
No primeiro capítulo do meu livro, analiso a regra prevista no art. 103, §3º[1] da Constituição e como ela tem sido excepcionada injustificadamente, com a consequente atribuição de poder a um agente público de modo inconstitucional, equiparando-se o Advogado Geral da União (AGU) ao Procurador Geral da República ao se admitir que aquele possa defender a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo.
O AGU acaba de fazer uma culta sustentação oral no Supremo Tribunal Federal (STF), citando diversos pensadores do Direito e precedentes nacionais e estrangeiros. No entanto, constata-se que ele acaba de descumprir a Constituição no plenário da Corte, pois, na prática, defendeu a inconstitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal sob a construção de que ele merecia uma inusitada interpretação conforme a Constituição para:
“nos termos da decisão proferida no julgamento das medidas cautelares das Ações Declaratórias de Constitucionalidade n° 43 e 44, firmar que “que é coerente com a Constituição o principiar de execução criminal quando houver condenação assentada em segundo grau de jurisdição, salvo atribuição expressa de efeito suspensivo ao recurso cabível”[2].
O presente texto utiliza esse atual exemplo para demonstrar como, mais uma vez, autoridades públicas brasileiras apresentam compreensão que limita a juridicidade a mero ato de poder ou decisão proveniente dos Tribunais, desconsiderando completamente a obediência à norma jurídica quando não se concorda com ela. Trata-se de exercício de realismo jurídico, o qual, no Brasil, tem se convertido em justificativa para verdadeiros atos judiciais de exceção, como se tem, precisamente, com a tese em torno da execução provisória da pena.
Diz-se isso porque, de acordo como o AGU, a manifestação complementar adicional oferecida nos autos das ADC´s 43, 44 e 54, ao sustentar a conclusão acima transcrita, estaria de acordo com os próprios precedentes do STF acerca do papel do AGU no controle de constitucionalidade, pois:
“Não obstante essa Advocacia-Geral da União já tenha prestado manifestações em todas as três causas, pronunciando-se pela procedência dos pedidos, há um conjunto de fatores relevantes que justificam a apresentação de um novo discernimento em relação a elas. Isso porque, desde 2016, uma sequência de julgamentos realizados pelo Plenário desse Supremo Tribunal Federal[3] a propósito do alcance e sentido da garantia constitucional da presunção de inocência consolidou um fenômeno de mutação sobre o conteúdo da cláusula do artigo 5°, inciso LVII, a respeito da qual não se pode cerrar os olhos.
Fato é que, na atual quadra, pede observância a nova projeção conferida ao texto constitucional por aquele que é o seu guardião natural, o Supremo Tribunal Federal. Esse acatamento surge como dever de fidedignidade à própria supremacia da Constituição Federal, razão pela qual não conflita com o papel de curadoria de legitimidade de atos normativos hospedada no artigo 103, § 3°, da Lei Maior, na linha da jurisprudência do Plenário desse Supremo Tribunal Federal”[4].
Como se sabe, o art. 103, §3º da Constituição estipula que: “Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado”. A regra apresenta clara descrição de conduta que consiste em prática exatamente oposta à efetivada pelo Chefe da Advocacia Geral da União, pois, uma vez citado, deve defender a constitucionalidade do ato normativo impugnado e não uma suposta inconstitucionalidade.
Em momento algum o AGU buscara interpretar os precedentes por ele mesmo citados acerca do seu papel no controle de constitucionalidade, desconsiderando o dever de respeito à integridade que todos aqueles que lidam com precedentes devem buscar. Nesse sentido, deve-se, inicialmente, ressaltar a importância do AGU como defensor da constitucionalidade dos atos normativos, como expressa e precisamente estabelece a Constituição.
Sustento a necessidade de se levar a sério a regra constitucional mencionada, apontando uma justificativa para a atuação do AGU como verdadeiro advogado da integridade jurisprudencial. Além disso, saliento que nem mesmo os precedentes do STF justificam a atuação que o AGU acaba de desenvolver, pois está em discussão, justamente, o conteúdo deles acerca da execução provisória da pena. Assim, não há uma mutação constitucional, como supôs o AGU, capaz de justificar a defesa da inconstitucionalidade do art. 283 do CPP precisamente porque o precedente formalmente mais forte sobre a questão, correspondendo às ADC´s 43, 44 e 54, ainda está em formação, já que, como é evidente, o mérito das ações está sendo julgado agora. Logo, era seu dever defender a constitucionalidade do art. 283 do CPP, simplesmente.
Uma das razões ou dos propósitos por trás da regra prevista no art. 103, §3º da Constituição, ou seja, sua justificação, apontaria para a necessidade de afastamento da interpretação literal, no sentido de que não haveria necessidade de defesa da constitucionalidade em todos os casos, pois o que se busca é a atuação do AGU na defesa de atos normativos sobre os quais pairem dúvidas acerca da constitucionalidade. Ora, se o STF já decidiu casos semelhantes, não haveria qualquer espaço de dúvida, podendo o AGU manifestar-se pela inconstitucionalidade da norma.
Essa argumentação, no entanto, padece dos vícios, consistindo numa criação de exceção não justificada para a superação da regra. Prova-se essa assertiva a partir do momento em que: a) buscando-se a fundamentação da regra, não houve empenho em se alcançar as possíveis justificativas que apontassem para a correção da interpretação literal; b) a decisão aloca poder no AGU praticamente equiparando-o ao Procurador Geral da República na atuação como parecerista. Veja-se como isso ocorreu.
A caracterização do AGU como “advogado da inconstitucionalidade” e sua respectiva proscrição parte da consideração de que: a) somente o STF exerce controle de constitucionalidade; b) a decisão da Corte é infalível e c) sua jurisprudência deve se manter imutável. De maneira não declarada expressamente, essas foram as premissas utilizadas para encontrar a justificação da regra citada.
É possível, no entanto, explorar outra justificativa para o art. 103, §3º e para o consequente papel do AGU no controle de constitucionalidade. Ora, não se atentou acerca da possibilidade de o papel do AGU ser, justamente, o de provocar permanentemente o STF em temas constitucionais, admitindo-se que: a) a Corte não é o único ator que desenvolve a revisão judicial; b) a respectiva decisão pode conter falhas e sua jurisprudência, apesar do dever de se manter coerente, íntegra e estável, não pode ser imutável. Assim, quando o AGU defende a constitucionalidade de uma lei declarada anteriormente inconstitucional pelo STF, ele não está se convertendo em “advogado da inconstitucionalidade”: ele está se comportando exatamente como preconizado pela regra posta pelo constituinte originário, convertendo-se num relevante ator para que a Corte fique sempre alerta na análise de seus precedentes, os quais podem ter sido erroneamente criados, como aconteceu, precisamente, na admissão da execução provisória da pena.
O AGU, então, seria uma espécie de “Advogado da Integridade Jurisprudencial”: mesmo diante de jurisprudência firmada, teria o papel permanente de provocar a Corte, argumentado em torno da constitucionalidade de lei ou ato normativo declarado inconstitucional. Ora, o STF pode errar, entendendo correta uma decisão que, na verdade, viola a Constituição, como, repita-se, tem ocorrido no caso da execução provisória da pena. No presente caso, ressalte-se que sequer há jurisprudência firmada sobre o tema, como erroneamente supôs o AGU, tornando ainda mais injustificável a atuação que acabara de efetivar.
A Constituição autoriza essa interpretação pois ela atribuiu a outro agente, o Procurador Geral da República (PGR), o papel de emitir pareceres sobre a constitucionalidade da norma de modo independente, podendo se manifestar em qualquer sentido, independentemente de prévia decisão da Corte. Ora, a justificativa desenvolvida pela Corte acaba equiparando, neste contexto, as figuras do PGR e do AGU.
É certo que a questão acerca dos limites da atuação do AGU no controle de constitucionalidade já foi discutida diversas vezes pelo STF[5], havendo entendimento no sentido de que, em existindo precedente acerca da inconstitucionalidade de norma semelhante, o AGU poderia manifestar-se pela sua inconstitucionalidade. Obviamente que, se a questão está reaberta, havendo pendência de julgamento em ações de controle concentrado cuja força vinculativa é mais ampla, por expressa previsão legal do art. 927 do Código de Processo Civil, não pode o AGU escorar-se em precedentes formados em sede de habeas corpus, pois, repita-se, é justamente o entendimento elencado neles que está em discussão, não havendo essa pretensa pacificação de precedentes, como supôs o AGU, capaz de gerar uma mutação constitucional no art. 5º, LVII da Constituição[6]. Logo, era seu dever defender a constitucionalidade do art. 283 do CPP, simplesmente.
Essas considerações de ordem formal acerca da força dos precedentes poderiam ser complementada com aspectos materiais, os quais apontam para os sérios equívocos dos precedentes do STF em admitir a execução provisória da pena. Mas isso é tema para outro texto.
[1] Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado
[2] Conforme manifestação disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/manifestacao-agu-adcs-43-44-54.pdf. Acessado em: 17/10/2019. P. 34.
[3] HC 126292, Relator: MINISTRO TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgamento em 17/02/2016, Publicação em 17-05-2016; HC 126292 ED, Relator: MINISTRO TEOR’ ZAVASCKI, Tribunal Pleno, Julgamento em em 02/09/2016, Publicação em 07/02/2017; ARE 964246 RG, Relator: MINISTRO TEORI ZAVASCKI, Plenário Virtual, Julgamento em 10/11/2016, Publicado em 25/11/2016; ADC 43 MC, Relator: MINISTRO MARCO AURÉLIO, Relator p/ Acórdão: Ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, Publicado em 07/03/2018; HC 152752, Relator: MINISTRO EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 04/04/2018, Publicado em 27/06/2018;
[4] Idem. p, 3-4.
[5] ADI 72, Relator Ministro Sepúlveda Pertence. Ementa: “Erigido curador da presunção de constitucionalidade da lei, ao Advogado-Geral da União, ou quem lhe faças às vezes, não cabe admitir a invalidez da norma impugnada, incumbindo-lhe, sim, para satisfazer requisito de validade do processo da ação direta, promover-lhe a defesa, veiculando os argumentos disponíveis”. DJ 25/05/90. O Ministro Relator, seguido pelo Tribunal, apontara a condição de curador da constitucionalidade da lei atribuída constitucionalmente ao AGU, não cabendo emitir parecer para procedência da ADI.
ADI 242. Relator Ministro Paulo Brossard. 20/10/1994. No caso, o Relator citada o entendimento da Advocacia Geral da União apresentado no caso, no sentido de que o AGU não deveria ser obrigado a defender a constitucionalidade de ato manifestamente inconstitucional, como se fosse um “advogado da inconstitucionalidade”. O Relator, sem seguida, enfrentou o mérito do caso mesmo sem a defesa da constitucionalidade, tendo sido suscitada questão de ordem para se reestabelecer o que havia sido decidido na ADI 72, o que efetivamente aconteceu.
ADI 1616. Relator Ministro Maurício Corrêa. DJ 24/08/2001. Atente-se para o ponto 4 da emenda: “O múnus a que se refere o imperativo constitucional (CF, artigo 103, §3º) deve ser entendido com temperamentos. O Advogado-Geral da União não está obrigado a defender tese jurídica se sobre ela esta Corte já fixou entendimento pela sua inconstitucionalidade”. Perceba-se que não se fala sequer em jurisprudência firmada sobre determinada questão, mas mero precedente acerca da inconstitucionalidade. O tema será enfrentado no texto.
ADI 3522. Relator Ministro Marco Aurélio. Julgado em 24/11/2005. Ementa: “PROCESSO OBJETIVO – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ATUAÇÃO DO ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO. Consoante dispõe a norma imperativa do §3º do artigo 103 da Constituição Federal, incumbe ao Advogado-Geral da União a defesa do ato ou texto impugnado na ação direta de inconstitucionalidade, não lhe cabendo emissão de simples parecer, a ponto de vir a concluir pela pecha de inconstitucionalidade”.
ADI 3916. Rel. Min. Eros Grau. DJ: 13/05/2010.
[6] Perceba-se que a própria tese da mutação seria em si difícil de justificar, ante os limites semânticos mínimos do texto, corrompidos com decisão que admite a execução provisória da pena. Na verdade, tal mutação seria uma daquelas típicas mudanças formais e inconstitucionais na Constituição, usurpando poder do Constituinte originário.