Ontem a eleição do Deputado Marco Feliciano, pastor evangélico, para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados causou uma justa, correta e certeira indignação em boa parte da sociedade, como visto, por exemplo, nas redes sociais.
As ideias defendidas por ele, especialmente em relação aos homossexuais, são preconceituosas, pois negam o direito à diferença, ínsito a esses grupos, pregando sua assimilação à sociedade circundante, constituindo uma postura completamente destoante dos valores democráticos do pluralismo, do respeito ao próximo e da inclusão. É ridícula, revoltante e imoral a difusão de ideias desse tipo.
No entanto, ele tem todo o direito, nesse caso, de ser preconceituoso.
Este post tem por objetivo demonstrar que a liberdade de expressão, apesar de não se compadecer com o discurso do ódio (ou seja, aquela manifestação do pensamento que prega a intolerância e insulta minorias, como, por exemplo, os homossexuais) deve prevalecer nas hipóteses em que se vincula uma crítica aos homossexuais com base na fé.
Vejam bem: eu reitero que não concordo, absolutamente, com o conteúdo de tais críticas. Este post trata somente de posturas que envolvam, efetivamente, críticas religiosas aos homossexuais, sem qualquer pregação ou incitação à violência, as quais não gozam de qualquer proteção. Mas também, por outro lado, não concordo com aqueles que pregam a negação do direito de alguém, com base na fé, proferir tais ideias.
Digo isso não porque acho que o discurso do ódio merece proteção pela liberdade de expressão. Como se sabe, a Suprema Corte americana é uma das poucas, senão a única no mundo, que interpreta a liberdade de expressão de modo quase absoluto, excluindo do âmbito de proteção desse direito somente aquelas expressões que pregam uma violência iminente. Essa postura é incorreta. Sou daqueles que pensam que a posição no nosso Supremo Tribunal Federal, externada no famoso HC nº 82.424/RS[1] (caso Ellwanger) é a correta, pois nega proteção a um discurso ofensivo e preconceituoso. No caso, o grupo ofendido eram os judeus, insultados em sua igualdade em face da publicação de livros que negavam a existência de um fato histórico incontroverso, qual seja, o holocausto.
Se eu sou contra a proteção, através da liberdade de expressão, desse tipo de discurso do ódio, como posso ser a favor da proteção de outro discurso, também preconceituoso e também contra minorias (homossexuais), como as tais críticas com base religiosa?
Tal tese pode ser sustentada a partir das seguintes razões.
I) A liberdade de expressão, nesses casos, vem em cruzamento com a liberdade de religião
Há partes expressas da Bíblia que condenam veementemente o homossexualismo. Veja-se o seguinte trecho:
Por causa das coisas que essas pessoas fazem, Deus as entregou a paixões vergonhosas. Pois até as mulheres trocam as relações naturais pelas que são contra a natureza. E também os homens deixam as relações naturais com as mulheres e se queimam de paixão uns pelos outros. Homens têm relações vergonhosas uns com os outros e por isso recebem em si mesmos o castigo que merecem por causa dos seus erros. E, como não querem saber do verdadeiro conhecimento a respeito de Deus, ele entregou os seres humanos aos seus maus pensamentos, de modo que eles fazem o que não devem. (Romanos 1:26-27)
Evidentemente que não se pode concordar com uma leitura fundamentalista de tal passagem. No entanto, também não se pode negar que tal trecho, realmente, está posta naquele texto sagrado, restando aberta a todo tipo de leituras.
Além disso, o direito de crítica, como se sabe, é protegido pela liberdade de expressão.
Sendo assim, tais críticas gozam de proteção da liberdade de expressão e de religião, havendo uma concorrência autêntica de direitos fundamentais.
II) Em havendo concorrência entre tais direitos, a carga argumentativa a favor do discurso protegido por eles é elevadíssima, maior que a igualdade dos homossexuais que foram insultados.
Diz-se que a proteção da liberdade de expressão e de religião deve ser superior à igualdade daquele grupo porque um insulto baseado na fé é menos ofensivo que um insulto baseado em pretensos fatos históricos irreais, como, por exemplo, a negativa de existência do holocausto, noticiada antes. É precisamente essa a justificação para o tratamento diferente entre a solução dada ao caso Ellwanger e à crítica com base religiosa. Na primeira, o insulto é gritante, pois se quer reescrever a história e sustentar que o holocausto não ocorreu. Trata-se de uma postura, assim, objetiva e com pretensão de verdade a partir de dados históricos, mesmo que falseados. Na segunda, a crítica tem base totalmente subjetiva, pois baseada exclusivamente na fé. Reescrever a história, negar o passado e a memória é muito mais ofensivo que proferir uma crítica com base numa interpretação equivocada de um texto polissêmico por excelência.
III) O Estado não pode vedar a veiculação de tais ideias, pois, do contrário, estaria agindo como árbitro da fé, violando a laicidade estatal. Como se trata de uma crítica com base religiosa, a postura do Estado, incluindo-se o Estado-juiz, deve ser de neutralidade, permitindo a veiculação de tais ideias.
E o que os homossexuais e todos aqueles outros que se sentem ofendidos com tais ideias, como eu, devem fazer? Precisamente o que se tem feito nas redes sociais: criticar o caráter retrógrado e imbecil delas, na tentativa de convencer aqueles que a veiculam do seu desacerto.
Trata-se da aplicação da famosa tese de Stuart Mill acerca do livre mercado de ideias. Nos demais casos de discurso do ódio, essa postura é impensável. No presente caso, no entanto, penso que ela se justifica, pelas razões antes postas.
O tema comportaria um livro, mas as ideias básicas estão postas. São ideias extremamente polêmicas e gostaria muito que elas gerassem um debate.
Quem me conhece de verdade sabe que não tenho nenhum problema com divergência e críticas, desde que civilizadas, sem caps lock ou ofensas à honra.
Sendo assim, o que vocês acham dessa sustentação?
[1] Rel. Min. Maurício Correa. Data do julgamento: 17/09/2003.
Concordo. No que tange ao direito ao exercício da manifestação de pensamento, a distinção feita por vc entre o dicurso baseado no falseamento da verdade sobre um fato – não protegido constitucionalmente – e aqueloutro baseado em uma interpretação subjetiva sobre um texto de natureza religiosa – protegido – é muito convincente. Outra coisa é, e as pessoas não devem confundir, a adoção de tratamentos normativos por parte do Estado com base nessas ideias, o que feriria a isonomia em alguns casos.
Anderson, ainda bem que fui compreendido!
Concordo total e, embora eu seja hetero, sou simpatizante da causa homossexual. Sempre o fui. O debate é fundamental em qualquer sociedade que busque evolução. Lógico que, como você bem pontuou, desde que seja livre de ódio e incitação à violência. Parabéns!
Concordo total e, embora eu seja hetero, sou simpatizante da causa homossexual. Sempre o fui. O debate é fundamental em qualquer sociedade que busque evolução. Lógico que, como você bem pontuou, desde que seja livre de ódio e incitação à violência. Parabéns!
É verdade, Natália. Qualquer incitação à violência, em qualquer discurso, não pode ser protegida. Também sou a favor de diversas causas dos homossexuais: casamento, união estável, adoção…
Gde Emanuel de Melo, mto bom teu texto..concordo com sua posição. Penso que a gde e custosa missão do intérprete dos dias atuais é a de analisar os fatos que se lhe apresentam sem corromper sua razão e imparcialidade pelo inevitável carga de sentimentos, preconcepçoes e sobretudo dogmas midiáticos dos tempos modernos (obviamente na medida do possível, pois a abstração completa é sabidamente utópica).
Penso que se trata de ponderaçao de principios, devendo-se respeitar o direito das minorias religiosas radicais (sim, pois nesse caso – veja só – as minorias foram invertidas), que, com base em um direito constitucional de expressão, simplesmente dinfundem suas idéias, sem incitaçao ao ódio, à violência,ou a alguma espécie de “apartheid social” – o que, acaso existente, seria induvidosamente merecedora de censura. Faz parte do pluralismo de idéias; da liberdade de expressão/opinião.
Só discordo quando vc fala que a censura por parte do Estado significaria, no caso, negar a laicidade estatal. Acho que a questão religiosa é apenas pano de fundo; ou seja independente dela o direito de expressao no caso nao merece censura..
O caso me parece bem semelhante ao da “marcha da maconha”, julgada constitucional pelo STF… . .
Valho-me aqui da célebre frase de Voltaire: “posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las.” Sou defensor convicto da pura e simples liberdade de expressao.
Abraços!
.
Samuel, obrigado pela participação! Interessante seu argumento sobre a inversão das minorias: dependendo da religião envolvida, de fato, há mesmo um “confronto” entre dois grupos minoritários. Divergimos parcialmente quando você admite a proteção do discurso unicamente a partir da liberdade de expressão e quando você compara o caso com a marcha da maconha. Não acho que haja semelhança, pois, nesse último caso, não há discurso do ódio envolvido, mas sim uma emissão de opinião protegida pela liberdade de expressão e reunião (a marcha é uma reunião em movimento) buscando uma alteração legislativa, sem discriminação ou insulto a qualquer grupo. Abraço!
Ok meu caro!
So um esclarecimento: a analogia que fiz em relação à “marcha da maconha” foi no seguinte sentido:
1) nos dois casos temos a proteçao de um direito de expressao (a meu ver, no julgamento da marcha da maconha o que estava em jogo era mto mais a liberdade de expressao do que a de reunião, haja vista que o cerne da questão era sobre a compatibilidade da difusao ideológica da liberaçao da maconha com o a criminalizacao da conduta de incitar publicamente um crime); 2) No julgamento referido prevaleceu, como aqui defendemos, a liberdade de expressao/opiniao frente à difusao de idéias moralmente reprováveis de acordo com uma concepção majoritária; 3) Tanto aqui com alhures, ressalvamos os excessos que resvalem em qualquer forma de violência.
Se for fazer o livro me chama pra fazer um capítulo!! eheheh
Gde abraço.