Iniciando uma série de postagens futuras sobre minorias, como quilombolas e homossexuais, eis o primeiro post, fruto da empolgação direta com esses primeiros dias de Ministério Público Federal.
A Constituição fraternal compreende aquela parte da ordem constitucional que demanda uma especial atenção com o próximo. Por mais diferentes e minoritários que sejam, eventualmente, tais grupos, a proteção e inclusão deles somente podem ocorrer a partir de uma atuação pautada na fraternidade. Este princípio é um dos mais caros ao MPF, o qual conta, por exemplo, com uma Câmara de Coordenação e Revisão (6º CCR) especialmente voltada para temas envolvendo minorias, como índios e quilombolas. Isso sem falar, logicamente, na atuação de diversos outros colegas voltada especialmente para a proteção de tais grupos.
Nesse sentido, uma das marcas mais belas da Constituição Federal de 1988 é justamente esse seu nítido caráter fraternal[1]. A primeira ideia que vem à mente quando se pensa em fraternidade é a de ajuda desinteressada ao próximo, reconhecendo-se alguma dificuldade deste em se manter, pelo menos momentaneamente, através de suas próprias forças. Esse é o fundamento básico, por exemplo, das ações afirmativas.
O constitucionalismo e o Estado de Direito, no entanto, não surgiram preocupados com tais considerações de amor ao próximo. Nesse sentido, para se compreender o constitucionalismo fraternal do Estado Democrático de Direito, deve-se traçar uma breve evolução, do constitucionalismo liberal ao social, com as respectivas marcas no Estado Liberal e Social.
É conhecido o marco inicial do constitucionalismo clássico, apontado por diversos autores a partir das revoluções americana de 1776 e francesa de 1789. Tendo como característica básica a confecção de uma Constituição escrita, é célebre a lição liberal francesa no sentido de que “qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”, nos termos do art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. O constitucionalismo liberal representou a ruptura com o absolutismo monárquico, não mais se reconhecendo privilégios em razão do nascimento, pelo que consagrou a liberdade e igualdade sob o aspecto formal, no sentido de que todos são iguais perante a lei. Exigia-se, unicamente, um absenteísmo estatal para a proteção dos direitos civis.[2]
A interpretação meramente formal da igualdade seria o objeto do maior descontentamento da sociedade com o constitucionalismo liberal, quando do agravamento das sérias tensões sociais surgidas com o desenvolvimento da Revolução Industrial. Ficou evidente a necessidade de se prover um mínimo de igualdade material aos indivíduos, considerando que, de fato, há desigualdade entre os homens. A fórmula liberal, assim, aplicada isoladamente, consistiria em mera retórica. Ganha força, desse modo, uma concepção material dos direitos, determinando uma postura ativa, prestacional, do Estado no sentido de promover, por exemplo, a igualdade material entre os indivíduos.
É somente na terceira fase dessa evolução, no entanto, quando se vai encontrar a justificativa para o reconhecimento de direito às minorias, como mulheres, crianças, idosos, índios e remanescentes das comunidades dos quilombos. O constitucionalismo fraternal é aquele que reconhece a diferença entre os homens e não tenta assimilá-la, mas sim respeitá-la. Fixam-se regras básicas de convivência, como o respeito aos direitos fundamentais e à democracia e, uma vez cumpridas essas condições, aquela minoria, substancialmente diferente da maioria, tem total direito de viver sua vida de acordo com suas crenças e convicções.
Carlos Ayres Britto sintetiza o constitucionalismo fraternal do seguinte modo:
Efetivamente, se considerarmos a evolução histórica do Constitucionalismo, podemos facilmente ajuizar que ele foi liberal, inicialmente, e depois social. Chagando, nos dias presentes, à etapa fraternal da sua existência. Desde que entendamos por Constitucionalismo Fraternal esta fase em que as Constituições incorporam às franquias liberais e sociais de cada povo soberano a dimensão da Fraternidade; isto é, a dimensão das ações estatais afirmativas, que são atividades assecuratórias da abertura de oportunidades para os segmentos sociais historicamente desfavorecidos, como, por exemplo, os negros, os deficientes físicos e as mulheres (para além, portanto, da mera proibição de preconceitos). De par com isso, o constitucionalismo fraternal alcança a dimensão da luta pela afirmação do valor do Desenvolvimento, do Meio Ambiente ecologicamente equilibrado, da Democracia e até de certos aspectos do urbanismo como direitos fundamentais. Tudo na perspectiva de se fazer da interação humana uma verdadeira comunidade. Isto é, uma comunhão de vida, pela consciência de que, estando todos em um mesmo barco, não têm como escapar da mesma sorte ou destino histórico.
Se a vida em sociedade é uma vida plural, pois o fato é que ninguém é cópia fiel de ninguém, então que esse pluralismo do mais largo espectro seja plenamente aceito. Mais até que plenamente aceito, que ele seja cabalmente experimentado e proclamado como valor absoluto. E nisso é que se exprime o núcleo de uma sociedade fraterna, pois uma das maiores violências que se pode cometer contra seres humanos é negar suas individualizadas preferências estéticas, ideológicas, profissionais, religiosas, partidárias, geográficas, sexuais, culinárias, etc. Assim como não se pode recusar a ninguém o direito de experimentar o Desenvolvimento enquanto situação de compatibilidade entre a riqueza do País e a riqueza do povo. Autosustentadamente ou sem dependência externa”.[3] (destaques no original)
As consequências de tal formulação são vastas. Logo o STF voltará a deliberar, por exemplo, acerca do direito à terra dos remanescentes das comunidades de quilombos. Especificamente quanto a essa questão, percebe-se, no contexto do constitucionalismo fraternal, o acerto do constituinte de 1988 em consagrar uma disposição como a do art. 68 do ADCT, o qual garante o direito à terra àquelas comunidades.
Levando em conta o passado de forte exclusão vivido pelas comunidades quilombolas ou seus remanescentes, seu passado de resistência à opressão bem como suas especiais e próprias formas de fazer, viver e criar, tem-se a caracterização de um grupo com cultura própria, diferente da maioria circundante. Além disso, a íntima relação com a terra em que habitam ou pretendem habitar torna ainda mais necessária a existência do art. 68, pois, como se sabe, muitas das consequências nefastas da escravidão perduram até hoje.
O assunto será aprofundado em outras postagens, tamanha a importância de se dar visibilidade a quem, historicamente, esteve invisível aos olhos da sociedade.
[1] A Constituição usa de modo indistinto, as expressões solidariedade e fraternidade. Logo no preâmbulo estão consignadas certas aspirações que compreendem valores supremos de uma sociedade fraterna. O termo qualifica, portanto, a sociedade. Em seguida, no famoso art. 3º, quando a Constituição fixa os objetivos da República Federativa do Brasil, tem-se, em seu inciso I, a meta de se construir uma sociedade, livre, justa e solidária. Percebe-se, agora, que não é mais a expressão “fraterna” que qualifica a sociedade, mas sim a palavra “solidária”. Quisesse a Constituição dotar de significado diverso ambas as expressões, teria, tanto no preâmbulo, como no art. 3ª, colocado as duas expressões conjuntamente, nestes termos: “construir uma sociedade, livre, justa, solidária e fraterna”. Pensar de modo diverso levaria ao absurdo de se sustentar que a Constituição quer uma sociedade solidária, mas não fraterna, em total contradição com o preâmbulo, o qual, apesar de não ser norma jurídica, deve ser levado em conta como vetor interpretativo do texto constitucional. Como não fez tal distinção, sua intenção foi de apresentar os vocábulos como sinônimos. No presente texto, ambas as expressões serão aplicadas indistintamente. Para um estudo sobre a evolução histórica dos conceitos ver: FERREIRA, Emanuel de Melo. A evolução da solidariedade: das sociedades clássicas à principiologia constitucional. In: Anais do XIX Congresso Nacional do CONPEDI, Florianópolis/SC: Fundação Boiteux, 2010, p. 5985-5993.
[2] BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011. p, 40. Segundo o autor: “Na doutrina do liberalismo, o Estado foi sempre o fantasma que atemorizou o indivíduo. O poder, de que não pode prescindir o ordenamento estatal, aparece, de início, na moderna teoria constitucional como o maior inimigo da liberdade.”
[3] BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p, 216-217.
Excelente texto. Parabéns e obrigada por compartilhar seu conhecimento.
Excelente texto, obrigado por me esclarecer sobre o assunto.
era um risco, hoje lidamos com a realidade de superproteção que levou grande parte da sociedade a esperar do estado sem se mover. criou-se um estado paternalista, sem cobrança de responsbilidades e deveres.
a logica das pseudominorias como pano de fundo eleitoreiro e formador de curral eleitoral
o estado social sem contrapartida é fábula