grande abertura? A não ser assim, não vejo como encontrar soluçoes de ordem prática para conflitos no direito internacional dos direitos humanos.
Sem dúvida deve haver consensos mínimos, como fiz questão de colocar no texto, consubstanciado naquelas duas condições postas (busca pela igualdade-respeito pela diferença). A questão é que, para ele, esse consenso é impossível através do universalismo e do relativismo, daí recorrer ao multiculturalismo. O universalismo que Boaventura combate é o universalismo utilizado ideologicamente, como. de fato, ele foi. Um universalismo que não leva em conta as diferentes concepções de dignidade da pessoa humana e busca se legitimar para todos os povos deve mesmo ser repelido. Partindo dessa premissa, não há como admitir que Boaventura acabe culminando com um universalismo mais ampliado ou de grande abertura, como você mencionou. Acho que ele propõe uma nova categoria mesmo, o multiculturalismo. É um problema conceitual: se você admite a premissa dele, de que o universalismo não teve as preocupações culturais por ele propostas, não há como salvá-lo, devendo-se buscar uma nova categoria.