210 ANOS DE CONTROLE JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDADE: ESTUDO E CRÍTICA DE MARBURY VERSUS MADISON

fevereiro 24, 2013 — 1 Comentário

Como se sabe, pode-se dizer que o controle difuso de constitucionalidade surgiu nos Estados Unidos, em 24 de fevereiro de 1803, após uma engenhosa decisão proferida pelo juiz John Marshall, Presidente da Suprema Corte americana. Dada a relevância histórica da questão, vale a pena estudá-la com certo aprofundamento, como forma de rememorar o aniversário do surgimento do controle judicial de constitucionalidade.

No inicio da vida republicana dos Estados Unidos, a tensão política existente dividia os partidos Federalista e Republicano, sendo que o primeiro dominara o Parlamento e a Presidência até as eleições de 1800, quando os republicanos chegaram ao Poder Executivo com a eleição do Presidente Thomas Jefferson.[1] O então Presidente Adams, federalista, manteve-se no poder até 1801, tendo, nesse ínterim, desenvolvido uma manobra que garantiria a influência política dos federalistas mesmo após a derrota nas eleições. Tratou o Presidente de fazer com que se aprovasse uma lei que criava dezesseis tribunais federais em vários pontos do território americano, como medida para evitar os constantes deslocamentos de juízes da Suprema Corte, cuja competência incluía o julgamento de apelações em casos federais ocorridas nos Estados-membros. Nessas situações, o magistrado daquela Corte deveria se dirigir até o Estado para fazer o julgamento, o que gerava morosidade e cansaço desmedido para os juízes.

Ocorre que tais Cortes seriam preenchidas por juízes vitalícios nomeados pelo Presidente Adams, abrindo-se espaço para o preenchimento dos cargos somente pelos simpatizantes das ideias federalistas, o que poderia criar empecilhos para o futuro governo republicano. O Presidente Adams dizia temer pela moral americana após a vitória de Jefferson, sendo curioso, assim, o fato de não ter havido qualquer empecilho moral que o impedisse de criar cargos para serem ocupados por seus amigos partidários. A política federalista, portanto, não assimilara bem o sistema de dois partidos políticos, preconizador da alternância de poder. [2]

Além de criar tais cargos vitalícios, a referida lei criava diversos cargos de juiz de paz no Distrito de Colúmbia, cujo mandato era de cinco anos.[3] Um dos indivíduos escolhidos para ocupar um desses cargos chamava-se William Marbury. Com o mandato presidencial prestes a encerrar, o ritmo de nomeações para tais cargos foi intensa, registrando-se nomeações na noite anterior a posse dos republicanos, surgindo daí a alcunha “juízes da meia noite”.[4] O encarregado dos procedimentos necessários à posse dos nomeados era John Marshall, Secretário de Estado, já nomeado para ocupar a presidência da Suprema Corte, mas desempenhado aquela função a pedido do Presidente Adams até a posse de Thomas Jefferson. A atividade levada a cabo por Marshall consistia na colocação de um selo no diploma de nomeação e o consequente envio para o nomeado. Ocorre que com a pressa em formalizar a nomeação do maior número de simpatizantes possíveis, o diploma de Marbury, devidamente selado por Marshall, não lhe fora enviado, tendo em vista, provavelmente, os tumultos do último dia de governo. Ressalte-se que Marbury havia sido regularmente indicado pelo Presidente e confirmado pelo Congresso, não contando, somente, com o diploma necessário para a posse.

Assumindo a presidência claramente descontente com tais manobras, o Presidente Jefferson ordena a seu Secretário de Estado, James Madison, recusar peremptoriamente o envio do diploma solicitado por Marbury.[5] Este, então, impetra um writ of mandamus, com base numa lei de 1789 que ampliara a competência originária da Suprema Corte, almejando à concessão de uma ordem para que Madison enviasse o diploma.

Convicto da impossibilidade de a Suprema Corte conceder tal ordem, Madison não apresentou qualquer defesa. O clima era tenso nos Estados Unidos, com o governo aprovando uma série de medidas que desconstruía os estratagemas federalistas, como a aprovação de uma lei que previa a demissão de todos aqueles ocupantes de altos cargos nomeados pelo Presidente Adams.[6] O clima de beligerância aumentava à medida que o julgamento do writ se aproximava, sendo que a engenhosa decisão de Marshall foi fundamental para a manutenção do equilíbrio institucional daquele País.

A questão ganha contornos mais dramáticos à medida que não é possível encontrar na Constituição dos Estados Unidos qualquer norma prevendo a possibilidade de o Poder Judiciário invalidar uma lei elaborada pelo Poder Legislativo.[7] O artigo III da Constituição americana, ao organizar o Poder Judiciário, limitou-se a estatuir, na seção 2.2, a competência originária da Suprema Corte para os casos envolvendo embaixadores, outros ministros, cônsules e algum Estado membro da federação. Assim, a lei de 1789, que disciplinou aquela ação ajuizada por Marbury, ampliara a competência originária da Corte.

O chief justice Marshall, julgando o caso, assentou que a retenção do título era ilegal, consistindo um abuso e ferindo o direito de Marbury. No entanto, ele denegou a ordem, pois a ação era baseada numa lei inconstitucional, que invadira a competência do constituinte, único capaz de dispor sobre a competência originária da Suprema Corte, já que fixada na Constituição. Com isso, o governo resignou-se por não ter sido obrigado a enviar o diploma, mas recebeu, juntamente com o Poder Legislativo, um importante recado, no sentido de que, a partir daquele caso, caberia aos juízes analisar a compatibilidade de uma lei com a Constituição, recusando a aplicação daquela sempre que conflitasse com esta. Se todos os Poderes devem obediência ao Texto Magno e cabe ao Poder Judiciário interpretá-lo, “os atos dos demais Poderes podem ser anulados por decisão do Judiciário, na qualidade de intérprete máximo da Constituição”.[8]

As lições constantes no Federalista devem ter servido de inspiração para a decisão de Marshall, já que “os pais fundadores” viam com bons olhos o controle jurisdicional das leis.[9] A Corte Suprema, no entanto, só viria a reconhecer novamente a inconstitucionalidade de uma Lei em 1857, no também célebre caso Dread Scott, quando entendeu ser inconstitucional o art. 8º do Missouri Compromise Act, de 1850, que proibia a escravidão nos territórios. Essa impopular decisão mostrou-se extremamente infeliz, pois entendeu que os escravos deveriam ser considerados propriedade de seus senhores e, nessa condição, não poderiam ser libertados (alienados), pois isso malferiria, o devido processo legal previsto na 5ª emenda.[10]

Análise crítica e desdobramentos de Marbury versus Madison

Deve-se assentar, inicialmente, que a engenhosidade de Marshall ao aplicar na prática o judicial review não quer dizer que tal doutrina fora por ele desenvolvida. Seu maior mérito não está na criação de tal doutrina, mas na habilidade política em tê-la implementado. Em verdade, a decisão em Marbury versus Madison só foi aceita pelo Presidente Jefferson porque, apesar de a Suprema Corte ter reconhecido a legitimidade da investidura de Marbury, assentou a inconstitucionalidade da lei criadora do writ, no tocante à inconstitucionalidade da competência originária atribuída à Suprema Corte. Se houvesse a condenação de Madison, para a efetivação da nomeação de Marbury, ter-se-ia instalando uma crise devastadora nas instituições americanas, levando, provavelmente, à derrocada da tão festejada tese acerca do judicial review. Por ter evitado tal estado de coisas com extrema habilidade, Marshall coloca seu nome na história.

Laurence Tribe aponta as motivações políticas que levaram Marshall a tomar tal decisão. Segundo o autor, é inegável o interesse pessoal daquele juiz em aumentar seu próprio poder. Além disso, com o controle judicial de constitucionalidade seria possível aos juízes federalistas, como o próprio Marshall, controlar eventuais excessos perpetrados pelo Presidente republicano Thomas Jefferson. [11]

Mencionou-se anteriormente que os autores dos artigos federalistas viam com bons olhos o controle judicial dos atos legislativos em face da Constituição. Assim, Alexander Hamilton aponta que:

Não há posição fundada em princípios mais claros que aquela de que todo ato de um poder delegado que contrarie o mandato sob o qual é exercido é nulo. Portanto, nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido. Negar isto seria afirmar que o delegado é maior que o outorgante; que o servidor está acima do senhor; que os representantes do povo são superiores ao próprio povo; que homens que atuam em virtude de poderes a eles confiados podem fazer não só o que estes autorizam, mas o que proíbem.

Caso se diga que os membros do corpo legislativo são eles mesmos os juízes constitucionais dos próprios poderes e que a interpretação que lhes conferem impõe-se conclusivamente aos outros setores, pode-se responder que esta não pode ser a presunção natural a menos que pudesse ser deduzida de cláusulas específicas da Constituição. De outro modo, não há por que supor que a Constituição poderia pretender capacitar os representantes do povo a substituir a vontade de seus eleitores pela sua própria. É muito mais sensato supor que os tribunais foram concebidos para ser um intermediário entre o povo e o legislador, de modo a, entre outras coisas, manter este último dentro dos limites atribuídos a seu poder. A interpretação das leis é o domínio próprio dos tribunais. Uma Constituição é de fato uma lei fundamental, e como tal deve ser vista pelos juízes. Cabe a eles, portanto, definir seus significados tanto quanto o significado de qualquer ato particular procedente do corpo legislativo. Caso ocorra uma divergência irreconciliável entre ambos, aquele que tem maior obrigatoriedade e validade deve, evidentemente, ser preferido. Em outras palavras, a Constituição deve ser preferida ao estatuto, a intenção do povo à intenção de seus agentes.[12]

As palavras de Hamilton demonstram uma efetiva tomada de posição acerca de qual Poder se afiguraria mais adequado para exercer o controle de constitucionalidade das leis, caindo tal preferência para o Poder Judiciário. Tendo em vista a Constituição americana, essa questão é delicada, pois não há norma expressa naquele texto atribuindo tal competência à Suprema Corte ou a qualquer outro órgão do Judiciário, como visto anteriormente. Vê-se, portanto, como as constituições ditas sintéticas ou concisas também apresentam seus problemas, nem sempre lembrados por seus grandes entusiastas e pelos críticos das constituições analíticas. Percebe-se, desse modo, como a originalidade de Marshall não estava na criação propriamente dita do judicial review.

Diversas outras ponderações são feitas em torno dessa histórica decisão, como o possível impedimento de Marshall para o julgamento da causa, em face de seu interesse direto, manifestado quando da nomeação de Marbury. Além disso, aponta-se a atecnia da decisão, que, versando sobre a competência da Suprema Corte, não deveria ter adentrado o mérito da questão. Assim, a decisão deveria ter iniciado e terminado com a mera análise acerca da competência para o julgamento.[13]

Marbury x Madison também reflete, de certo modo, como o princípio da separação de Poderes foi percebido de maneira diferente na Inglaterra e nos Estados Unidos, contrastando a supremacia do Parlamento com a supremacia do Judiciário e da Constituição, respectivamente. Essa distinta percepção encontra seu ápice no reconhecimento do judicial review, o que não deixa de ser um paradoxo, pois aquela supremacia do Parlamento inglês ajudou a gerar a supremacia do Judiciário americano.

Esse contraste é analisado e superado por Mauro Cappelletti. Para o autor, à medida que as Colônias inglesas na América eram regidas pelas Cartas da Coroa britânica, a obediência a elas era irrestrita, cabendo à legislação das colônias se adequar às respectivas Cartas, respeitando, assim, a supremacia do Parlamento inglês. Essas Cartas, desse modo, funcionavam com espécies de Constituições. Essa é uma das fontes de amplo descontentamento americano com aquele Parlamento, que, para manter o domínio sobre as terras americanas, impunha rígido controle sobre a legislação local.[14]

Ora, se as leis locais só poderiam ser aplicadas se não estivessem em contraste com as leis do Reino, com a independência dos Estados Unidos e a promulgação de sua Constituição, uma determinada lei federal só poderia ser aplicada se estivesse em conformidade com a Constituição daquele País.

O mesmo raciocínio reacionário, portanto, foi ulteriormente aplicado de modo revolucionário.

O post foi longo, mas, como a data é comemorativa, justifica-se!


[1] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo G. Gonet. Curso de direito constitucional. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p, 192.

[2] ACKERMAN, Bruce. The failure of the founding fathers.Cambridge, Mass: HarvardUniversity Press, 2005. p, 128-130. Nesse sentido é a lição de Ackerman: “It is curious, then, to see Adams and his fellow Federarists prate on about “the increasing dissolution of morals” while rushing to create splendid new jobs for their friends. This juxtaposition only helps prove my point – which is not that the Federalists were immoral, but that their political morality had not embraced the ethic of a two-party system”.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo G. Gonet. Ob. cit. p, 193.

[4] Idem. p, 193.

[5] Idem. p, 194.

[6] Idem. p, 194.

[7] No artigo III, seções 1 e 2 da Constituição dos Estado Unidos há a disciplina básica do Poder Judiciário. Seção 1: “The judicial Power of the United States, shall be vested in one supreme Court, and in such inferior Courts as the Congress may from time to time ordain and establish. The Judges, both of the supreme and inferior Courts, shall hold their Offi ces during good Behaviour, and shall at stated Times, receive for their Services, a Compensation, which shall not be diminished during their Continuance in Office”. Seção 2: “The judicial Power shall extend to all Cases, in Law and Equity, arising under this Constitution, the Laws of the United States, and Treaties made, or which shall be made, under their Authority; – to all Cases affecting Ambassadors, other public Ministers and Consuls; – to all Cases of admiralty and maritime Jurisdiction; – to Controversies to which the United States shall be a Party; – to Controversies between two or more States; – [between a State and Citizens of another State;-] between Citizens of different States, – between Citizens of the same State claiming Lands under Grants of different States, [and between a State, or the Citizens thereof;- and foreign States, Citizens or Subjects.] In all Cases affecting Ambassadors, other public Ministers and Consuls, and those in which a State shall be Party, the supreme Court shall have original Jurisdiction. In all the other Cases before mentioned, the supreme Court shall have appellate Jurisdiction, both as to Law and Fact, with such Exceptions, and under such Regulations as the Congress shall make.

[8] Ib. idem. p, 195.

[9] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. p, 306.

[10] MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p, 588.

[11] TRIBE, Laurence H. American constitutional law. Vol. I. 3ª ed. New York: Fundation Press, 2000. p, 212. Nesse sentido, Luís Roberto Barroso assenta que: “É indiscutível que o voto de Marshall reflete, intensamente, as circunstâncias políticas de seu prolator. Ao estabelecer a competência do Judiciário para rever os atos do Executivo e do Legislativo à luz da Constituição, era o seu próprio poder que estava demarcando, poder que, aliás, viria a exercer pelos trinta e quatro longos anos em que permaneceu na presidência da Corte. A decisão trazia, no entanto, um toque de inexcedível sagacidade política. É que as teses nela veiculadas, que, em última análise davam poderes ao Judiciário sobre os outros dois ramos de governo, jamais seriam aceitas passivamente por Jefferson e pelos republicanos do Congresso. Mas, como nada lhes fora ordenado – pelo contrário, no caso concreto foi a vontade deles que prevaleceu –, não tinham como descumprir ou desafiar a decisão.” BAROSSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p, 9.

[12] MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. Artigo LXXVIII. In: Os artigos federalistas. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1993. p, 480 -481.

[13] BAROSSO, Luís Roberto. Ob. cit. p, 9.

[14] CAPPELLETTI, Mauro. Ob. cit. p, 61.

Uma resposta para 210 ANOS DE CONTROLE JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDADE: ESTUDO E CRÍTICA DE MARBURY VERSUS MADISON

  1. 

    Caro Mestre, a extensão, a profundidade e a simplicidade da linguagem estão em perfeito equilíbrio com o meio pelo qual se publicou. Muito obrigado pela oportunidade de ler a referência.

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