O Ministério Público como elo independente entre a sociedade e o Estado – iniciando a representação argumentativa do cidadão perante o Poder Judiciário

fevereiro 16, 2013 — 5 Comentários

Post dedicado aos colegas que hoje tomam posse no cargo de procurador da República

 

Nesta data tão especial, este blog abre seus trabalhos para analisar um aspecto do papel desempenhado pelo Ministério Público na democracia brasileira, em especial no que tange à atuação judicial com base em representações feitas pelos cidadãos. Nessa atuação, buscar-se-á demonstrar que o Ministério Público atua como elo independente entre a sociedade e o Estado, constituindo-se, ainda, em agente propiciador da representação argumentativa do cidadão perante o Poder Judiciário. O conceito de representação argumentativa, em complementação à representação política, será abordado adiante, partindo-se das lições de Robert Alexy em obra lançada no Brasil sob o nome de “Constitucionalismo discursivo”.[1]

Há diversas formas de imaginar a atuação do Ministério Público como instituição independente voltada para a defesa do regime democrático, como previsto no art. 127 da Constituição. Por exemplo: 1) atuação indispensável para a normalidade das eleições, fiscalizando o pleito e ajuizando as ações eleitorais cabíveis; 2) provocando o controle judicial de constitucionalidade, seja de modo concentrado, através do Procurador Geral da República (PGR), seja concretamente, através da atuação de seus demais membros; 3) ajuizando denúncia contra certos indivíduos que praticam crimes de corrupção ativa e passiva no mais alto escalão do poder, corrompendo a já deficiente representação política no Parlamento. Esse tipo de conspiração contra a democracia foi assim descrita pelo Ministro Carlos Ayres Britto: “sob a inspiração patrimonialista, um projeto de poder foi feito, não um projeto de governo, que é exposto em praça pública, mas um projeto de poder que vai além de um quadriênio quadruplicado. É um projeto que também é golpe no conteúdo da democracia, o republicanismo, que postula a renovação dos quadros de dirigentes e equiparação das armas com que se disputa a preferência dos votos”[2]

Todas essas formas de atuação propõem um debate instigante, mas não serão elas analisadas neste momento. Uma quarta atuação do Ministério Público como guardião da democracia é aquela concentrada no atendimento ao público, na oitiva do cidadão comum, o qual, munido de um substrato probatório mínimo, pode desencadear a atuação do Parquet como órgão capaz de iniciar a representação argumentativa da sociedade perante o Poder Judiciário.[3] Nessa atuação, o Ministério Público, ao escutar e dar voz ao cidadão comum, indignado, por exemplo, com a dilapidação do patrimônio público, nada mais faz do que defender a democracia a partir do fortalecimento do controle popular.

O Conselho Nacional do Ministério Público, atento ao tema, regulamentou o atendimento ao público e aos advogados por parte dos membros do Ministério Público de acordo com a Resolução nº 88 de 22 de agosto de 2012. Nela resta expressamente consignado, em seu art. 1º que: “O membro do Ministério Público, no exercício das funções institucionais previstas no art. 129 da Constituição da República ou de sua atuação em face da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, deve prestar atendimento ao público, sempre que solicitado, e em local e horário adequados, com a finalidade de avaliar as demandas que lhe sejam dirigidas.” Veja-se que não se trata de mero atendimento retórico: a finalidade é clara no sentido de que, em havendo plausibilidade, após independente análise do membro do Ministério Público, alguma atuação judicial ou extra-judicial deve ser efetivada. O presente texto, como já se pode perceber, concentra-se na atuação judicial daí eventualmente desencadeada.

Como instituição independente, o Ministério Público pode e deve levar adiante demandas impossíveis (ou extremamente dificultosas) de serem ajuizadas pelo cidadão comum. A posição deste não deve ser minimizada, pois a parcela de poder detida pelo órgão ministerial, como se sabe, emana justamente daqueles agentes sociais.

O conceito de representação argumentativa foi desenvolvido por Robert Alexy no contexto da jurisdição do Tribunal Constitucional, para justificar a prolação de decisões declarando a inconstitucionalidade de certa lei. Assim se expressa o autor:

A representação do povo por um tribunal constitucional distingue-se daquela pelo parlamento pelo fato de a representação por um tribunal constitucional ser puramente argumentativa ou discursiva, enquanto aquela pelo parlamento ter um caráter tanto argumentativo ou discursivo como volitivo ou decisionista. Sob esse aspecto, a representação pelo tribunal constitucional tem um caráter mais ideal que aquela pelo parlamento e, isso, é o fundamento para a primazia da sentença do tribunal constitucional diante daquela do parlamento. O caráter mais ideal da representação pelo tribunal constitucional deve-se, certamente, confirmar na realidade. Isso somente pode dar bom resultado quando as condições de representação argumentativa autêntica estão dadas. Pertencem a elas, ao lado da existência de argumentos válidos ou corretos, a existência de pessoas racionais, que são capazes e dispostas a aceitar argumentos válidos ou corretos, porque eles são válidos ou corretos. Isso mostra que o constitucionalismo discursivo tem sua base não só em instituições e argumentos, mas, essencialmente, também em pessoas que o apoiam.[4]

Esclareça-se que a representação argumentativa, como se percebe no trecho transcrito, não é do Ministério Público, mas sim do Poder Judiciário. Por isso se disse que o papel do Parquet, nessa atuação pautada a partir do atendimento ao público, é propiciar essa representação e não concretizá-la[5].

Uma eventual objeção à leitura ora proposta poderia partir do seguinte raciocínio: como a sustentação de Alexy refere-se ao controle concentrado de constitucionalidade, a tentativa de transposição ora proposta no presente post faleceria de sentido, pois mais voltada para o controle concreto, onde não há a invalidação em tese da lei.

A crítica não se sustenta, por dois motivos. Primeiramente, eventual questão constitucional surgida concretamente pode ascender ao Supremo Tribunal Federal (STF), momento em que esta Corte poderá fazer um juízo de inconstitucionalidade em tese, nos termos da cada vez mais consolidada “abstrativização” do controle concreto de constitucionalidade.[6] Além do mais, falando especialmente em termos de controle abstrato de constitucionalidade, não é aberração alguma sustentar que o âmbito de proteção do direito de petição autoriza a qualquer do povo peticionar perante o PGR para que este, caso assim entenda, ajuíze alguma ação cabível perante o STF. Nesse caso, mais uma vez, a atuação do povo restaria fortalecida pelas mãos do Ministério Público.[7]

Aliás, nesta última hipótese, o povo restaria fortalecido a partir da atuação específica do Ministério Público Federal.

E isso me enche de orgulho.


[1] ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

[2] Frase dita numa das sessões de julgamento da Ação Penal nº 470, o “Mensalão”.

[3] Processualmente, sabe-se que o Ministério Público não atua, normalmente, como representante, mas sim como substituto processual. A primeira parte da expressão “representação argumentativa”, assim, não deve ser lida na acepção processual.

[4] Idem. p, 16.

[5] Como o Ministério Público detém parcela do poder estatal, também não seria absurdo sustentar que ele apresenta traços dessa representação argumentativa do cidadão. No entanto, mantendo-se fiel ao referencial teórico proposto no presente post, essa sustentação deve ser rechaçada, pois Alexy não enfrentou tal questão.

[6] Neste momento, somente posso mencionar, como um fato, a existência dessa postura no STF, deixando para o futuro uma análise crítica sobre a mesma.

[7] Evidentemente que o povo restaria muito mais fortalecido com o ajuizamento direto de uma ação perante o STF. Como tal possibilidade inexiste no nosso ordenamento (o dispositivo da Lei nº 9.882 que previa tal possibilidade na ADPF incidental foi vetado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso), deve-se buscar fortalecer o controle social com os instrumentos legalmente postos. A interpretação que ora se sustenta no presente post sobre o papel do MP tem essa finalidade.

5 Respostas para O Ministério Público como elo independente entre a sociedade e o Estado – iniciando a representação argumentativa do cidadão perante o Poder Judiciário

  1. 

    Parabéns Dr. Emmanuel Melo! Excelente texto! Estou achando ótima a ideia deste blog, pois ele me ajudará conhecer mais sobre sobre um dos órgãos mais importante para defesa dos direitos da sociedade.
    Muito sucesso!

  2. 

    Vc tem algum email para contato?

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